Hipólito relata que Marcião era filho de um bispo na cidade deSinope, naprovíncia romana doPonto (atualmente naTurquia).[3] Seu contemporâneoTertuliano o descreve como um proprietário de barcos.[4] Marcião provavelmente foi consagrado bispo, provavelmente um assistente ou umsufragâneo de seu pai em Sinope[4]
Quando encontrou-se com ele,Policarpo de Esmirna chamou-o de"primogênito desatanás" segundoJerônimo.[5]Epifânio afirma que após um começo como umasceta, ele seduziu uma virgem e foi excomungado por seu pai, fazendo com que ele deixasse a sua cidade natal.[6] Este relato já foi contestado por estudiosos, que o consideraram como "fofoca maliciosa". Mais recentemente,Bart D. Ehrman sugeriu que esta "sedução de uma virgem" seria umametáfora para a sua corrupção da Igreja cristã, sendo esta a virgem não deflorada.[7]
Marcião viajou para Roma em 142-143 d.C.[8] Nos anos seguintes, Marcião desenvolveu seusistema teológico e atraiu um grande grupo de seguidores. Ele fez uma notável doação de 200 000sestércios para a Igreja.
Quando os conflitos com osbispos de Roma começaram, Marcião organizou seus seguidores em umacomunidade separada. Ele foi consequentemente excomungado pelaIgreja de Roma e sua doação foi devolvida. Após sua excomunhão, ele retornou para aÁsia Menor, onde continuou a propalar omarcionismo.
O estudo dasEscrituras judaicas juntamente com outros escritos que circulavam na época da igreja nascente (a maioria foi eventualmente incorporada noCânone do Novo Testamento) levaram Marcião a concluir que muitos dos ensinamentos de Jesus Cristo eram incompatíveis com as ações de Deus noAntigo Testamento. A resposta dele para este paradoxo foi o desenvolvimento de um sistemadualista por volta do ano 144 d.C.[8] Esta noção dual de Deus permitiu que Marcião reconciliasse as supostas contradições entre a teologia daAntiga Aliança e a mensagem deBoas Novas.
Marcião afirmava que Jesus Cristo era o salvador enviado porDeus Pai, comPaulo como seu principalapóstolo. Ao contrário da nascente igreja, Marcião declarava que o Cristianismo era distinto e oposto aoJudaísmo. Marcião, contrário ao que muitos acreditam, não afirmou que a Bíblia e as escrituras judaicas eram falsas. Ele acreditava e argumentava que ela deveria ser lida de maneira absolutamente literal, provando assim queYHWH não era o mesmo Deus a quem Jesus se referia. Um exemplo: noGênesis, quando YHWH está andando nojardim do Éden perguntando onde estavaAdão, Marcião interpretava isso como se YHWH tivesse literalmente andando através do jardim em alguma forma de corpo físico e que literalmente não sabia onde estava Adão«Deus Jeová chamou ao homem, e perguntou-lhe: Onde estás?» (Gênesis 3:9). Ele argumentava que isso provaria que YHWH poderia habitar um corpo físico e que YHWH também era capaz de ser ignorante, algo completamente diferente do Pai a quem Jesus se referia.
Marcião afirmava queJesus era o filho do Deus Pai, mas entendia aencarnação de maneiradocética, ou seja, de que o corpo de Cristo era apenas uma imitação de um corpo material. Ele acreditava que Cristo nacrucificação pagou a dívida de pecado que humanidade tinha, absolvendo-a e permitindo que ela então herdasse a vida eterna.[9]
Marcião propôs umcânon bíblico. Porém, seu cânon só tinha onze livros agrupados em duas seções, oEvangelho, uma versão doEvangelho de Lucas[10] e dez cartas do "apóstolo", ou seja, dePaulo, a quem ele considerava como o mais correto intérprete e transmissor da mensagem evangélica de Jesus. Ambas as seções também forampurgadas de elementos relacionados à infância de Jesus, a religião judaica e outros materiais que contestavam a sua teologia dualista.
Marcião também produziu uma obra chamadaAnthiteses, que contrastava oDemiurgo com oDeus Pai.
