A partir da obra de PlutarcoBíoi parálleloi, que fixa algumas diretrizes básicas do gênero, omundo ocidental passou a conhecer figuras comoPéricles,Licurgo,Alcibíades,Júlio César,Pompeu,Catão de Útica ouMarco Júnio Bruto. A biografia, na maioria das vezes, aborda pessoas públicas como políticos, cientista, esportistas, escritores ou pessoas que, por meio de suas atividades, provocaram um importante impacto para a sociedade. Quando o biografado (pessoa que está tendo a vida contada na biografia) é o próprio autor, chama-seautobiografia.
Não se tem notícia de que o antigoOriente houvesse conhecido o gênero biográfico, ao menos na maneira como ele é conhecido hoje em dia. Ascrônicas sobre osassírios e outros povos, bem como algumas inscrições em túmulos com dados referentes à existência dos mesmos, contêm, sem dúvida, semente do gênero, mas não constituem verdadeiros documentos biográficos. O mesmo ocorre noEgito, onde se registram vestígios biográficos sobrefaraós,sacerdotes e outros personagens ilustres. As fontes mais remotas da arte da biografia devem ser buscadas no patrimônio documental e lendário que nos deixaram os relatos sobre episódios e acontecimentos comuns à vida dospatriarcas e reis deIsrael (Antigo Testamento) e dos heróisépicos das antigas sagasgregas,germânicas ecélticas.
Outro tipo de biografia, embora ainda de natureza embrionária, surge dos ensinamentos desantos esábios, encontrados nos livros proféticos daBíblia, das sentenças e ditos deBuda, dos fragmentos antológicos deConfúcio e das palavras dossete sábios daGrécia antiga, conservadas pela tradiçãodoxográfica. Muitos exemplos também oferece a literatura medo-persa, com suas crônicas de reis. Na literaturaislâmica há um surpreendente perfil biográfico deMaomé, de autor desconhecido, além de esboços já mais elaborados de vidas decalifas,sultões, ministros, cientista, escritores e religiosos do complexo mosaico da cultura muçulmana. NaÍndia, onde os admiradores do gênero sempre juntaram o dado histórico às tradiçõesmitológicas, são inúmeras as tentativas de perfis biográficos de alguns sultõesmongóis que dominaram a região, em especial deAkbar.
A palavra “biografia” foi utilizada pela primeira vez somente noséculo V a.C. e, naantiguidade clássica, caracterizou-se por diferentes tipos de narrativa em prosa que se aproximavam do gênero biográfico de escrita moderna. Os primeiros textos completos encontrados que se relacionaram ao gênero biográfico são os deCornelius Nepos e deNicolau de Damasco, noséculo I a.C.. Além disso, destacam-se como modelos mais amplos os textos dePlutarco eSuetônio, escritos no primeiro século depois deCristo.[1] Entre os gêneros mais comuns na antiguidade, elencam-se obios, documentos dos quais não se possui vestígio, mas que se sabe da existência pela citação indireta de outros autores, e oencômio.[2]
SegundoArnaldo Momigliano, o homem moderno insere todo o discurso biográfico dentro do ramo disciplinar da história, diferindo-se da antiguidade helenística, em que a descrição biográfica não era necessariamente considerada histórica.[3] Na antiguidade, como nas obras de Plutarco e Suetônio, a noção dos autores sobre a personalidade dos indivíduos é estática. Não há um desenvolvimento da personalidade, muito menos um ganho gradual de valores e características.[4] Além disso, a narrativa historiográfica tinha como objetivo a apreensão da realidade dos homens, principalmente em seu caráter coletivo, indo além das ações individuais.[3] Para Momigliano, obios se aproximava mais doantiquarismo do que da história, devido a características específicas como: 1) descrição e esboço de um caráter, de uma personalidade, mesmo que essa personalidade fosse um corpo coletivo; 2) uso de anedotas; 3) descrição direta e adjetivação; 4) episódios emblemáticos de vida que demonstram características de caráter do biografado.[5]
