Iluminura doséculo XII representando a torre e oscriptorium do mosteiro de São Salvador de Tábara, naEspanha
Scriptorium (AFI:[scriptorium]ouvir) (no pluralscriptoria) é o espaço onde oslivrosmanuscritos eram produzidos naEuropa durante aIdade Média. Ainda é incerta a origem dessa acepção da palavra e se sabe que, ao longo da história, diferentes usos foram dados para o termo: ele chegou a designar as ferramentas de escrita, o local de produção, o conjunto de uma obra, uma coleção de livros de algummonastério — o que mostrava sua proximidade com asbibliotecas — ou ainda mesas de trabalho associadas à atividade escriturária. Até meados doséculo XI, osscriptoria, enquanto espaços de produção livreira, eram encontrados dentro dascatedrais e monastérios. Acredita-se que apenas as instituições que contavam com boas condições materiais poderiam ter um número suficiente demonges oufreiras empenhados na escrita, de tal forma que trabalhos necessários para a sobrevivência da instituição monástica, como a agricultura e a criação de animais, não fossem prejudicados por falta de pessoas. Porém, a partir dorenascimento do século XII, com o desenvolvimento do ambiente urbano e o surgimento dasuniversidades, a importância das instituições eclesiásticas na produção de conhecimento foi descentralizada. No mesmo período, catedrais, abadias e conventos passaram a compartilhar o protagonismo na produção manuscrita com ambientes mais laicos oucorteses. Isso ocorre naPenínsula Ibérica, quandoAfonso I de Portugal eAfonso X de Leão e Castela contavam com equipes deamanuenses que trabalhavam para coordenar, pela palavra escrita, os projetos políticos e culturais de seus respectivos reinos.
Para que os amanuenses pudessem escrever eram necessárias diversas ferramentas e produtos: apedra-pomes, que servia para polir opergaminho; as penas, que serviam como ferramenta para escrever; e as tintas, que deixavam as marcas da escrita sobre os pergaminhos. As etapas da produção do livro na Idade Média iam desde a criação de animais para retirada do couro, que passaria por diversos procedimentos até virar um pergaminho, até intervenções que o transformariam em um suporte apropriado para a escrita. As tintas também deveriam ser produzidas. Depois que as tintas, a pena e o pergaminho estivessem prontos, um ou mais copistas poderiam trabalhar na escrita de um manuscrito. A produção era coordenada por algum monge ou freira, chamados geralmente de "bibliotecários", pois teriam acesso àbiblioteca e escolheriam os livros a serem copiados. As produções ainda deveriam contar com um copista, que escrevia e delimitava os espaços destinados à escrita, àsiluminuras,miniaturas erubricas. Esta cadeia de produção dos manuscritos, junto ao desenvolvimento urbano e cultural a partir doséculo XII, passou por transformações que a integraram no mercado do livro, ligado à criação e comércio do pergaminho. A partir doséculo XIII, o mercado do livro integrado nasrotas de comércio faz circular desde o mundomuçulmano a invenção chinesa dopapel, que era mais barato e tinha uma produção menos penosa.
Nosscriptoria, trabalhavam monges e freiras copistas, alguns dos quais ficaram conhecidos por conta de seus trabalhos e são estudados e recuperados nos dias de hoje. Atualmente, nomes comoFlorêncio de Valeranica,Herrard de Landsberg eCristina de Pisano são considerados artistas por conta de seus trabalhos como iluminadores, compiladores e escritores de manuscritos no medievo. Porém, nem só de lindas obras e reconhecimento viviam os amanuenses: os erros que cometiam, em razão do penoso trabalho, aliados a diversos outros motivos, rondavam aqueles que trabalhavam escrevendo. Estes erros, inclusive, foram considerados como obra de umdemônio conhecido comoTitivillus, que assombrava os copistas, induzindo-os a erros que, por vezes, eram bastante embaraçosos.
Osscriptoria desenvolveram-se até chegarem aos locais de produção dos mais diversos produtos feitos em conjunto, como é o caso dosateliês, onde uma ou mais pessoas organizavam a produção de manufaturados, como pinturas e obras de arte. Também há menções aosscriptoria na cultura popular: filmes, seriados e animações ainda inspiram-se nos mistérios dosscriptoria medievais, tal sua importância para o acesso atual ao conhecimento escrito dos tempos mais antigos da história.
Quatro exemplos de como eram os estiletes chamados descriptoria porIsidoro de Sevilha
OfilólogoDu Cange foi o primeiro a compilar excertos de autores medievais que utilizavam o termoscriptorium para designar um espaço no qual se praticava a escrita. Du Cange lembra os registros deElfrico de Eynsham,Adelardo de Bath ePedro Abelardo entre outros nomes menos conhecidos.[1] A existência de um lugar de escrita dentro dos mosteiros é atestada no poema 126 deAlcuíno de Iorque, assim como em outros registros doséculo XII francês associados aSimon de Tournai.[2]
A origem do significado descriptorium como um lugar de escrita é no entanto obscura. NasEtimologias, grande enciclopédia daAntiguidade Tardia,Isidoro de Sevilha usavascriptorium para chamar oestilete, uma ferramenta de metal utilizada na escrita em tábuas de cera.[3]
Ainda é incerto quantosmonastérios oucatedrais possuíam um espaço destinado à leitura e à escrita de livros manuscritos naIdade Média e ainda que saibamos onde eles tenham existido, é difícil saber se os livros presentes em suas bibliotecas foram comprados, trocados ou feitos no local, já que as informações em relação à autoria de grande parte destas cópias é precária.[3]
A palavra também pode estar ligada aos lugares onde algumescrivão ounobre fazia seus registros. No final da Idade Média,scriptorium poderia fazer referência a uma pequena sala ou mesmo à mobília que acompanhava omonarca por onde ele andava. Na corte deAvis, noséculo XV, sabemos queD. Pedro de Coimbra mandou construir uma sala "scriptorio", a qual adornou com pinturas de filósofos e de profetas.[4]
Naépoca contemporânea o termo também possui diferentes significados. Muitas vezesscriptorium é mencionado na literatura acadêmica como forma de chamar os produtosamanuenses, e não o local de produção em si. Por outras vezes, encontramos o termo designando a totalidade da obra de ummonastério, de umachancelaria real ou, com mais frequência, de umautor.[2] Há estudos recentes que tratam oscriptorium não como um lugar específico, mas como uma atividade geral de cópia, de tradução ou de estudo e de composição de obrasmanuscritas.[5]
