O termoMeritocracia,neologismo — dolatimmereo ('ser digno, merecer') e dogrego antigoκράτος, transl.krátos ('força, poder') — estabelece uma ligação direta entre mérito e poder.[1]
Tanto a palavramérito quanto a palavrapoder têm diversos significados, o que faz com que o termomeritocracia sejapolissémico.[nota 1] Desta maneira o termo pode tanto: ser interiorizado como um princípio dejustiça (às vezes qualificado deutópico),[2] e ainda, simultaneamente, criticado como um instrumentoideológico voltado para a manutenção de umsistema políticodesigual.[3][4]
Ummodelo meritocrático é um princípio ou ideal deorganização social que busca promover os indivíduos — nos diferentes espaços sociais: escola, universidade, instituições civis ou militares, trabalho, iniciativa privada, poder público, etc — em função de seus méritos (aptidão, trabalho, esforços, competências,inteligência,virtude) e não de sua origem social (sistema declasses), de sua riqueza (reprodução social) ou de suas relações individuais (fisiologismo,nepotismo oucooptação).
Sociólogos,pedagogos efilósofos discutem como explicar o modelo meritocrático onde
“ | nas sociedades contemporâneas, os indivíduos o interiorizam e o tratam como um modelo dejustiça social. | ” |
| —Carole Daverne‑Bailly. |
Estes pesquisadores destacam as falhas e as insuficiências desse modelo: ausência real deigualdade de oportunidades, sua incapacidade de resolver, sozinho, asdesigualdades (sociais, culturais, sexuais, etc) e sua limitada eficácia como "princípio de justiça", todas sujeitas a críticas. Para a maior parte dos pesquisadores, a verdadeira meritocracia — aquela que ofereceria, a cada um, aquilo que se mostrasse digno de obter — jamais existiu, em razão da falta, por exemplo, de medidas eficazes para compensar a desvantagem dos indivíduos, sejam elas biológicas (desde condições genéticas, até limitações fisiológicas), sociais ou econômicas.[5]
SegundoMarie Duru-Bellat,[nota 2] a noção de mérito tem um caráterconsensual e por isso "a meritocracia (...) gradualmente se impôs como o mais importante princípio de justiça, sobretudo na escola onde está no centro de seu funcionamento".[7] ParaFrançois Dubet[nota 3] — que considera que "este modelo de justiça e igualdade tem uma força essencial: não existe nenhum outro!" — a meritocracia é uma "ficção necessária".[8] Diversos pesquisadores — considerando que a ordem criada por ela não é uma verdadeira meritocracia — a qualificam deideologia meritocrática, ou ainda de "mistificação", até mesmo demito, dado o efeito prejudicial que apresenta quando, sem uma reflexão crítica sobre a natureza dos sistemas aos quais é aplicada (sociedade, Estado, escola, mundo do trabalho, etc), sem uma definição clara da noção de mérito ou da modalidade de recompensa e sem as ferramentas complementares para correção das desigualdades preexistentes, o modelo meritocrático produz efeitos muito distantes do ideal a que se propõe. Por exemplo ao reproduzir asdesigualdades sociais, acaba por legitimá-las, atribuindo aos "perdedores" toda a responsabilidade por seu "fracasso".[4]
A palavra "meritocracia" foi utilizada pela primeira vez no livroThe Rise of the Meritocracy (A ascensão da meritocracia, em tradução livre), deMichael Young (1958), o criador do termo.[9]
No livro, uma "ficção-sociológica" distópica e satírica que pretende alertar contra os perigos de um sistema social baseado em medições padronizadas de capacidade, a palavra carrega um conteúdo negativo, pois a história trata de uma sociedade futura na qual a posição social de uma pessoa seria determinada pelo seuquociente de inteligência e pelo seu esforço. Nele o autor desenvolve a ideia de que, longe de ser ideal, este modelo, quando levado a extremos, produz "situações insuportáveis para os 'sem mérito', que acabam abandonados a sua própria sorte".[10] Young utiliza a palavramérito em um sentido pejorativo, diferente do comum ou daquele usado pelos defensores da meritocracia.[11]
Young descreve uma sociedade onde este modelo deixa os indivíduos na base dapirâmide social incapazes de se defender dos abusos de uma eliteautocrática. A aplicação integral do modelo meritocrático cria "uma sociedade de pesadelo para a população e danosa às relações sociais".[5]
Diversos especialistas já analisaram o conceito de meritocracia.
