Sociedade civil se refere ao conjunto das organizações voluntárias que formam o mecanismos de articulação de umasociedade de forma paralela ao Estado, mas em certa medida em relação com ele. Isso porque, embora distinta das estruturas estatais, a sociedade civil atua justamente no debate público e nas discussões e elaborações de políticas públicas. Composta por uma diversidade de atores, espaços e formas institucionais, asociedade civil é, segundoNorberto Bobbio, um conceito político complexo, dada a pluralidade de grupos e classes sociais independentes do Estado, que se organizam para reivindicar direitos e influenciar as decisões políticas.[1][2][3] A relação positiva entre sociedade civil e democracia tem sido objeto de extensa reflexão no pensamento político.[4][5]
A concepção clássica da sociedade civil remonta àGrécia Antiga, onde apólis não distinguia entre governantes e governados — todos os cidadãos participavam diretamente da vida pública. Os romanos traduziram esse conceito comosocietas civilis, introduzindo uma noção mais pluralista, que refletia as diferenças entre as estruturas políticas da Europa medieval e a unidade da pólis grega.[6]
Uma das primeiras utilizações modernas do termo ocorreu em 1621, quandoThomas Hobbes o empregou para contrastá-lo com o "estado de natureza". Para Hobbes, a sociedade requer um poder soberano, oLeviatã, para organizar seus assuntos e garantir a ordem.[7]Maquiavel já havia estabelecido uma distinção entre sociedade e Estado. Entretanto o primeiro estudo envolvendo a expressão "sociedade civil" foi oEnsaio Sobre a História da Sociedade Civil, escrito pelofilósofoescocêsAdam Ferguson, em 1767. Para Ferguson, ummoralista (grupo que também incluiAdam Smith,Francis Hutcheson,David Hume e outros pensadores doIluminismo Escocês), a "sociedade civil" é o oposto do indivíduo isolado, ou, mais especificamente, a condição do homem que vive numa cidade.[8]
Existe um consenso entre estudiosos de que amodernidade representou o desenvolvimento de um novo relacionamento entre a sociedade civil e a autoridade estatal, especialmente em razão docapitalismo. Correntesliberais passaram a defender a separação entre Estado moderno e sociedade civil, enquanto pensadoresmarxistas viam ambos como interdependentes[7]. Uma característica herdada da tradição clássica foi a ideia de representação direta dos cidadãos, que influenciou profundamente as teorias liberais sobredemocracia e a formulação do modelo ideal de democracia representativa.[7]
Noséculo XIX,Georg Wilhelm Friedrich Hegel desenvolveu uma abordagemdialética, definindo a sociedade civil como uma esfera intermediária entre a família e o Estado[9][10]. Para Hegel, emElementos da Filosofia do Direito, essa esfera surgiu com a modernidade e é responsável por educar os indivíduos e prevenir sua marginalização econômica. Diferentemente dos teóricos do contrato social, Hegel enfatizou o papel dascorporações eassociações na construção de vínculos comunitários e na mediação entre interesses privados e coletivos.[7]
Autores contemporâneos comoAxel Honneth[11] destacam a influência de pensadores comoAntonio Gramsci eJürgen Habermas, que atribuíram àesfera pública e àopinião pública um papel central na constituição da sociedade civil. Para esses autores, a sociedade civil é um espaço de articulação democrática, onde se formam consensos e se expressam demandas sociais que podem influenciar o Estado.[7]
A sociedade civil é uma esfera de interação social composta por uma diversidade de atores, espaços e formas institucionais[2]. Essa esfera é caracterizada por três parâmetros analíticos fundamentais[12]:
- Pluralidade, que se refere à multiplicidade de interesses, valores e organizações que coexistem e interagem;
- Publicidade, que envolve a visibilidade das ações e discursos públicos, permitindo o debate e a deliberação coletiva;
- Privacidade, que garante a autonomia dos indivíduos e grupos em relação ao controle estatal e à lógica mercantil.
Segundo o Centro para a Sociedade Civil daLondon School of Economics, a sociedade civil:
"... refere-se à arena deações coletivas voluntárias em torno de interesses, propósitos evalores. Na teoria, as suas formas institucionais são distintas daquelas doestado,família emercado, embora na prática, as fronteiras entre estado, sociedade civil, família e mercado sejam frequentemente complexos, indistintos e negociados. A sociedade civil comumente abraça uma diversidade de espaços, atores e formas institucionais, variando em seu grau de formalidade, autonomia e poder. Sociedades civis são frequentemente povoadas por organizações como instituições decaridade,organizações não governamentais de desenvolvimento, grupos comunitários, organizações femininas, organizações religiosas, associações profissionais,sindicatos, grupos deautoajuda,movimentos sociais, associações comerciais, coalizões e grupos ativistas."[13]
Autores propuseram elementos que permitem compreender a sociedade civil de forma mais ampla. Entre eles, destacam‑se seis dimensões frequentemente mencionadas na literatura[7]:
- Categoria típica‑ideal — A sociedade civil pode ser entendida como um tipo ideal, nos moldes weberianos, ou seja, não corresponde a uma realidade pura e uniforme, mas a um modelo analítico e normativo a ser perseguido.[14][15]
- Esfera não estatal — Engloba instituições e organizações que não pertencem diretamente ao Estado, sem que isso implique oposição absoluta, mas sim diferenciação institucional[16].