Muitas regras monásticas incentivavam a escrita por parte de seusmongesamanuenses. As regras deSanto Agostinho e deSão Bento, por exemplo, pregavam a necessidade da realização dasleituras orantes, divididas em diferentes modalidade e horários. As leituraslitúrgicas, que eram as leituras dos textos dabíblia e as leituras espirituais, eram realizadas de forma coletiva ou individual e tinham a intenção de inspirar os monges a seguir o caminho dos padres emártires daIgreja Católica.[6] Acredita-se que a escrita por parte dos monges agostinianos e beneditinos tenha origem na necessidade de armazenamento de livros, imposta pelo hábito da leitura, somado ao alto preço que se pagava pelos livros na AltaIdade Média e os momentos de dificuldade material que passavam os monastérios no início do medievo.[7]
A regra deSão Pacômio é um exemplo, naAntiguidade Tardia, de incentivo às práticas de leitura e escrita. Todo monge que se pretendesse pacomiano deveria saber ler e escrever, podendo ser alfabetizado dentro do ambiente monástico.[8] Noséculo VI,Ferréol d'Uzès escreveu em sua regra que aquele que não trabalhasse na terra, com as mãos noarado, deveria ocupar as suas mãos escrevendo com a tinta nopergaminho.[9]
NaHispânia visigótica, as regras também indicavam a importância da prática de escrita entre os monges. NaRegula Monachorum,Isidoro de Sevilha estipulava que nenhum converso deveria ser aceito nocenóbio sem antes prometer por escrito se estabelecer nele permanentemente.[10]
Também há evidências da importância da leitura e da escrita nos mosteiros dasIlhas Britânicas durante o período daHeptarquia. Na regra deSão David, preservada porRhygyfarch, encontramos menção ao papel da redação no cotidiano da comunidade. Segundo o tópico 23 dessa regra, após o trabalho fora do mosteiro, os monges retornavam às celas, gastando o resto do dia e chegando a adentrar a noite em leituras, escritas e orações.[11]
Osscriptoria monásticos se caracterizaram pela transcrição de escritos relacionados à Igreja Católica como aBíblia, textos dePadres ousantos, relacionados àmoral, missas e regras monásticas. Além destes tipos de obras, osmongescopistas também copiavam obras de literatura, ciência efilosofia antiga, com o intuito de preservar o conhecimento.[12] O trabalho dos monges copistas fazia parte de uma série de funções a serem exercidas dentro de um mosteiro e era considerado um trabalho feito pela via espiritual, sendo osscriptoria o lugar onde os monges se armavam espiritualmente para a vida cotidiana.[6]
AOrdem de São Bento tem como documento fundador aRegra de São Bento, que serviu de guia para a construção de abadias e mosteiros que seguiam seus ensinamentos.[13] Em seusscriptoria, os monges beneditinos copiaram tratados antigos sobreagricultura,astronomia,biologia,botânica emúsica.[14] Sabe-se que a cópia de livros chegou a ser uma das principais ocupações dos beneditinos.[15] Não havia menção, na regra de São Bento, à necessidade de escrever ou de copiar textos.[16] As cópias dos textos foram realizadas a partir das necessidades de leitura e da transformação dos mosteiros beneditinos em centros tradicionais de estudos sobre a vida de Jesus Cristo. Os livros foram copiados para que pudessem durar para a posteridade e para que a vida espiritual dos monges fosse aprimorada através do estudo das escrituras sagradas.[17] Foi naabadia de Monte Cassino queSão Bento escreveu sua regra, em 529.[18] Monte Cassino é considerada uma espécie de metrópole das abadias e, noséculo XI, sob o comando dosabades Desidério e Oderico, atingiu o auge da produção de seus livros.[19][20][21] Foi nesta época que Monte Cassino se tornou a mais importante produtora de livros daItália, que ficaram conhecidos pelas elaboradas decorações que seus monges faziam, sendo também considerada um centro que zelava pela cultura artística.[22][23] Sabe-se que em Monte Cassino foram compiladas obras dePlatão,Aristóteles,Cícero eVirgílio.[24]
Detalhe do plano daAbadia de São Galo, no qual se pode ler:Infra sedex scribentum /supra biblioteca.
O principal documento sobre a organização da produção manual dos livros nos mosteiros é aplanta baixa daAbadia de São Galo, naSuíça. Nela consta o desenho de uma sala com uma mesa central esete assentos. Acredita-se que esse modelo descriptorium enquanto sala retangular com sete cadeiras próximas às janelas tenha servido de parâmetro para outros monastériosbeneditinos. Em um período onde a iluminação artificial era cara e precária, uma fonte de luz natural próxima ao copista era essencial. No centro doscriptorium ficava uma grande mesa quadrada, onde provavelmente deixavam-se os materiais utilizados pelosescribas. Acima desta sala encontrava-se abiblioteca, onde eram organizados os manuscritos que seriam reproduzidos e aqueles que já haviam sido produzidos peloscopistas residentes no monastério.[25]
Aabadia de Claraval foi criada porSão Bernardo às margens dorio Aube, na França, em 1115, e seguia aordem de Cister.[26] A abadia é conhecida pelo seuscriptorium e pela tradição de armazenamento de livros em sua biblioteca. Noséculo XIII, seuscriptorium esteve no ápice, sendo que a maioria dos livros contidos na biblioteca da abadia eram cópias realizadas por seus própriosmonges. Além dos textos sagrados, livros de história, filosofia, matemática e medicina foram copiados em Claraval.[27] Outra atividade doscriptorium de Claraval era a tradução de textos dolatim e dogrego para overnáculo.[28]
No ano de 614,São Columbano fundou aabadia de Bobbio, na província dePlacência,Itália. Entre os séculos VII e XII, esse centro monástico transformou-se em um dos mais importantes da Europa. Muito de sua fama advém de seuscriptorium, cujo catálogo inclui mais de 700códices. Neles estão 25 dos 150 manuscritos mais antigos da literatura latina. A vasta produção doscriptorium de Bobbio contava com o trabalho de mongesirlandeses que introduziram aarte hiberno-saxônica na Itália, além de um sistema de abreviaturas próprio.[29]
O Saltério de Rhygyfarch citaSão David como o fundador do mosteiro daAbadia de Glastonbury. Embora existam menções a atividades de produção escrita desde ao menos a época deIne de Wessex, noséculo VII, é noséculo X, quandoDunstano foi abade, que oscriptorium de Glastonbury começa a produzir com frequência regular. Umabiografia doséculo XI descreve Dunstano como um copista e um iluminador, alegando que o abade era muito habilidoso no desenho de imagens e em formar letras.[30] Dunstano, além de incentivar a produção de livros noscriptorium, também atuou junto à biblioteca do mosteiro no sentido de estabelecer uma política de aquisição de livros. Noséculo XII, a coleção entesourada impressionou o viajante, conhecedor de livros e historiadorGuilherme de Malmesbúria por conta de sua beleza e antiguidade.[31]
À esquerda, imagem do Beato de Tábara (968-970) atribuída a Emetério, na qual se vê a antigatorre moçárabe. À direita, aparência atual de São Salvador de Tábara, com a torre românica e sem o pequenoscriptorium de madeira.