Já o encômio estava diretamente relacionado com aretórica, buscando o elogio e a valorização da personalidade descrita, fugindo de eventos e características que pudessem soar de forma negativa. Nesse sentido, em comparação, obios oferecia uma perspectiva mais neutra de determinado indivíduo, enquanto o encômio se caracterizava na estética exterior do sujeito.[6]
A partir doséculo IV a.C., com o fortalecimento doimpério macedônico e a perda de importância das estruturas políticas gregas, nota-se uma transformação nos gêneros de escrita, com a valorização de determinados indivíduos em posição de destaque no relato histórico (encominum), aproximando-se cada vez mais da história política.[4]
Os dois primeiros grandesbiógrafos da civilização ocidental são, sem dúvida,Tácito ePlutarco. Antecipam-nos, contudo,Platão eXenofonte. Aquele, com suaApologia Sokrátou (Apologia de Sócrates), traça um retrato antesfilosófico do que biográfico do grande pensadorateniense, mas Xenofonte, nasApomnemonéumata Sokrátou (Memórias de Sócrates), oferece visão bem diversa, mais realística, deSócrates, em sua intimidade e vida cotidiana. Em várias outras obras, aliás, Xenofonte continuaria a ser biógrafo, como emAnábase,que relata um episódio de sua própria vida, e naKyropaideia. Ainda na Grécia, não devem ser esquecidos os trabalhos biográficos deAristóxeno de Tarento (para alguns o criador da biografia literária),Dicearco de Messina,Flávio Filóstrato e, sobretudo,Diógenes Laércio (este, porém, já em plenoséculo III, posterior, portanto, a Tácito e Plutarco).
Frequentemente considerada a primeira biografia,De vita et moribus Julii Agricolae (ou simplesmenteAgrícola, como é mais conhecida), deTácito, data do ano98 da nossa era. Trata-se de um elogio às virtudes de seu sogro.
Cabe ainda mencionar, ao fim do período medieval, as contribuições biográficas deFrancesco Petrarca, comDe viris illustribus, e deGiovanni Boccaccio, autor deDe claris mulieribus (Sobre as famosas mulheres) e deDe Casibus Virorum Illustrium (Sobre a vida de homens ilustres), obras que, apesar de seu espírito medieval, já incluem preocupaçõeshumanistas, devendo por isso ser consideradas como obras de transição. De Boccaccio, aliás, é muito mais importante para a evolução deste gênero a suaVita di Dante, também conhecida comoTrattatello in laude di Dante, que, de certa forma, dá início aos modernos métodos de análisepsicológica.
O interesse da mentalidaderenascentista pela personalidade humana, individualmente caracterizada, criou coleções biográficas nacionais edicionários biográficos tanto nacionais como universais, que depois se tornariam muito populares durante oséculo XIX e mesmo até hoje. Tais obras foram favorecidas pela invenção daimprensa e seu número atinge soma bibliográfica espantosa. Os perfis individuais são bem menos numerosos. NaItália destaca-se aVita di Torquato Tasso, deGiuseppe de Manso, além de uma outra deGalileu Galilei, escrita porVicenzo Viviani.
Dominado pelas teses estéticas doBarroco e doClassicismo, oséculo XVII não assinala exemplos particularmente significativos da evolução do gênero biográfico, menos naInglaterra. Um primeiro grande passo foi dado porIsaak Walton, que introduziu diversas modificações na técnica do relato biográfico, passando inclusive a incorporarcartas como fonte de informações no próprio texto de suas obras. Entre 1640 e 1678, Walton escreveu magníficas biografias dos chamadosmetaphysical poets (Donne,Herbert,Hooker,Sanderson). Outro biógrafo de relevo éJohn Aubrey, autor deBrief lives (1669-1696, "'Biografias breves), somente publicadas em 1898.