- Campo de poder — Assim como outras construções sociais, a sociedade civil é um espaço de disputas, onde diferentes atores competem pelo controle de capitais econômicos, culturais, sociais e simbólicos.[17][18][19]
- Espaço dialógico — Inspirada no conceito de dialogismo deBakhtin, a sociedade civil é um espaço de enunciação de discursos múltiplos, complementares ou contraditórios. Para se manter democrática, deve garantir condições de comunicação livres de distorções, manipulação ou coerção.[20][21]
- Proteção jurídica — A autonomia da sociedade civil depende de salvaguardas legais que a protejam contra interferências abusivas do poder estatal, assegurando liberdade de ação aos atores sociais[15].
- Autolimitação — Como campo de poder, a sociedade civil pode gerar hegemonias que ameacem sua própria diversidade. A autolimitação implica que movimentos e organizações evitem transformar sua influência em formas de dominação que comprometam a pluralidade[6].
A relação entre sociedade civil e democracia tem sido objeto de extensa reflexão desde os primeiros pensadores liberais.Alexis de Tocqueville, por exemplo, já destacava o papel das associações voluntárias na sustentação da vida democrática. Noséculo XX, teóricos comoGabriel Almond eSidney Verba aprofundaram essa análise ao identificar a sociedade civil como um componente vital para a estabilidade das democracias, especialmente por meio da formação de atitudes cívicas e da participação política.[5]
Mais recentemente,Robert Putnam argumentou que mesmo organizações não políticas dentro da sociedade civil são essenciais para o funcionamento democrático. Segundo ele, essas entidades constroemcapital social, promovem confiança mútua e valores compartilhados, que acabam sendo transferidos para a esfera política. Essa interconectividade fortalece os laços sociais e contribui para a coesão da sociedade.[4]
Por outro lado, alguns estudiosos têm questionado o caráter democrático da sociedade civil. Críticas apontam que muitos atores civis acumulam poder político significativo sem terem sido eleitos ou designados por mecanismos democráticos. Isso levanta preocupações sobre legitimidade, representatividade eaccountability.[22]
Nos dias de hoje, a expressão "sociedade civil" é, frequentemente, utilizada por críticos eativistas como uma referência às fontes de resistência ao domínio da vida social que devem ser protegidas daglobalização. Isso ocorre porque ela é vista como atuando além das fronteiras e através de diferentes territórios.[23][24]Por outro lado, outros veem a globalização como um fenômeno social trazendo valoresliberais clássicos, os quais inevitavelmente levarão a um papel maior por parte da sociedade civil, às custas das instituições politicamente derivadas do estado.
A sociedade civil latino-americana passou por diferentes trajetórias de emergência ou reemergência nas últimas décadas, moldadas pelos tipos de regimes autoritários, padrões de liberalização econômica e tradições políticas pré-existentes. A partir disso, foi identificado três modelos principais de sociedade civil contemporânea na região[25]:
- Pré-liberal (Andes): marcada por crise do Estado e turbulência social.
- Liberal-democrática (Argentina eChile): em que as fronteiras entre Estado e sociedade permanecem, mas com maior responsabilização institucional.
- Cívico-participativa (Brasil e, em certa medida,México): caracterizada pela ampliação da participação local e pela incorporação de novos atores sociais no processo de democratização.
No caso brasileiro, esse modelo cívico-participativo se expressa na criação de espaços institucionais de participação (comoconselhos de políticas públicas) e na atuação demovimentos sociais eorganizações da sociedade civil que, mesmo em contextos de crise política, mantêm legitimidade e capacidade de mobilização.[25]
A sociedade civil brasileira passou de uma tradição marcada pelo privatismo eautoritarismo para umademocracia participativa, com múltiplas formas de organização política[26]. As associações voluntárias mantêm relações com o Estado e partidos, mas com autonomia, sem o controle estatal típico do períodopopulista.[27]
Nas últimas décadas, a sociedade civil brasileira passou a ocupar um papel mais ativo na representação política, especialmente diante do declínio dos partidos de massa como mediadores tradicionais entre Estado e sociedade. Esse processo de pluralização da representação reforça a centralidade da sociedade civil como arena de disputa e construção democrática, ampliando sua influência sobrepolíticas públicas e espaços institucionais.[28]
Movimentos como o dosSem-Terra exemplificam essa relação ambígua de aproximação e distanciamento com o Estado. Organizações voltadas aos direitos dos negros equilombolas seguem lógica semelhante. Essa independência tem sido essencial para preservar a legitimidade da sociedade civil diante das crises políticas recentes.[27]
- Associações profissionais
- Clubes cívicos
- Instituições políticas
- Órgãos de defesa do consumidor
Referências
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