No final doséculo IX,São Fruela fundou o monastério deTábara, com o apoio do reiAlfonso III. A história da fundação desse mosteiro foi intercalada naBíblia de Leão de 920, deJoão, o Diácono,amanuense que copiava escrituras diversas, como cédulas reais e livros litúrgicos. João registrou nessa obra uma biografia de São Fruela, a quem conheceu pessoalmente. Nela nos conta que em 920 existia umcenóbio na região de Tábara, o qual estava sob a influência do rei dasAstúrias. A região era estratégica para a reconquista e o repovoamento da região deZamora. O mosteiro ficou conhecido por seuscriptorium, responsável por produzir aqueles que são considerados os mais belos exemplares da série dosBeatos. É provável que tenha sido entre 940 e 945 que um monge do monastério de Tábara chamado Magio trabalhou no chamadoBeato de São Miguel.Protótipo de outros Beatos, a obra está atualmente naBiblioteca e Museu Morgan deNova Iorque.[32]
Consta em documento de doação deDona Sancha aosTemplários que o mosteiro foi destruído nas incursões docalifaAlmançor por volta de 988. A torre original, tal como conhecida através das iluminuras, foi substituída por umatorre românica construída noséculo XII. Ainda assim, algumas característicasmoçárabes permaneceram na estrutura, como oscapitéis e osarcos de ferradura.[33]
Em 555, naCalábria,Cassiodoro fundou um monastério dedicado aSão Martinho. Nele, cultivou um viveiro de peixes que deu nome à localidade. O assim chamadomonastério de Vivário tinham como principal objetivo aprofundar os conhecimentos sobre aBíblia e se tornou um centro de estudos do livro sagrado cristão. Cassiodoro também se dedicou ao estudo de obras pagãs e daAntiguidade Clássica como forma de complementar os estudos em relação àBíblia. Em seu mosteiro, a biblioteca era o principal espaço a ser cultivado e osescribas tinham posição diferenciada.[34][8] A fama e competência de seuscriptorium foram tão grandes que autores e estudiosos iam até aItália para buscar livros copiados e escritos em Vivário.[35]
Iluminura das Institutiones, deCassiodoro, na qual se pode notar o viveiro de peixes à frente do mosteiro (Vivário)
A principal obra doscriptorium do monastério de Vivário são asInstituições (Institutiones), atribuídas a Cassiodoro. Elas tinham como objetivos normatizar o trabalho na biblioteca e servir de fonte para acesso dos monges, como plano de estudo. A obra é dividida em dois livros, que trazem uma relação dosmanuscritos encontrados na biblioteca de Vivário e também um diário de trabalho de Cassiodoro.[36] O monastério de Vivário é considerado uma verdadeiraacademia, pois lá asescrituras sagradas eram estudadas e textos eram traduzidos dogrego para olatim.[37]
Omonastério de Valeranica tinha recursos suficientes para obter um espaço específico para a produção dos livros manuscritos, armazenar uma grandebiblioteca e ter um sistema deensino eaprendizagem.Florêncio de Valeranica trabalhou nesse monastério e ficou conhecido como príncipe doscalígrafos espanhóis por causa da grande qualidade de suasiluminuras.[38][39] ABíblia de Leão de 960,Comentário aos Salmos deCassiodoro,Morália em Jó (Moralia in Iob) de Gregório Magno e aBíblia de 943 estão entre as principais obras produzidas no local.[40] Oscriptorium de Valeranica esteve entre os principais centros receptores e criadores delivrosmanuscritos durante aAlta Idade Média.[41] O sucesso dessescriptorium pode ser explicado pela relação que tinha com outros mosteiros, tanto nooriente quanto noocidente. Sabe-se que Valeranica ampliou o contatos com outros mosteiros durante oséculo X. Essa medida desenvolveu sua rede de relações pelo território castelhano, tornando possível obter mais livros resultantes de trocas entre mosteiros, assim como tornar suas produções mais conhecidas.[42]
O longoséculo XII: renascimento cultural e comercial
Iluminura do Livro de Jogos, obra doscriptorium deAfonso X. A imagem mostra trêscopistas trabalhando
O ocidente medieval assistiu a grandes mudanças a partir doséculo XII. As populações urbanas aumentaram no momento em que ascruzadas e o movimento dereconquista abriam novas oportunidades comerciais. Ascomunas e osburgos demonstram a relevância econômica de um novo grupo socialburguês[nota 1], que passou a comprar muitos artigos de luxo e, dentre eles, livros. O período também é associado aorenascimento do século XII, termo proposto porCharles H. Haskins em 1927.[44] Haskins pesquisou o movimento de retomada dos clássicos, sustentando que os monastérios e as escolas cristãs teriam exercido um papel mais importante do que o das cidades italianas[nota 2] nos processos deracionalização esecularização do período. Seu trabalho lançou questões a respeito do surgimento doindividualismo, daracionalidade, da secularização, assim como do estabelecimento de uma novamentalidade crítica noséculo XII.[46]
Oséculo XII foi o momento em que a literatura escrita emlínguas vernáculas mais se expandiu. Essa nova cultura textual tem relação com os movimentos de tradução, cópia e troca demanuscritos entre diferentes culturas religiosas. O desenvolvimento dométodo teológico e dalógica no ocidente medieval deveu muito a traduções do árabe para olatim realizadas com frequência porjudeus.[47] O número crescente de textos e autores chegou a interferir no sistema deautoridades utilizado pela cultura latina medieval.[48] Dentro desse contexto,Jacques Le Goff viu noséculo XII o surgimento de um novo tipo de indivíduo. Um indivíduo que pensa e ensina seu pensamento com alguma independência das autoridades sacerdotais e seculares: o intelectual, cuja melhor personificação seriaPedro Abelardo.[49]
Entre os séculos XII e XIII assistimos a expansão da atividade dosscriptoria monásticos ao lado da ascensão de centros maislaicos de produção escrita. NaAlemanha os centros laicos de produção de livros manuscritos competiam desde cedo com os mosteiros. EmPortugal e naEspanha existiu uma divisão de tarefas dentro da cadeia produtiva do livro entre esses dois polos de produção escrita.[50] Nesse período a produção e o comércio dos livros aumentou com vistas a atender a novas demandasburguesas earistocráticas a partir das nascentesuniversidades ou do trabalho ligado àschancelarias reais.[51][49]
Capitular adornada com a imagem de umcopista, assinada pelo irmão Rufilo
Noséculo XII, aabadia de Helmarshausen, na região deHesse, tornou-se o principal centro de produção e difusão de livros no norte daAlemanha. Entre 1120 e 1200, seuscriptorium criou documentosmanuscritos que ficaram famosos por suasiluminuras. A localização geográfica da abadia, próximas aos riosReno eMosa, facilitou o contato com compradores, fornecedores de papel assim como o intercâmbio de documentos com outrosmosteiros. Por volta de 1150, o número de obras produzidas aumentou atendendo também a crescente demanda por parte do públicoleigo.[52]
No final doséculo XII, oscriptorium se renovou sob as ordens deHenrique, o Leão, duque daSaxônia e daBaviera. Contatos com aInglaterra levaram a inovações de estilo perceptíveis nosaltério deMatilde de Inglaterra. Por volta de 1180 é produzido oEvangelho de Henrique, o Leão, um livro luxuoso cravejado de joias. OEvangelho de Tréveris, finalizado pouco depois, mobilizou a divisão do trabalho noscriptorium. Embora osamanuenses de Helmarshausen tenham rompido com astradições românicas, nunca chegaram a se aproximar da iluminação e dapintura gótica. Por volta de 1200 a produção de livros de luxo cessa. Pesava cada vez mais a competição dosscriptoria dos centros episcopais, parcialmente laicos e muito mais próximos do mercado livreiro.[53]
Centros de produçãomanuscrita, tradução eiluminação de pergaminhos foram estabelecidos na França durante a épocacarolíngia. Os primórdios daEscola Catedral deParis datam doséculo X, comAbão de Fleury.[54] É noséculo XII, no entanto, que a Escola de Paris impõe-se como um centro datranslatio studiorum, congregando professores comoPedro Abelardo,Hugo de São Victor eBernardo de Claraval, dedicados ao ensino dotrívio e doquadrívio. No começo doséculo XIII, o papa e a nobreza passam a ver essas nascentes instituições como possíveis aliadas políticas e culturais. Nesse espírito são editadasbulas com o objetivo de reconhecê-las e protegê-las, elevando-as com frequência ao estatuto destudium generale. Universidades doséculo XII, como as de Paris ou de Bolonha, foram instituídas por esse tipo de procedimento.[55][49]
Os studia e as nascentes universidades transformaram-se em centros de controle e produção da palavra escrita. No final doséculo XIII, registra-se grande atividade comercial nas casas pergamineiras próximas àSorbona, assim como por parte doscopistas que habitavam ao redor daCatedral de Notre Dame.[56]
Noséculo XI, oabadePaulo de Caen financiou a construção de um pequenoscriptorium no monastério deSt. Albans, para quecopistas profissionais pudessem trabalhar do lado de fora no monastério sem que os monges tivessem mudanças em sua rotina.[57]
