Niilismo (do latimnihil, nada) é uma doutrina filosófica que atinge as mais variadas esferas do mundo contemporâneo (literatura,arte,ciências humanas, teorias sociais,ética emoral) cuja principal característica é uma visão cética radical e sobretudo pessimista em relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções. É a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao “por quê”. Os valores tradicionais depreciam-se e os "princípios e critérios absolutos dissolvem-se". "Tudo é sacudido, posto radicalmente em discussão. A superfície, antes congelada, das verdades e dos valores tradicionais está despedaçada e torna-se difícil prosseguir no caminho, avistar um ancoradouro".[1]
O niilismo, de acordo com a perspectiva deGianni Vattimo, filósofo niilista italiano, pode ser considerado como um movimento “positivo” — quando pela crítica e pelo desmascaramento nos revela a abissal ausência de cada fundamento, verdade, critério absoluto e universal e, portanto, convoca-nos diante da nossa própria liberdade e responsabilidade, agora não mais garantidas, nem sufocadas ou controladas por coisa alguma. Mas também pode ser considerado como um movimento “negativo” — quando nesta dinâmica prevalecem os traços destruidores eiconoclastas, como os do declínio, do ressentimento, da incapacidade de avançar, da paralisia, do “vale-tudo” e do célebresilogismo ilustrado pela frase de Ivan Karamazov, emOs Irmãos Karamazov personagem deDostoiévski: "Se Deus não existe, então tudo é permitido"[2] (na verdade essa é uma interpretação de Jean Paul-Sartre em relação a frase:“[…]é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo é permitido […]Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim”).[3]
Mais comumente, o niilismo é apresentado sob a forma deniilismo existencial, que argumenta que a vida é sem sentido objetivo, propósito ou valor intrínseco. No que diz respeito ao universo, o niilismo existencial postula que um único ser humano ou mesmo toda a espécie humana é insignificante, sem propósito e irrisória a ponto de não mudar em nada a totalidade daexistência. Dada esta circunstância, a própria existência — toda a ação, o sofrimento e sentimento — é, em última instância, sem sentido e vazia.
EmThe Dark Side: Thoughts on the Futility of Life (1994), Alan Pratt demonstra que o niilismo existencial, de uma forma ou de outra, tem sido uma parte da tradição intelectual ocidental desde o início, presente em obras de filósofos comoEmpédocles e Hegésias. Durante o renascimento,William Shakespeare eloquentemente resumiu a perspectiva do niilista existencial quando, nesta famosa passagem perto do fim deMacbeth, ele tem Macbeth a derramar seu desgosto pela vida:
Apaga-te, apaga-te, chama breve! A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre ator que por uma hora se espavona e se agita no palco, sem que depois seja ouvido; é uma história contada por idiotas, cheia de fúria e barulho, que nada significa.
O 'nada' revela cada indivíduo como um ser isolado jogado em um universo estranho e sem resposta, impedido para sempre de saber, obrigados a inventar o que significa. É uma situação que é nada menos que um absurdo. Escrevendo a partir da perspectiva iluminada doabsurdo,Albert Camus (1913-1960) observou que a situação deSísifo, personagem daMitologia Grega, condenado à eterna luta inútil, era uma metáfora excelente para a existência humana (O Mito de Sísifo,1942).[4]
Ao se deparar com o vazio da existência, o indivíduo tem sua vida prática profundamente alterada. EmO Vazio da Máquina (2007), André Cancian descreve o abismo niilista:
É possível que, por meio do pensamento, ao compreendermos nossa condição, venhamos a entrar num estado deluto pela "morte da realidade", por assim dizer, já que para nós a realidade é nossa compreensão da realidade, e a destruição dos alicerces de nossacosmovisão pode ser algo bastante difícil de administrar, sendo comum que haja episódios de ansiedade e angústia nesse processo indigesto.(…) “O sentimento de que tudo nunca passou de uma fantasia nos esmaga. A vida é um sonho dentro de uma máquina”. Diante disso, ficamos atônitos, perplexos, e 'luto' é a melhor palavra que nos ocorre para descrever esse sentimento de que algo morreu.(…)“O modo como pensamos e encaramos o mundo corresponde exatamente ao niilismo, no qual tudo perde o sentido e a vida fica suspensa no nada, perfeitamente consciente de si mesma e de sua condição precária. A consciência da indiferença da realidade nos chega como algo corrosivo, como um silêncio que escarnece todos os nossos sonhos.”A superação do consequente efeito paralisante é, segundo Cancian, a rendição ao subjetivo.“Não há para onde fugir: temos de encarar nossa condição de existência em nosso elemento, asubjetividade. São nossas pequenas fantasias humanas que apesar de todo o nada, nos permitem levar a vida adiante, ainda que isso não faça sentido algum”.[5]
As primeiras ocorrências do termo remontam àRevolução Francesa, quando foram definidos como “niilistas” os grupos que não eram nem a favor nem contra a Revolução. Por outro lado, indo além da pretensa paternidade do termo atribuída ao grande escritor russoTurgueniev, no livroPais e Filhos, o primeiro uso propriamente filosófico do conceito pode ser localizado no final do século XVIII, ao longo dos debates e das disputas que caracterizam a fundação doidealismo — mais especificamente na carta escrita em 1799 deF. H. Jacobi aJohann Fichte, na qual o idealismo é acusado de ser um niilismo. Filósofos comoFriedrich Schlegel eHegel intervêm na discussão servindo-se do termo.