A partir doséculo XIX, algumas correntes de pensamento marcaram a escrita biográfica. Na correntepositivista, por exemplo, destacavam-se os herois da sociedade, tachados como exemplos a serem seguidos por seus contemporâneos. Em tais narrativas, os atos públicos e feitos notáveis eram contemplados, dispostos cronologicamente e de forma linear, assumindo premissas como aevolução e oprogresso destes indivíduos ao longo da vida.[7]
Em oposição, para a correntemarxista, a própria definição de história é um processo de desenvolvimento do sujeito que seria findado apenas com a extinção daluta de classes, projetando-se que as relações sociais são indispensáveis e independentes da vontade dos homens. Nesse sentido, existe um enfoque nas estruturas sociais e nos sujeitos coletivos,[8] e, por esse motivo, a biografia passou a receber menos relevância como gênero de escrita.[9]
Já entre expoentes daEscola dos Annales, de 1929, que combate a percepção de história política tradicional, destaca-se a figura deLucien Febvre na produção de biografias, que passa a se caracterizar pela diminuição da autonomia dos grandes homens, inserindo-os em seu contexto. Nesse sentido, a biografia seria uma forma de analisar um problema mais amplo, como por exemplo, oprotestantismo estudado através da descrição e explanação da vida deMartinho Lutero.[9]
Na segunda geração dos Annales, representada principalmente pela figura deFernand Braudel, a biografia perdeu espaço, concentrando-se nas discussões dopós-guerra e noestruturalismo.[10] Destaca-se, portanto, que tanto marxistas quanto os representantes dos Annales acabaram optando por enfoques macro-estruturais e totalizantes.[10] Diante disso, a partir dadécada de 80, o discursopós-moderno traz uma valorização das microações individuais e suas pluralidades, numa busca pela subjetividade dos sujeitos.[11] Dessa forma, projeta-se um contexto de crise no espaço público — com ênfase no individualismo e críticas às formas tradicionais de participação política e social —, despertando o interesse pela vida privada dos homens. Assim, reivindica-se um resgate da participação dos indivíduos na construção dos laços sociais.[12]
A terceira geração dos Annales, também conhecida como aNova história francesa, passa a se concentrar no resgate de temas antes abandonados pela escola, principalmente por causa do enfoque estruturalista. Nesse sentido, retorna-se à análise dos acontecimentos, da história narrativa, da história política e da biografia. Nesta, foge-se da escrita pautada nos grandes homens, destacando-se as histórias de vida dos populares. Assim, mantém-se a perspectiva de história-problema característica dos Annales, apesar dos critérios de inovação.[13]
Neste período também se projeta a visão do grupo contemporâneo de historiadores ingleses de orientação marxista, caracterizados na figura deEric Hobsbawn,Edward Thompson eChristopher Hill, que de forma análoga irão se debruçar na recuperação da dimensão subjetiva dos processos sociais negligenciada pelas tendências estruturalistas do marxismo.[14]
Seguem nessa perspectiva de inovação os pensadores damicro-história italiana e dapsico-história. A primeira, difundida nas décadas de 70 e 80, ofereceu uma possível solução aos grandes sistemas explicativos, reduzindo aescala de observação e análise sobre problemas que transcendem a individualidade.[15] Já na psico-história, os historiadores buscaram explicar as ações humanas na história através de instrumentais dapsicologia e dapsicanálise, oferecendo uma ligação direta entre a subjetividade individual e o contexto social. Diante de tais colocações, ambas as visões possuem a biografia como um dos eixos centrais de escrita historiográfica.[16]
Apesar das diferentes correntes que englobam a escrita biográfica, esta possui pontos comuns que são centro do debate historiográfico.[17] Elenca-se, por exemplo:
o caráter de relato, que conta uma história sem excluir aspectos contextuais;[18]
Oséculo XX marca o advento de uma modalidade do gênero até então desconhecida ou pouquíssimo cultivada: a biografia romanceada, na qual oautor recria, ficcionalmente, o material documental e de pesquisa coletado sobre a vida dos biografados. Os mestres dessa nova corrente, que deve muito aStrachey, sãoStefan Zweig eEmil Ludwig, na Alemanha, eAndré Maurois eRomain Rolland, na França.