No mesmo século, nopriorado de Worcester, desenvolvia-se umscriptorium produtivo e que indicava o estabelecimento de uma cultura de escrita e treinamento para escribas. Noscriptorium de Worcester, sabe-se que cinco copistas trabalharam nocartulário conhecido comoLiber Wingorniensis. Anos depois, na tentativa de preservar alguns documentos em Worcester, por iniciativa do bispoVulstano, um monge trabalhou como rubricador e demarcou os espaços para a escrita e outros dois monges trabalharam escrevendo o texto de umcódice.[57]
Já noséculo XII, emMalmesbúria, sabe-se que alguns documentos encontrados foram produzidos em umscriptorium onde mais de cinquenta e quatro copistas trabalhavam. Estes textos foram encomendados pelo abadeGodofredo de Jumièges, que desejava ter na abadia todos os textos que considerava importante para sua instrução. O coordenador da produção foiGuilherme de Malmesbúria, que contou com três assistentes especialistas. Há evidências de que os outros copistas não eram acostumados com a função, tendo sido chamados para o trabalho por conta da necessidade de pessoas suficientes para a produção.[57]
EmSalisbúria se organizaram copistas para trabalhar coletivamente na produção demanuscritos. Sabe-se de oito copistas bem treinados que trabalharam juntos na produção de um manuscrito. Eles teriam sido levados de diferentes lugares para trabalhar naCatedral de Salisbury.[57]
Figura produzida no ateliê deGiovannino de Grassi, do livroHistória Plantarum, com influência da ilustração deSalerno (século XIV-XV)
Acredita-se que é noséculo XI que aEscola de Salerno produz um dos mais famosos regimentos de saúde, oRegimen sanitatis Salernitanum. O regimento foi composto por um autor anônimo na forma de 370 versos, o que indica o estímulo à incorporação de conselhos de saúde através dasartes da memória. O poema aconselha ao leitor comer e beber de modo comedido, não sucumbir à raiva e a lembrar-se de viver em alegria e descanso. O texto foi copiado e difundido noséculo XIII porArnaldo de Vilanova, mestre daEscola de Medicina de Montpellier.[58]
No final doséculo XI, a revisão dos modelos de ilustraçãobotânicos está ligada à produção daEscola de Salerno. A observação das plantas, aliada ao interesse de reconhecê-las, distingui-las e classificá-las, atinge seu maior esplendor com omanuscrito denominadoCarrara Herbal, produzido no norte da Itália noséculo XIV-XV. Ele é considerado a primeira coleção moderna deimagens naturalistas.[59] A ilustração científica produzida ou inspirada pelas atividades da Escola de Salerno influenciou a ornamentaçãolombarda realizada nasoficinas doQuattrocento.[60]
AEscola de Tradutores de Toledo foi um movimento que envolveu a tradução de livros doárabe, dohebraico e dogrego para olatim, que aconteceu na cidade deToledo, naEspanha, entre os séculos XII e XIII. O movimento era composto por monges católicos ejudeus sefarditas, que participavam ativamente das traduções. O fenômeno da tradução na cidade de Toledo pode ter tido como principal propulsor a presença árabe na cidade antes da ocupação cristã noséculo XI, presença que teria deixado uma herança intelectual aos seus habitantes. O interesse pela tradução levou a Toledo pessoas de toda a Europa, evidenciando a existência, a partir doséculo XII, de copistas profissionais no ofício dosmanuscritos. Em sua primeira fase, a escola é associada ao patrocínio deDom Raimundo de Toledo, assim como ao trabalho deDomingo Gundisalvo eAbraão ibne Daúde. Essas primeiras fases da Escola de Tradutores de Toledo, durante oséculo XII, ocorrem no momento no qual a produção dos manuscritos encontrava seu lugar dentro doscriptorium monástico daCatedral de Toledo. Sob o comando do reiAfonso X, os tradutores entraram em contato com a rede descriptoria da corte no mesmo momento em que a realeza passava a patrocinar traduções de textos antigos e de saberes árabes para alíngua castelhana.[61][62] Em 1254, o rei Afonso X fundou um importante centro de estudos de árabe e de latim emSevilha e posteriormente transferiu para aCatedral de Toledo o centro de estudos sobre astronomia.[63] A Escola de Tradutores de Toledo parece ter seguido a mesma técnica de tradução dos tempos de Don Raimundo até os deAfonso X. O trabalho era dividido em uma equipe formada por duas pessoas, sendo que uma conhecia a língua do manuscrito e a outra dominava a língua para a qual se traduziria o texto.[64]
Iluminura do livroCantigas de Santa Maria (século XII), produzido noscriptorium do reiAfonso X. O rei gesticula enquanto dita a obra para um escriba
Oscriptorium deAfonso X tinha várias sedes espalhadas pelo reino, como nas cidades de Toledo,Múrcia eSevilha, sendo que cada uma destas sedes contava com os seus próprios funcionários e suas próprias funções.[65] Por conta desta fragmentação doscriptorium por diferentes lugares do reino, as equipes de trabalho acabavam, muitas vezes, por não atuarem de forma coordenada e conectada uma com a outra.[66] Devido ao seu grande incentivo ao trabalho de cópia de manuscritos, Afonso X ficou conhecido sob o alcunha de "rei sábio". Em sua coleção de livros manuscritos estão temas muito abrangentes, como tratados filosóficos,cantigas,liturgias hebraicas, manuais de medicina eastrologia árabes.[67] Ou seja, oscriptorium de Afonso X se caracteriza pela produção de obras de cunhohistórico,normativo,científico,musical e poético durante as últimas décadas doséculo XIII.[68] Oscriptorium de Afonso X, além de ser considerado um centro de pesquisa e transmissão de matérias humanísticas e ser frequentemente relacionado à Escola de Tradutores de Toledo, fez com que a produção delivros,traduções,miniaturas eiluminuras naIdade Média estivesse ligada ao papel centralizador da corte, com a intenção de ensinar a língua latina a nobres de sua corte e de traduzir textos para o castelhano, de forma a levar ao longo de seu reino o conhecimento advindo de outras localidades. O Rei Sábio também encomendou produções de tema legislativo como forma de reafirmar a centralidade do rei e a sua fusão com a imagem do próprio reino.[69] Os copistas de Afonso X compilaram conhecimento proveniente dosjudeus,muçulmanos ecristãos. O sistema de produção dos livros manuscritos era o mesmo seguido nos monastérios, com a diferença de que o número de pessoas disponíveis para o trabalho era abundante, assim como os recursos.[61]
Osscriptoria relacionados aAfonso I de Portugal estavam ligados aos mosteiros e ao monarca.[70] Preocupado com as invasões dos mouros, Afonso Henriques espalhou por Portugal diversos mosteiros agostinianos e beneditinos para que seu poder não se perdesse à medida que o território fosse se distanciando da sede real. Assim, a partir das duas principais abadias de seu reino,Santa Cruz eAlcobaça, as ordens beneditina e agostiniana se espalharam para outras partes de Portugal.[70] Porém, estavam conectados com as intenções políticas no que se relaciona à escrita e tradução decódices. Foram os mosteiros que ajudaram o reino a delimitar seu território nos anos iniciais. Os bispados representaram o poder administrativo e as instituições como monastérios e abadias representavam o poder temporal naqueles lugares onde o rei não conseguia chegar.[71] Isto é uma consequência de não haver ainda uma corte portuguesa que pudesse governar, então o papel que as cortes ocupariam é tomado pelos mosteiros.[72] No que diz respeito à produção do conhecimento nos mosteiros de Afonso Henriques, se destaca a escrita decrônicas com a intenção de se preservar a fé católica e de conservar amemória do reino através da escrita.[72][50]
Logo quando foi fundado, noséculo XII, oscriptorium doMosteiro de Santa Cruz, emCoimbra, abrigou copistas que escreveram a história do próprio monastério e a história de Portugal, reflexo do fato de que a demarcação do território português no reinado deAfonso I se deu a partir das instituições monásticas estabelecidas pelo rei.[73] A importância de Santa Cruz para a cultura escrita em Portugal está diretamente ligada às crônicas escritas em seuscriptorium. O registro do conhecimento era uma forma de se complementar a prática religiosa.[74] Além dascrônicas o monastério se ocupava dosanais que também faziam parte de seus registros e apenas a partir doséculo XIV é que oscriptorium de Santa Cruz irá estabelecer um padrão para suas produções.[50] A partir doséculo XIV, a produção no mosteiro se volta para a vida dos homens considerados importantes peloreino de Portugal, comonobres,cavaleiros e religiosos influentes.[75] Entre as principais produções de seuscriptorium estão asCrônicas Breves de Santa Cruz de Coimbra e aVida de São Teotônio.[76]