Marcião é às vezes chamado de o filósofo doGnosticismo. Em alguns aspectos essenciais, ele propôs ideias que se alinham bem com o pensamento gnóstico. Assim como eles, Marcião argumentava que Jesus era essencialmente um espírito aparecendo aos homens e não totalmente humano.[9]
Porém, o marcionismo conceitualiza Deus de uma maneira que não é totalmente conciliável com o Gnosticismo. Para estes, todos os humanos nascem com uma pequena parte da alma divina alojada dentro de seu espírito (similar à noção da "fagulha divina").[9] Deus está, portanto, intimamente conectado a uma parte de Sua criação. A salvação é alcançada ao abandonar o mundo físico (que os gnósticos afirmam que é uma ilusão para aprisionar esta parte de Deus) e abraçar estas qualidades divinas que estão dentro de cada pessoa.[9] Já Marcião, contrariamente, afirma queDeus Pai seria um Deus completamente fora do mundo material. Ele não participou da criação do mundo material (uma criação doDemiurgo) e nem tem conexão alguma com ele. Ele intervém para salvar a humanidade por compaixão apenas.
Marcião figura entre os primeiros heréticos de renome na história da igreja nascente. Sua interpretação alternativa da vida eministério de Jesus Cristo ajudou a inspirar a noção de que certas teologias deveriam sersancionadas como "ortodoxas" e outras, como "heréticas" – um conceito até então desconhecido nos círculos eclesiásticos. Reagindo à popularidade daseita recém-fundada de Marcião, a igreja começou então a sistematizar um conjunto de crenças que seriam consideradas ortodoxas por todo o Cristianismo.
Marcião foi o primeiro líder cristão a propor e delinear umcânon bíblico. Ao fazê-lo, ele estabeleceu uma maneira particular de avaliar os textos religiosos que persiste no pensamento cristão até hoje. Após Marcião, os cristãos passaram a dividir os textos entre os que se alinhavam bem com um "régua de medida" (emgrego:kanōn) de pensamento teológico aceito, e os que promovem a heresia. Esta bifurcação essencial teve um papel essencial na finalização da estrutura da coleção de obras chamada "Bíblia", uma vez que o ímpeto inicial para finalizar o cânon surgiu justamente da oposição à proposta de Marcião.
A igreja que Marcião fundou se expandiu por todo o mundo conhecido na época durante a sua vida e foi uma séria rival para o Cristianismo. Seus aderentes eram fortes o suficiente em suas convicções para manter o extenso poder da igreja por mais de um século. Ela sobreviveu à controvérsia cristã e à desaprovação imperial por muitos séculos.[11]
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↑abTertuliano afirma que os ensinamentos de Marcião começaram 115 anos após acrucificação de Jesus, que ele também afirma ter ocorrido e 26-27 d.C. emTertuliano. «19».Contra Marcião. Jesus Christ, the Revealer of the Creator, Could Not Be the Same as Marcion's God, Who Was Only Made Known by the Heretic Some CXV. Years After Christ, and That, Too, on a Principle Utterly Unsuited to the Teaching of Jesus Christ, I.e., the Opposition Between the Law and the Gospels. (em inglês).I. [S.l.: s.n.].
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↑Tyson, Joseph B.Marcion and Luke-Acts: A Defining Struggle (em inglês). [S.l.: s.n.] contradiz a visão majoritária de que o Evangelho de Marcião seria baseado em Lucas, opinando ao invés disso que o canônico Lucas pode ter sido uma resposta ao Evangelho de Marcião.
↑Tertuliano (1972). Evans, Ernest, ed.Contra Marcião. comments and translation (em inglês). [S.l.]: Oxford University Press. pp. ix
Este artigo incorpora texto (em inglês) daEncyclopædia Britannica (11.ª edição), publicação emdomínio público. -«Marcião» (em inglês). Encyclopædia Britannica (11ª edição). Consultado em 15 de janeiro de 2011. Arquivado dooriginal em 6 de fevereiro de 2012
Este artigo incorpora texto do verbeteMarcion, a 2nd cent. heretic no "Dicionário de Biografias Cristãs e Literatura do final do século VI, com o relato das principais seitas e heresias" (em inglês) por Henry Wace (1911), uma publicação agora emdomínio público.
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