Na Rússia, uma vez saído do restricto âmbito filosófico e literário para o plano social e político, o niilismo passa a designar um movimento de rebelião contra a ordem estabelecida, o atraso, o imobilismo da sociedade e os seus valores. Muito dessa postura engajada do niilismo advém da influência exercida porNietzsche, com quem a reflexão filosófica sobre o niilismo alcança um alto grau de teorização, através de um pensamento radical que, partindo dométodo genealógico, pretende demonstrar as origens mais remotas do fenômeno, como o platonismo e o cristianismo, denunciando a tradiçãometafísica como a grande causa do niilismo contemporâneo. Contudo, abraçar o niilismo acarretado pela metafísica é a solução encontrada para o período, uma vez que se trata de reconhecer o "nada" que subjaz a toda e qualquer instituição de sentido. Assim, Nietzsche não só diagnostica a doença do nosso tempo, como tenta indicar um remédio.[1]
O século XX é, como ele diz claramente, "o século do niilismo que impregna a atmosfera cultural de toda uma época e se transforma numa “categoria” fundamental no laboratório filosófico contemporâneo". Dentre os autores e movimentos mais significativos que se defrontaram com o conceito, destacam-se:Martin Heidegger, partindo de uma profunda crítica ontológica ao niilismo e suas consequências;Ernst Jünger, com sua análise niilista da condição humana, assinalada pela figura do trabalhador que retira o ser-humano de sua essência;Gilles Deleuze, como grande expoente da corrente filosófica em França; a filosofia "desesperada e negativa" deEmil Cioran; a visão crítica do niilismo como essência do Ocidente deEmanuele Severino; a obra deJacques Derrida; as reflexões deJean-Luc Nancy; o “pensamento fraco” e a apologia do niilismo deGianni Vattimo.
Niilismo passivo — SegundoNietzsche, o niilismo passivo, ou niilismo incompleto, podia ser considerado uma evolução do indivíduo, mas jamais uma transvaloração ou mudança nos valores. Através doanarquismo compreende-se um avanço; porém, os valores demolidos darão lugar para novos valores. É a negação do desperdício da força vital na esperança vã de uma recompensa ou de um sentido para a vida; opondo-se frontalmente a autoressocráticos e, obviamente, à moral cristã, nega que a vida deva ser regida por qualquer tipo de padrão moral tendo em vista um mundo superior, pois isso faz com que o homem minta a si próprio, falsifique-se, enquanto vive a vida fixado numa mentira. Assim no niilismo não se promove a determinação de valores fixos, postulados, uma vez que tal determinação é considerada uma atitude negativa.
Niilismo ativo — ou niilismo-completo, é onde Nietzsche se coloca, considerando-se o primeiro niilista de facto, intitulando-se o niilista-clássico, prevendo o desenvolvimento e discussão de seu legado.Este segundo sentido segue o mesmo rumo, mas propõe uma atitude mais ativa: renegando os valores metafísicos, redireciona a sua força vital para a destruição da moral. Após essa destruição, tudo cai no vazio: a vida é desprovida de qualquer sentido, reina oAbsurdo e o niilista não pode ver alternativa senão esperar pela morte (ou provocá-la). Há de se considerar, contudo, que Nietzsche (2006) não indicava práticas suicídas, como visto em romances como "Quando Nietzsche chorou" de Irvin D. Yalom ou o próprio filósofo indicou em obras como "A Gaia Ciência". Neste livreto, clássico do pensador, indaga na primeira seção, se "aquele que quer chegar até afelicidade do céu' deve também se preparar para ser 'triste até a morte"? (NIETZSCHE, 2006, p. 49), o autor respondeu seu autoquestionamento no parágrafo final desta seção - intituladaDo objetivo da ciência: "É certo que com aciência se pode favorecer um e outro objetivo. Talvez agora se conheça mais a ciência por causa de sua faculdade de privar os homens de seu prazer e de torná-los mais frios, mais insensíveis, mais estóicos. Mas nada impede também que se descubra nela faculdades degrande dispensadora de dores! - E então talvez fosse descoberta ao mesmo tempo sua força contrária, sua prodigiosa faculdade de fazer brilhar para a alegria um novo céu estrelado!" (NIETZSCHE, 2006, p. 49). Para Nietzsche, o fim último do niilismo: no momento em que o homem nega os valores deDeus, deve aprender a ver-se como criador de valores e no momento em que entende que não há nada de eterno após a vida, deve aprender a ver a vida como umeterno retorno, sem o qual o niilismo seria sempre um ciclo incompleto.
Como Nietzsche previra, o assunto ganhou grande atenção, mas só após o advento daPrimeira Guerra Mundial e dos avanços científicos. Nesta época, sobrelevaram autores comoSpengler eMax Weber. Mas, pouco mais tarde, foramHeidegger eJürgen Habermas que, discutindo o niilismo, legaram notáveis reflexões.
Naturalmente, o termo encontrou novos significados e derivações, das quais podemos destacar o niilismo-existencialista, deSartre, e o niilismo-gnóstico/niilismo-absurdista, deAlbert Camus.