Fundada em 1153, mas inaugurada sua construção atual em 1247, aabadia de Santa Maria de Alcobaça, emPortugal, teve grande importância política e religiosa no reino deAfonso I e foi conhecida por seguir da forma mais rígida possível os mandamentos daRegra de São Bento, e estava ligada àOrdem de Cister.[77][78][79] Entre os trabalhos realizados pelos monges alcobacenses se destacam a agricultura, a meditação, o estudo e otrabalho caligráfico. Em relação à caligrafia, sabe-se que na época de sua maior prosperidade, o período entre os séculos XIII e XV, abiblioteca deAlcobaça armazenava em média quinhentoslivros.[80] O trabalho intelectual pode ser visto como uma tradição em Santa Maria de Alcobaça, sendo que na segunda metade doséculo XIII, seus monges ministravam aulas degramática,lógica eteologia, e o mosteiro, em conjunto comSanta Cruz eLorvão, constituiu a base da cultura relacionada aos livros doséculo XIII em Portugal.[81] Os principais autores dos quais se armazenava livros na abadia foramSanto Agostinho,São Gregório Magno,Orígenes eSanto Ambrósio.[80] Destes livros, a sua maioria foi produzida noscriptorium alcobacense.[79]
Manuscrito que permite observar a divisão do trabalhoamanuense: em preto, a delimitação do espaço das letras; em vermelho, as rubricas e capitulares; em azul, vermelho, verde e dourado, asiluminuras
O trabalho nosscriptoria acontecia até que a luz do sol não entrasse mais pelas janelas. Escrever de noite não era comum porque as velas, melhor forma de iluminar o local sem a luz do sol, poderiam queimar osmanuscritos em algum acidente, causando, além de um incêndio, a perda de todos oscódices.[82] O bibliotecário ou armário era quem comumente estava no comando da produção dos copistas, decidindo quais livros seriam copiados e tendo acesso irrestrito às bibliotecas. Havia também os iluminadores, que faziam asiluminuras, que recebiam este nome porque suas cores literalmente iluminavam o manuscrito. Os rubricadores, que faziam as capitulares ornamentadas e osminiaturistas, que faziam as miniaturas, desenhos de maior simplicidade do que as iluminuras, que recebiam este nome por causa da palavra latinaminium, que significava vermelho.[83]
Pedra-pomes - Seu principal uso era o de polir o pergaminho, mas também poderia ser utilizada para afiar o bico da pena.[84]
Facas - Poderiam ser utilizadas para raspar o pergaminho, com o fim de tirar algum relevo remanescente de sua produção, cortar as penas para que ficassem com a forma desejada e raspar o pergaminho para corrigir os erros dos copistas.[84]
Canivetes - Utilizados para dar forma à ponta da pena das aves.[84]
Penas - Utilizadas para escrever, depois de terem sido afiadas da forma desejada pelo copista.[84]
Compassos - Eram necessários para desenhar eventuais círculos, medições ou, com a ponta seca, traçar as linhas a serem seguidas pelo copista na hora de escrever.[84]
Espátula - Utilizada para misturar a tinta no momento de sua produção.[84]
Sovelas - Instrumentos utilizados para fazer as pautas a serem seguidas pelos copistas. As sovelas são formadas por um cabo de madeira e possuem uma agulha grossa na ponta.[84]
Trabalhador papeleiro faz os últimos ajustes em umpergaminho seco e esticado,século XV
Até o início doséculo XIII, opergaminho foi o material mais utilizado para osmanuscritos. Em finais doséculo XIII, por conta da dificuldade de fabricação e de seu consequente alto preço no mercado, o pergaminho foi substituído pelopapel. O pergaminho ficou quase restrito aos documentos oficiais, ligados àscortes e à igreja, por conta de sua maior durabilidade. Não é à toa que os documentos manuscritos que temos acesso nos dias de hoje foram feitos com pergaminho e não papel.[85]
O pergaminho poderia ser obtido através do couro de animais como avitela, as ovelhas e as vacas. A pele mais apreciada para pergaminhos era a da vitela, por conta de sua maleabilidade, pouca quantidade de pelos e espessura.[86] O couro era lavado com produtos cáusticos para que a carne e os nervos se desgrudassem da pele, sendo necessário, para isso, deixá-lo de molho por várias semanas. Logo após esse processo, com um grandecutelo, oartesão raspava os dois lados do couro para deixar sua superfície livre de pelos e carne. As peles, então, voltavam a ser lavadas para que os produtos cáusticos de sua superfície fossem removidos.[87][88] A pele do animal era esticada e secada para que sua superfície ficasse uniforme. No próximo passo, já nas mãos do copista, o pergaminho era raspado compedra pomes para tirar as pequenas impurezas e deixar a superfície o mais uniforme possível.[86]
Por causa do grande número de etapas de produção, era possível levar até vinte dias de trabalho para que um pergaminho ficasse pronto.[87][88] Devido a complexidade e demora em sua produção, seu preço era muito alto e, por isso, muitos deles acabavam sendo reutilizados, acarretando na criação depalimpsesto.[86] A partir doséculo XIII a prática de produção de um pergaminho foi aprimorada, deixando para trás pergaminhos engordurados, cheios de pelos e irregulares, ao ponto que noséculo XV, os pergaminhos poderiam ser feitos com peles não consideradas nobres e parecerem um pergaminho de vitela.[89][90]
Atinta utilizada para a escrita no pergaminho ou no papel deveria ser preparada e, para isto, havia diversas receitas. Geralmente a cor utilizada para a escrita dos textos era o preto por causa de sua durabilidade, variando o tom de acordo com o material usado.[91] As tintas pretas mais utilizadas eram as designadasmetalogálicas, feitas por meio da mistura de ácido tânico, noz dagalha,sulfato de ferro egoma arábica, que resultava em um aspecto viscoso. Quando esses quatro elementos eram misturados nas proporções erradas, criavam uma tinta extremamente ácida que acabava por queimar os manuscritos com o passar do tempo.[92] As corespúrpura, verde, vermelho e dourado também aparecem nasiluminura, nasrubricas e em adornos ao longo do texto, mas são mais raras por terem diferentes significados. O dourado, por exemplo, era atribuído à divindade, o verde à ressurreição, o azul à nobreza e o vermelho representava o sangue deJesusCristo.[91]
Uma vez que se tinha o pergaminho e a tinta em mãos, era necessário demarcar com faca e régua os espaços destinados à escrita. Desenhava-se uma margem em cadafólio, assim como linhas para guiar o trabalho docopista. Após estas etapas, ainda poderia-se utilizargiz para deixar as páginas mais brancas ecera para a fixação da tinta. Oescriba carregava em uma mão a pena para escrever. Na outra, umraspador, que o ajudava a apagar e corrigir aquilo que havia sido escrito errado. Quando o escriba acabava de escrever, deixava no pergaminho as instruções para o próximo passo, exercido peloiluminador ou pelo miniaturista. Era hora de preencher os espaços das margens e também as lacunas deixadas pelos copistas para que se pudesse inserir asminiaturas ou as iluminuras. O manuscrito ainda passavam pelas mãos de um corretor, que checava possíveis erros cometidos na passagem do modelo para a cópia. O próximo passo eram asrubricas feitas pelo rubricador, que consistiam em cabeçalhos dos capítulos, comentários ou algo que deveria ser acrescentado ao manuscrito. As primeiras letras, normalmente maiores que as outras e feitas em cores diferentes das do restante do texto, eram realizadas nessa etapa. Normalmente as rubricas eram feitas na cor vermelha, mas também poderiam ser em azul, em casos excepcionais, e em ouro, naqueles manuscritos mais elaborados e de grande importância, representando a nobreza do documento. As rubricas tinham esse nome pois eram geralmente feitas em tinta vermelha de tonalidade forte chamada rubro. O último passo na confecção de um pergaminho era a adição das cores nas iluminuras, que poderiam ser das mais variadas.[93][94]
O trabalho dos copistas era técnico, repetitivo e muito cansativo. Mas por vezes esses profissionais do texto realizavam interpolações, adicionando conteúdos, notas de margem ou frases ao final de uma parte da obra trabalhada. O problema já era conhecido dosgregos antigos, que levantavam questões sobre a transmissão textual de sualiteratura. Suspeitas chegaram a afirmar que o canto XXIV daOdisseia era umainterpolação de um copista.[95] NaBaixa Idade Média, as interpolações e intervenções posteriores por vezes acompanhavam interesses e disputas de legitimidade, honra e direitos sobre terras entre as diferentes linhagens da nobreza.[96] Por outras vezes, as interpolações dos copistas eram mais inocentes, como aparece em um testemunho anônimo doséculo VIII. Cansado do trabalho duro e repetitivo, o copista se expressou em uma nota em língua latina:
Ó abençoado leitor! Lave as mãos e leve o livro à mão, gire suavemente as folhas, afaste os dedos da letra! Porque quem não sabe escrever pensa que não é esforço. Oh, quão irritante é a escrita! Os olhos cansam, o lombo enfraquece e ao mesmo tempo fica ruim para todos os membros. Escreva três dedos, todo o corpo dói. Portanto, como o marinheiro anseia por chegar ao seu porto de origem, o mesmo acontece com o escritor na última linha.