Frédéric Gonthier[nota 4] entende que:[12]
“ | O modelo de justiça social predominante nas sociedades democráticas é normalmente apresentado como uma combinação de igualdade de oportunidades e mérito. Este modelo de justiça social se baseia em uma duplaabstração téorica: a igualdade de oportunidades pressupõe uma indefinição teórica da posição social em relação à origem social e o mérito pressupõe, de maneira complementar, uma definição teórica da posição social a partir das contribuições ou qualidades individuais. | ” |
| —Frédéric Gonthier. |
Agnès van Zanten[nota 5] faz a seguinte análise do significado e do alcance do conceito:[13]
“ | Se entendemos que a meritocracia é um sistema no qual as posições sociais são definidas exclusivamente com base no valor de cada um, sendo este último medido objetivamente por instâncias e autoridades incontestáveis, que seriam, nas sociedades onde vigora o formato escolar, a própria escola e seus professores, fica evidente que a meritocracia nunca existiu nem na França e nem em qualquer outro país. No entanto, se considerarmos, de uma maneira menos abstrata e mais sociológica, que a meritocracia é, sobretudo, um instrumento de justificação e um conjunto de dispositivos através dos quais a escola, como instituição, e os professores, como categoria profissional, pretendem exercer um poder significativo sobre a sociedade, desempenhando um papel importante na seleção dos mais aptos, fica possível estudar empiricamente a extensão de sua influência. | ” |
| —Agnès van Zanten. |
Élise Tenret, socióloga, observa — emLes 100 mots de l'éducation (em portuguêsAs 100 palavras da educação) — que o "modelo meritocrático é particularmente valorizado nas sociedades modernas na medida em que sugere ser capaz de melhor alocar os cargos em função das capacidades dos candidatos". Ela destaca que a utilização ideológica do termo ganhou força ao "permitir às sociedades democráticas e desiguais justificar as desigualdades sociais (...) Desse modo, se as melhores posições são ocupadas pelos indivíduos com mais mérito, isso resulta em que, aqueles que não obtiveram sucesso devem assumir inteiramente a responsabilidade por seu fracasso".[14]
Para Vincent Dupriez[nota 6] a noção geral de meritocracia "refere-se ao princípio que estabelece que uma sociedade justa é aquela que dá a todos o lugar que merecem, de acordo com seus esforços e talentos, em vez de um lugar arbitrariamente herdado".[15]
Frédéric Gonthier[nota 4] questiona a coerência da relação entreigualitarismo e meritocracia — assim como a própria validade da expressão, proposta por François Dubet, em 2004: "a igualdade meritocrática de oportunidades" — e pergunta se "a combinação entre 'igualdade de oportunidades' sociais e mérito" é "capaz de compor um modelo normativo intrinsecamente coerente?"[12] Georges Felouzis[nota 7] considera, por sua vez, que a igualdade de oportunidades é um componente essencial do mérito, de maneira que não se opõem.[16]
De acordo comMarie Duru-Bellat,[nota 2] "a meritocracia (...) gradualmente se impôs como o mais importante princípio de justiça, sobretudo na escola onde está no centro de seu funcionamento". O sucesso e o caráter "consensual" da ideia de mérito resulta, em parte, por sua "capacidade de conciliar o idealigualitário das sociedades democráticas e suas desigualdades reais entre suas posições sociais". A autora — destacando o quanto este princípio deixa a desejar e observando que segue havendo uma forte relação causal entre o meio social de origem e o desempenho acadêmico de cada um — reforça que a questão da igualdade de oportunidades não recebe a merecida atenção e que medidas como a discriminação positiva "não corrigem o problema central do método e nem desfazem a força com que desigualdades sociais impactam de uma maneira importante o desenvolvimento das crianças". Marie Duru-Bellat conclui "que não se trata de rejeitar a meritocracia como um todo, mais sim o usoexclusivo ouexcessivo do mérito como princípio de justiça. Se trata de articulá-lo com outras lógicas, mais individualizáveis, como por exemplo o daigualdade".[6] Lembrando que a ausência da noção de mérito no sistema educativo corre o risco de nutrir um "sentimento de injustiça", ela propõe adotar uma posição intermediária entre igualdade e mérito e observa: "não é interessante que se reforce excessivamente a igualdade pois dessa maneira se ignoraria os méritos individuais, mas também não devemos permitir que a noção de mérito prevaleça pois, dessa maneira, se estabelece uma luta sem misericórdia, muito cruel com os mais fracos".[16][17]