A autobiografia é a biografia escrita pela pessoa de quem a biografia fala, e geralmente resulta de quando o autor procede ao levantamento de sua própria existência. O gênero da autobiografia inclui manifestações literárias semelhantes entre si, comoconfissões,memórias ecartas, que revelam sentimentos íntimos e a experiência do autor. Na atualidade, quando vive-se a chamadaera biográfica, em que o interesse na vida cotidiana das pessoas comuns bem como das famosas cresceu enormemente, muitas pessoas conhecidas do grande público (as ditascelebridades), que desejam atender a essa demanda na forma de autobiografia, mas não têm habilidade literária, utilizam-se de um profissionalGhostwriter (traduzindo literalmente,escritor fantasma), que escreve a biografia em tom autobiográfico, de modo que a autoria passa a ser alegadamente da pessoabiografada. No entanto, autores consagrados escreveram suas biografias e deram consistência a esse ramo de atividade literária e, mais recentemente, acadêmica. Exemplos notáveis de autobiografias incluem:The Words, deJean Paul Sartre, os quatro volumes da autobiografia deSimone de Beauvoir, dentre outros.
Fato curioso na cultura sino-nipônica daAntiguidade é o número elevado de autobiografias, todas, porém com poucas indicações biográficas e surpreendentemente farto material bibliográfico, traço esse mais característico das literaturascoreana e japonesa. Vale a pena citar, dentro do contexto literário daAntiguidade clássica, duas obras da natureza confessional ou apologética, espécie de autobiografias parciais: uma de índole filosófica, oTa eis heautón, do imperador e pensadorestoicoMarco Aurélio; outras, de tendência política, osCommentarii, deJúlio César, que abrangem oDe bello gallico e oDe bello civili.
A literatura |italiana dá também um notável exemplo de autobiografia noRenascimento com a pouca fidedigna, mas vivíssima,Vita di Benvenuto Cellini, escrita pelo grande escultor em 1558, mas somente publicada quase dois séculos depois, em 1728.
A literaturarussa dá notável exemplo de ensaio autobiográfico com a obra doarcipresteAvvakum,Zhitie protopopa Avvakuma (1673;Vida de protopopo Avvakum), em estilo vigoroso e realista. Na Inglaterra doséculo XVIII,Gibbon escreveria aquela que é considerada por alguns a melhor das autobiografias lançadas até hoje em língua inglesa:Memoirs of my life and writings, publicadas por sua filha Marie Josephe em 1795.
A literatura norte-americana assinala sua contribuição para o gênero através daAutobiography (1766), deBenjamin Franklin. Na Itália, as autobiografias deCarlo Goldoni(Mémoires – 1787, escritas originalmente em francês), e a deCarlo Gozzi(Memorie inutili - 1797) são dignas de menção. A obra-prima do gênero autobiográficoLes Conféssions(1781–1788), deJean-Jacques Rousseau, que, filiado à linha intimista e subjetiva, se insurge contra araison classicista e antecipa a mentalidaderomântica doséculo XIX.
HISGAIL, Fani (Org.).Biografia Sintoma da Cultura. Hacker Editores, 1997.ISBN 85-86179-08-6
PENA, Felipe.Teoria da Biografia sem Fim. São Paulo: Mauad, 2004.ISBN 85-7478-132-0.
Schimidt, Benito Bisso (1996). «O gênero biográfico no campo do conhecimento histórico: trajetórias, tendências e impasses atuais e uma proposta de investigação». Porto Alegre.Anos 90 (6): 165-192