Os monges copistas eram aqueles monges que trabalhavam nosscriptoria escrevendo ou copiando os livros.[83] Também chamados deamanuenses, comumente a estes monges é atribuída grande importância histórica, já que seu trabalho possibilitou que o conhecimento dos antigos chegasse até nossos dias. Os monges amanuenses poderiam ser classificados como copistas mais velhos, chamados deantiquários, ou copistas mais novos, denominados de livreiros.[97][98]
É importante observar a presença de mulheres copistas em algunsscriptoria, contrariando a ideia de que esse tipo de ofício era restrito a ambientes exclusivamente masculinos. Restrições às mulheres no entanto se davam a partir de livros que tinham a leitura indicada ao público masculino. Textos relacionados à vida religiosa indicavam a leitura para monges em vez de freiras.[99] Sabe-se que naabadia de Munsterbilzen, naBélgica, uma cópia deEtimologias, deIsidoro de Sevilha, foi elaborada por oito mulheres copistas. Pode-se identificar a atividade feminina pois elas assinaram o manuscrito após escrevê-lo. Porém, dificilmente os manuscritos eram assinados. Por mais que não haja muitas provas concretas em relação à autoria ou à cópia feminina de diversos manuscritos, algumas obras, além daquelas cuja autoria é assinada, podem apresentarpronomes femininos. Outra forma de identificar o protagonismo feminino nas obras é o seu conteúdo, podendo algumas vezes a autoria feminina ser identificada por uma carta de amor a seu amado.[100]
Cristina de Pisano nasceu emVeneza, no ano de 1364, e é considerada a primeira mulher escritora da Europa. Quatro anos mais tarde, se mudou paraParis, onde seu pai, Thomas de Pisano, foi médico eastrólogo na corte do reiCarlos V, o que possibilitou a Cristina ter acesso aos livros da biblioteca real.[101] Cristina começou a escrever depois da morte de seu marido, em 1389, para sustentar a família. Acredita-se que tenha sido a primeira mulher a ter a escrita como fonte de renda.[102][103] Em 1422, Cristina passa a viver no Convento dePoissy, naFrança, onde vem a falecer em 1430. Cristina escreveu tratados morais, de política e educação, sendoA Cidade das Mulheres, de 1405, uma de suas principais obras. Chama atenção nas obras da autora a ideia pouco difundida na época de que a diferença entre homens e mulheres tinha origem social, e não natural.[104]
Florêncio de Valeranica foi ummongeamanuense conhecido comopríncipe doscalígrafosespanhóis. Apesar de ser monge, alguns autores propõem que Florêncio deve ser visto como umartista por causa da qualidade de suasiluminuras e pelos dados indiretos deixados em suas obras.[39] Por outro lado, alguns estudiosos do tema duvidam de sua condição de monge, já que Florêncio chegou a se identificar enquantoperegrino. Talvez tenha sido umimigrantemoçárabe que realizava seu trabalho de formaitinerante, passando por diversosscriptoria relacionados àscortes de Espanha.[105] Entre as principais obras copiadas pelo monge estãoMoralia em Jó, datada do ano de 945, eA Bíblia de Oña, terminada no ano de 943.[106]
Herrad de Landsberg compilou o livro conhecido comoHortus deliciarum, possivelmente em umscriptorium nomonte São Odílio, naAlsácia, onde teria contado com a contribuição de quarenta e seisfreiras durante a produção. O lugar de escrita dessa compilação ainda é incerto, assim como a identidade das freiras que trabalharam nesta obra.[107][15] Por mais que tivesse a intenção de ser umaantologia, a compilação de Langsberg é considerada umaenciclopédia. A própria autora comparou seu trabalho ao de uma abelha que coleta mel de diferentes flores. Langsberg buscou diferentes fontes de conhecimento para escrever seu livro, como a filosofia e a história sagrada. A enciclopédia de Landsberg se ateve ao estudo dapintura,mitologia,história egeografia.[108][15]
Num primeiro momento, o fornecimento damatéria-prima necessária para a produção dos livros era suprida pelos monastérios. Os monges utilizavam os animais criados no ambiente monástico para a produção das penas de aves, usadas para escrever, e para a produção dopergaminho. Eram raros os casos em que o e pergaminho era comprado de comunidades que rondavam o monastério.[109] Principalmente entre os séculos VII e VIII, por conta do alto preço do produto, é comum o seu reaproveitamento para a escrita de outra obra. Como forma de não se gastar muito para comprar novos materiais, os monges raspavam os pergaminhos já usados, mas sem grande importância em seu conteúdo, para que pudessem escrever novos livros.[110] Porém, a partir dos finais doséculo XI e o começo doséculo XII é perceptível o impacto dorenascimento do século XII, com o nascimento deuniversidades e o desenvolvimento do ambiente urbano na Europamedieval, assim como uma baixa no protagonismo monástico em relação à produção de livros.[111]
A partir doséculo XII o pergaminho passou a ser, na maioria dos casos, vendido porartesãos que desenvolviam suas funções nas áreas urbanas, o que não impossibilitou a existência de monastérios onde ainda se produzia a matéria prima para os livros.[112] Os chamados pergaminheiros se diferenciavam dos copistas pois lidavam com o processo de fabricação de pergaminhos e não com a confecção de manuscritos. Tanto produtores de papel quanto produtores de pergaminho eram chamados de pergaminheiros.[87][113]
Os fabricantes de pergaminho poderiam adquirir o couro para a produção de diversas formas: através de açougueiros, matadores, vendedores de peles ou artesãos que revendiam materiais.[114] O mercado era grande o suficiente para que o pergaminho fosse vendido e comprado em cidades diferentes de onde omanuscrito iria ser produzido.[115] O mesmo se passava com o papel. Sabe-se que oscriptorium deAfonso X importava papel do mundoislâmico, quando este tipo de suporte para a escrita ainda não tinha tomado a proporção que chegaria a alcançar na produção dos livros a partir doséculo XIII.[116]
A demanda por pergaminhos era muito grande e o número de produtores disponível na maioria dos casos era baixo. EmCastela, entre os séculos XIII e XV, não se encontravamcorporações de ofício ligadas à produção de manuscritos. Por conta deste baixo número de produtores disponível, os copistas poderiam trabalhar comoiluminadores, assim como iluminadores poderiam trabalhar em diferentes funções. Neste contexto de desligamento das relações mais estreitas e internas com o mundo da produção eclesiástica, a partir doséculo XV artesãos do livro também poderiamaglutinar-se nas cercanias dasuniversidades, onde se tinha uma demanda crescente por seus serviços. Neste contexto, é grande a presença de artesãosjudeus e de mulheres ligadas à produção e venda de pergaminhos de couro.[117] Esta função foi desvalorizada por conta da necessidade de se lidar com carniça, produtos químicos para a limpeza de peles, além do duro trabalho braçal que demandava a produção.[118][119]