Éric Charbonnier[nota 8] lista alguns fatores que — em certos países,Austrália,Canadá,Finlândia,Japão, etc — permitem atingir melhores resultados educativos: capacitação rigorosa dos professores (que acabam por também se beneficiar do consequente reconhecimento social), coesão das equipes, métodos pedagógicos adaptados aos alunos, redução da carga horária escolar, criação de grupos de reforço para os alunos com pior desempenho, menor índice de repetição de série escolar que na França, etc.[6]
Etimologicamente,aristocracia é um quase-sinônimo demeritocracia.[nota 9] Entretanto, histórica e politicamente, o conceito de aristocracia remete a umsistema de castas privilegiadas de naturezahereditária que difere da natureza individual do sucesso defendido pela meritocracia.
Os primeiros indícios de um mecanismo semelhante à meritocracia remontam àAntiguidade, naChina.Confúcio eHan Fei são doispensadores que propuseram umsistema próximo ao meritocrático. Também podem ser citadosGengis Khan,Oliver Cromwell eNapoleão Bonaparte; cada qual utilizou, noexército e na vidapolítica de seusestados, elementos meritocráticos.[carece de fontes?]
A meritocracia está associada, por exemplo, aoestadoburocrático, sendo a forma pela qual osfuncionários estatais são selecionados para seus postos de acordo com sua capacidade (através deconcursos, por exemplo). Ou ainda — associação mais comum — aosexames de ingresso ou avaliação nasescolas, nos quais não hádiscriminação entre os alunos quanto ao conteúdo das perguntas ou temas propostos. Assim, meritocracia também indica posições ou colocações conseguidas por mérito pessoal.
Embora a maioria dasorganizações seja apologista da meritocracia, esta não se expressa na sua forma pura em nenhum lugar. Governos como o deSingapura e o daFinlândia utilizam padrões meritocráticos para a escolha de autoridades, mas misturados com outros.
O principal argumento em favor da meritocracia é que ela proporcionaria maiorjustiça do que outros sistemas hierárquicos, uma vez que as distinções baseadas na meritocracia não costumam se dar porsexo,raça,riqueza,posição social oudiscriminação positiva. Além disso, em teoria, a meritocracia, através da competição entre os indivíduos, estimularia o aumento daprodutividade e daeficiência na sociedade.
Embora o sufixo "cracia" sugira umsistema de governo, ela possui, na verdade, um sentido mais amplo. Em organizações, pode ser uma forma de recompensa por esforços, geralmente associada à escolha de posições ou atribuição de funções. Atualmente, a palavra "meritocracia" costuma ser frequentemente usada para descrever um tipo desociedade onde riqueza,renda eclasse social são determinadas através de competição, assumindo-se que os vencedores, de fato,merecem tais vantagens. Consequentemente, a palavra adquiriu uma conotação de "darwinismo social", e é usada para descrever sociedades agressivamentecompetitivas, com grandes diferenças de renda e riqueza, em contraste com sociedadesigualitárias.
Governos e organismos meritocráticos enfatizamtalento,educação formal ecompetência, independentemente das diferenças de oportunidade existentes, ligadas àclasse social,etnia ousexo do indivíduo.
Em umademocracia representativa, onde opoder está, teoricamente, nas mãos dos representantes eleitos, elementos meritocráticos incluem o uso deconsultorias especializadas para ajudar na formulação depolíticas e umserviço civil meritocrático para implementá-las.