Miniatura de dedicação. Tradução do livroTratado sobre a oração dominical sendo entregue por Jean Miélot paraFelipe III,Duque de Borgonha. 1454-1457
Aminiatura de dedicação tinha por objetivo demonstrar, através de uma imagem, acerimônia dedoação dolivromanuscrito. A imagem geralmente mostra a pessoa que está doando o livro com a cabeça baixa ou ajoelhada enquanto entrega o manuscrito para o receptor.[120] O doador poderia ser um membro doclero, dacorte, ummecenas, o autor ou o tradutor do manuscrito. Porém, em alguns casos, o mecenas também pode ser o receptor do livro que, por regra, aparece nailuminura mais alto do que o doador e ambos são representados com roupas que identificam a sua origem social. Entre os receptores de miniaturas de dedicação mais usuais podemos encontrarJesus Cristo, avirgem Maria,santos,imperadores,reis enobres.[121] Aiconografia das miniaturas tem origem naAntiguidade Clássica e se relaciona com as oferendas aosdeuses ou imperadores.[122]
Acredita-se que o primeirocódice a conter miniaturas de dedicação seja o deDioscórides de Viena, doado à princesabizantinaAnicia Juliana, em 512. A Primeira Bíblia do rei francêsCarlos II também apresenta uma miniatura de dedicação, data do ano de 845 e foi doada ao pelo abadeMartinho de Tours. Outro exemplo é oCodex Hitda, evangelhos comissionados pelaabadessa Hitda deMeschede e dedicados àSanta Valburga durante o domínio dadinastia otoniana.[123] Livros com miniaturas de dedicação também foram publicados emLeão e emCastela, como oLivro de Horas de Fernando e Sancha, de 1055, assim como o livro doscriptorium afonsino, doséculo XIII chamadoLivro das Formas e das Imagens, dedicado aAfonso X.[124] Noséculo XV,Cristina de Pisan o presenteou a rainhaIsabel da Baviera com suas obras coletivas, códice construído entre 1410 e 1416.[125]
Pode-se dividir as miniaturas de dedicação em dois momentos: antes e depois doséculo XIII. No primeiro momento, a paisagem das miniaturas era normalmente uma igreja e o receptor também estava ligado à igreja católica. No segundo momento, a partir do desenvolvimento do ambiente urbano e dasmonarquias, as miniaturas de dedicação são secularizadas e os receptores passam a ser, também, pessoas ligadas às cortes. Posteriormente, noséculo XIV, o manuscrito passa a ocupar um status de obra de arte e sua leitura se converte em atividade intelectual que representa valores estéticos e econômicos daaristocracia. Assim as imagens tornam-se mais complexas ao passo em que evidenciam diferentes hierarquias sociais através de detalhes, cores e gestos. É também a partir doséculo XIV que as mulheres começam a ser representadas com mais frequência nas miniaturas, em especial como mecenas e como receptoras.[122]
É comum encontrar nosmanuscritos medievais erros de escrita cometidos porcopistas. Entre as principais causas de erros ortográficos estão a falta de familiaridade com a língua na qual se estava escrevendo e a desatenção. Além disso, poderia haver uma troca de palavra por umsinônimo feita intencionalmente pelo escriba, mas que acabava sendo escrito da forma errada.[126] Outros motivos que poderiam levar os copistas a cometer erros na escrita era a baixa iluminação do lugar onde escreviam, a penosa e longa carga de trabalho e a cansativa repetição do mesmo movimento por horas. Um dos exemplos mais ilustrativos destes erros aconteceu nocódice conhecido comoBíblia Maldita, escrita noséculo XVII. Na hora de escrever o sextomandamento, o copista se confundiu e em vez de condenar a prática doadultério, a bíblia maldita acaba por incentivar o leitor a cometer este pecado ao conter as palavras "cometerás adultério" ao invés de "não cometerás adultério".[127]
Reclamar da negligência dos copistas, de seus erros de tradução e de ortografia, eram atitudes recorrentes desde ao menos apatrística.[128] Por outro lado, entre as preocupações constantes dos autores cristãos e daliteratura medieval em geral estavam o mapeamento e o detalhamento das atividades dodemônio.[129] Era uma prática comum naIdade Média explicar o que dava errado a partir da atuação de demônios. Foi inventado um demônio para praticamente todo mal que acontecia na vida cotidiana.[130]
É difícil identificar exatamente quando o mapeamento das atividades dos demônios começaram a ser feitas. Sabe-se, porém, que desde aAntiguidade os olhos e as cabeças dos demônios eram raspados das imagens por medo de possíveis interações dele com quem estava olhando para a imagem.[131] Também pode-se afirmar que no monastério de Silos, desde o ano 1100, já se conheciam os diferentes demônios que serviam oDiabo, demônio principal.Titivillus era um desses demônios, que contribuía, em especial, para que os escribas cometessem os mais diversos erros ao exercerem as suas funções noscriptorium.[130] NosSermones Vulgares deJacques de Vitry, publicado por volta de 1220, encontramos a descrição de um demônio carregando um pesado saco cheio de erros gramaticais, pensamentos ociosos e palavras impróprias proferidas durante uma missa. Pouco mais tarde, Caesarius de Heisterbach, em seuDialogos Miraculorum, finalizado em torno do ano 1230, falava também de um certo demônio que com uma mão saqueava palavras erradas que causam tumulto e confusão. Com a outra mão, os erros eram levados ao ombro oposto, onde seriam igualmente depositados em uma grande sacola.[132]
É justamente como demônio do saco que a personagem Titivillius é nomeada pela primeira vez. Não parece haver significado explícito para seu nome, uma vez que o demônio já existia antes de ser assim nomeado. Porém, sabe-se que em 347, na obra Cassiana,Plauto utiliza a palavratitivicullum para falar sobre algo muito pequeno, ou sem importância.[130] NoTractatus de Penitentia,João de Gales apresenta em versos a imagem de Titivillus, o capeta que "recolhe os fragmentos dessas palavras, com as quais ele enche seu saco mil vezes por dia".[133]
Noséculo XIV, a imagem do demônio do saco se associa mais e mais à imagem do demônio dos escribas, tendo impacto relevante no imaginário das ordens monásticas, assim como nas representações de monges ociosos que não realizavam seu trabalho corretamente. Estudiosos apontam que é noséculo XV que Titivillus torna-se o demônio patrono dos escribas, sendo acusado como responsável por incitá-los aos erros em cópias assim como na redação de manuscritos.[134]
Noséculo XII, osscriptoria monásticos começam a conviver cada vez mais com centroslaicos e urbanos de escrita. Por volta de 1139, o Livro das Ordens (Liber Ordinis) daabadia de São Vítor emParis registra a existência de escribas que trabalhavam na cidade por encomenda. A situação se intensifica no século seguinte. Com a cadeia produtiva das obras escritas cada vez mais complexa, envolvendo redes de iluminadores, copistas, diagramadores e papeleiros, o mercado começa a ser dominado pelos vendedores de livros. Um bom exemplo desse período é o ateliê deGiovannino de Grassi, que atendia pedidos de várias partes da Europa fazendo concorrer em seu estilo ailustração científica com aornamentação lombarda.[60]