Um dos problemas para a implementação de um sistema meritocrático é definir exatamente o que cada um entende por "mérito". Para os defensores da meritocracia,mérito significa, aproximadamente,habilidade,inteligência e esforço. Uma crítica comumente feita à meritocracia é justamente a ausência de uma medida específica dessesvalores, além da arbitrariedade de sua escolha. Além disso, o argumento meritocrático pode ser um mero discurso para mascarar ou justificar privilégios.
Em entrevista para aBBC Brasil em outubro de 2020, Daniel Markovits, professor daUniversidade de Yale e escritor do livroThe Meritocracy Trap (A armadilha da meritocracia, em tradução livre) disse que a meritocracia é uma farsa, acentua a desigualdade social e criou um ressentimento na sociedade que ajudou a eleger os presidentes populistasDonald Trump eJair Bolsonaro[18]:
Mérito ou meritocracia é a ideia de que as pessoas devem se destacar não com base na classe social de seus pais, mas com base em suas próprias conquistas — em quão produtivas e habilidosas elas são. O problema do mérito na nossa sociedade é que se tornou um sistema fechado e auto sustentável em que ocorre o seguinte: as elites dão educação aos seus filhos de uma maneira que ninguém mais consegue pagar. Aí, as pessoas que têm acesso a essa educação incrível que ninguém mais consegue pagar, transformam o mercado de trabalho de forma que os trabalhos que pagam os melhores salários são exatamente os que exigem as habilidades que só a educação mais cara proporciona.
É um sistema fechado. Não estamos tratando das pessoas que vão bem na escola na maioria da sociedade, estamos falando de quem faz o seu melhor de acordo com um conjunto de padrões construídos especificamente para favorecê-las. É por isso que o mérito é uma farsa.(...) A meritocracia produz uma elite que diz servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa forma, o que faz é dar a todo o restante da sociedade uma razão poderosa para desconfiar das elites. E um elemento do populismo é a desconfiança em relação às elites. (...) A desigualdade que venho descrevendo é sistêmica, estrutural, mas não é absoluta. É sempre possível para as pessoas — ou por serem excepcionalmente talentosas ou por serem excepcionalmente sortudas — sair da armadilha. Uma sociedade justa e eficiente não faz suas regras e políticas básicas com a exceção em mente, e sim com a maioria das pessoas em mente.
— Daniel Markovits
Notas
Referências
- ↑Young, Michael (29 de junho de 2001).«Down with meritocracy» (em inglês). The Guardian. Politics. Consultado em 24 de dezembro de 2018
- ↑Maroy, Christian (27 de janeiro de 2012).«La méritocratie : seule en cause ?» (em francês). SociologieS. Le Mérite contre la justice. Consultado em 24 de dezembro de 2018
- ↑Bourdieu, Pierre (1989).La noblesse d'État : grandes écoles et esprit de corps. Col: Le sens commun (em francês). [S.l.]: Les Éditions de Minuit. pp. 545–546. 569 páginas.ISBN 2707312789. Consultado em 24 de dezembro de 2018
- ↑abTenret, Élise (15 de dezembro de 2008).«L'école et la croyance en la méritocratie scolaire»(PDF) (em francês).Université de Bourgogne. 410 páginas. Sociologie. Consultado em 24 de dezembro de 2018
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- ↑Rayou, Patrick; Zanten, Agnès Van; Tenret, Élise, eds. (2011). «37 : « Méritocratie »».Les 100 mots de l'éducation. Col: Que sais-je ?, 3926 (em francês). [S.l.]: Presses Universitaires de France. 128 páginas.ISBN 9782130653554. Consultado em 25 de dezembro de 2018.Resumo divulgativo –Lectures (29 de dezembro de 2011)
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- ↑«Farsa da meritocracia cria ressentimento explorado por populistas como Trump e Bolsonaro, diz professor de Yale».BBC Brasil (em inglês). 6 de outubro de 2020. Consultado em 7 de outubro de 2020.Cópia arquivada em 7 de outubro de 2020