Com a invenção do sistema mecânico detipos móveis noséculo XV, oscriptorium cede sua centralidade aoatelier.[135]Johannes Trithemius, abade deSponheim, escreveu em 1492 o livreto De laude scriptorum para celebrar as glórias de uma atividade cada vez mais ameaçada pela disseminação de obras impressas em papel. A obra defendia os "pilares do estilo de vida monástico", como por exemplo a escrita e as orações, comemorando nomes ligados àscriptoria famosos como os deCassiodoro,Beda,Alcuíno,Rabano Mauro ePedro Damião. A cópia de manuscritos era vista por Trithemius como a mais alta das atividades manuais a serem preservadas pelos monges por razões pedagógicas e para incentivar a disciplina religiosa.[136] Alguns centros tradicionais de produção livreira tentaram se adaptar aos novos tempos. Esse é o caso deSanta Cruz, em Coimbra, que a partir da década de 30 doséculo XVI começa a contar com uma tipografia dentro do mosteiro.[137]
Produções literárias e cinematográficas contemporâneas nutrem-se dos mistérios dosscriptoria medievais. O interesse pela história da criação, cópia,iluminação e transmissão dosmanuscritos daIdade Média aproxima os produtos culturais contemporâneos da pesquisafilológica,erudita eacadêmica, dando vida aos espaços de leitura e escrita dosmosteiros e figurando-os a meio caminho do passado histórico e doimaginário que temos dele. Nessas figurações, o passado histórico, representado nas narrativas doshistoriadores, encontra um passado prático, mobilizado e significado segundo problemas da atualidade.[138]
Dormitório do Mosteiro Eberbach empregado comoscriptorium no filmeO nome da rosa
Noromance históricoO Nome da Rosa, o medievalista e escritoritalianoUmberto Eco prepôs reconstruir de modo ficcional um manuscrito perdido. Nele, um velhomonge conta a história de uma série de assassinatos ocorridos em um mosteiro do norte da Itália no início doséculo XIV. Junto a seu mestre, ofranciscano Guilherme de Baskerville, o narrador Adso, então muito jovem, busca resolver os crimes na medida em que continuam a ocorrer. O romance é organizado em capítulos que seguem o horário dastarefas espirituais ao longo de sete dias: matinas (2h30min às 3h da madrugada), laudes (5 e 6 horas da manhã), primeira (7h30min), terceira (9 horas), sexta (meio-dia), nona (14 e 15 horas), vésperas (16h30min) e completa (6 horas).[139] Ainda no primeiro dia, logo após a nona hora, os dois personagens principais entram noscriptorium.[140]
Localizado no segundo andar do Edifício, logo abaixo da ricabiblioteca, o espaço de leitura e de escritura é descrito pelo narrador da seguinte forma:
Chegados ao topo da escada entramos, pelo torreão setentrional, noscriptorium e aqui não pude conter um grito de admiração. O segundo andar não era bipartido como o inferior e se oferecia portanto aos meus olhos em toda sua espaçosa imensidão. As abóboras, curvas e não muito altas (...), sustidas por robustas pilastras, encerravam um espaço difuso por excelente luz (...) As vidraças não eram coloridas como as da igreja, e os encaixes de chumbo prendiam quadrados de vidro incolor, para que a luz entrasse de modo mais puro possível, não modulada por arte nenhuma, e servisse à sua finalidade, que era iluminar o trabalho de leitura e de escritura. (...) Antiquários, livreiros, rubricadores e estudiosos estavam sentados cada um à própria mesa, uma mesa embaixo de cada uma das janelas. (...) os monges que trabalhavam noscriptorium estavam dispensados dos ofícios da terceira, da sexta e da nona para não precisar interromper o seu trabalho durante as horas de luz. (...) Cada mesa tinha todo o necessário para miniaturar e copiar: os chifres de tinta, penas finas que alguns monges estavam afiando com uma faca afiada, pedra-pome para deixar liso o pergaminho, réguas para traças as linhas sobre as quais seria estendida a escritura. Junto a cada escriba, ou no topo do plano inclinado de cada mesa, ficava uma estante, sobre a qual apoiava o códice a ser copiado, a página coberta por moldes que enquadravam a linha que era transcrita no momento. E alguns tinham tintas de ouro e de outras cores. Outros, porém, estavam apenas lendo livros, e transcreviam apontamentos em seus cadernos particulares ou tabuletas.
Apesar donarrador comparar oscriptorium do mosteiro fictício ao daabadia de São Galo, já foram apontadas outras inspirações para a literatura deUmberto Eco. O cenário labiríntico da biblioteca anexa, com escadas e caminhos apertados, além do trabalho escriturário interior, foi visto como tendo sido inspirado pelasiluminuras dos beatos de Liébano produzidas em São Salvador deTábara.[141][142]
Nasérie de televisãoVikings temos cenas que reconstroem vilas nórdicas, fortalezas, cortes e cidades cristãs, além de umscriptorium monástico. A série é inspirada em fontes medievais, e foi escrita e criada porMichael Hirst para a emissoraHistory. A direção mobilizou um grande trabalho derecriação histórica[143]. No segundoepisódio da primeira temporada, um bando de guerreirosescandinavos alcança por mar o norte da Inglaterra, entãoReino da Nortúmbria. As tomadas que seguem representam o saque do mosteiro deLindisfarne em 793. Elas introduzem também o personagem Athelstan, mongecopista eiluminador, figura central nas primeiras três temporadas. As referências ao apocalipse e aos dragões que em meio à tempestade anunciam a chegada de um bando do norte leva o espectador a crer que Athelstan estivesse alternando a leitura do profetaJeremias com a escrita de uma das versões daCrônica Anglo-Saxônica.[144]
A animaçãoUma Viagem ao Mundo das Fábulas contou com um intenso trabalho derecriação histórica. A atmosfera dodesenho animado buscou capturar o clima das florestas e mosteiros daHibérnia medieval. Os produtores Tomm Moore e Ross Stewart projetaram as imagens doscriptorium e de seus personagens em uma viagem àilha de Iona, próximo às ruínas do monastério fundado porColumbano no final doséculo VI.[145] O enredo se passa noséculo IX, e gira em torno das aventuras de Brendon, um pré-adolescente de 12 anos de idade. Ele vive no mosteiro próximo a uma vila remota assediada por gruposbárbaros, e precisa recuperar oLivro de Kells, também conhecido como Grande Evangeliário deSão Columba. A animação foi indicada aoOscar em 2009.[145]
↑Neste caso,burguesia não diz respeito à acepção moderna da palavra, enquanto classe social dominante do sistema capitalista, mas sim a comerciantes medievais que viviam nos burgos.[43]
↑Quando nos referimos a cidades italianas na Idade Média, estamos falando daquelas cidades que constituem oReino Itálico, sendo que a unificação italiana, no território que hoje conhecemos (conhecida comoRisorgimento), só acontece noséculo XIX.[45]
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