Title: Quincas Borba
Author: Machado de Assis
Release date: October 5, 2017 [eBook #55682]
Most recently updated: October 23, 2024
Language: Portuguese
Credits: Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free
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OBRAS DO AUTOR
Memorias Posthumas de Braz Cubas
Quincas Borba
Histórias sem data
Papéis avulsos
Historias da meia noite
Yayá Garcia, romance
Helena, romance
Resurreição, romance
A mão e a luva, romance
Contos Fluminenses
Americanas, poesias
Phalenas, poesias
Chrysalidas, poesias
Tu só, tu, puro amor, comédia
Rubião fitava a enseada,—eram oito horas da manhã.Quem o visse, com os polegares mettidos nocordão do chambre, á janella de uma grande casade Botafogo, cuidaria que elle admirava aquellepedaço de agua quieta; mas, em verdade, vos digoque pensava em outra cousa. Cotejava o passado como presente. Que era, ha um anno? Professor. Queé agora? Capitalista. Olha para si, para as chinellas(umas chinellas de Tunis, que lhe deu recenteamigo, Christiano Palha), para a casa, para o jardim,para a enseada, para os morros e para o ceu; e tudo,desde as chinellas até o ceu, tudo entra na mesmasensação de propriedade.
—Vejam como Deus escreve direito por linhastortas, pensa elle. Se a mana Piedade tem casadocom o Quincas Borba, apenas me daria uma esperançacollateral. Não casou; ambos morreram, eaqui está tudo commigo; de modo que o que pareciauma desgraça...
Que abysmo que ha entre o espirito e o coração!O espirito do ex-professor, vexado daquellepensamento, arrepiou caminho, buscou outro assumpto,uma canoa que ia passando; o coração,porém, deixou-se estar a bater de alegria. Que lheimporta a canoa nem o canoeiro, que os olhos deRubião acompanham, arregalados? Elle, coração,vae dizendo que, uma vez que a mana Piedade tinhade morrer, foi bom que não casasse; podia vir umfilho ou uma filha... —Bonita canoa!—Antesassim!--Como obedece bem aos remos do homem!—Ocerto é que elles estão no ceu!
Um creado trouxe o café. Rubião pegou na chicara,e, em quanto lhe deitava assucar, ia disfarçadamentemirando a bandeja, que era de prata lavrada.Prata, ouro, eram os metaes que amava de coração;não gostava de bronze, mas o amigo Palhadisse-lhe que era materia de preço, e assim se explicaeste par de figuras que aqui está na sala, umMephistopheles e umFausto. Tivesse, porém, deescolher, escolheria a bandeja,—primor de argentaria,execução fina e acabada. O creado esperavatezo e serio. Era hespanhol; e não foi sem resistenciaque Rubião o acceitou das mãos de Christiano;por mais que lhe dissesse que estava acostumadoaos seus creoulos de Minas, e não queria linguasestrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhea necessidade de ter creados brancos.Rubião cedeu com pena. O seu bom pagem, que ellequeria pôr na sala, como um pedaço da provincia,nem o pôde deixar na cosinha, onde reinava umfrancez, Jean; foi degradado a outros serviços.
—Quincas Borba está muito impaciente? perguntouRubião bebendo o ultimo golo de café, elançando um ultimo olhar á bandeja.
—Me parece que si.
—Lá vou soltal-o.
Não foi; deixou-se ficar, algum tempo, a olharpara os moveis. Vendo as pequenas gravuras inglezas,que pendiam da parede por cima dos dousbronzes, Rubião pensou na bella Sophia, mulherdo Palha, deu alguns passos, e foi sentar-se nopouf,ao centro da sala, olhando para longe...
—Foi ella que me recommendou aquelles dousquadrinhos, quando andavamos os tres, a ver cousaspara comprar. Estava tão bonita! Mas o que eu maisgosto della são os hombros, que vi no baile do coronel.Que hombros! Parecem de cera; tão lisos,tão brancos! Os braços tambem; oh! os braços!Que bem feitos!
Rubião suspirou, cruzou as pernas, e bateu comas borlas do chambre sobre os joelhos. Sentia quenão era inteiramente feliz; mas sentia tambem quenão estava longe a felicidade completa. Recompunhade cabeça uns modos, uns olhos, uns requebros semexplicação, a não ser esta, que ella o amava, e queo amava muito. Não era velho; ia fazer quarenta eum annos; e, rigorosamente, parecia menos. Estaobservação foi acompanhada de um gesto; passou amão pela cara, barbeada todos os dias, cousa que nãofazia d'antes, por economia e desnecessidade. Umsimples professor! Usava suissas, (mais tarde deixoucrescer a barba toda),—tão macias, que davagosto passar os dedos por ellas... E recordava assimo primeiro encontro, na estação de Vassouras, ondeSophia e o marido entraram no trem da estrada dede ferro, no mesmo carro em que elle descia de Minas;foi alli que achou aquelle par de olhos viçosos,que pareciam repetir a exhortação do propheta:Todos vós que tendes sede, vinde ás aguas. Nãotrazia ideias adequadas ao convite, é verdade; vinhacom a herança na cabeça, o testamento, o inventario,cousas que é preciso explicar primeiro, afim de entendero presente e o futuro. Deixemos Rubiãona sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambrenos joelhos, e cuidando na bella Sophia. Vemcommigo, leitor; vamos vel-o, mezes antes, á cabeceirado Quincas Borba.
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favorde ler asMemorias posthumas de Braz Cubas, éaquelle mesmo naufrago da existencia, que alliapparece, mendigo, herdeiro inopinado, e inventorde uma philosophia. Aqui o tens agora em Barbacena.Logo que chegou, enamorou-se de uma viuva,senhora de condição mediana e parcos meios devida; mas, tão acanhada que os suspiros do namoradoficavam sem echo. Chamava-se Maria daPiedade. Um irmão della, que é o presente Rubião,fez todo o possivel para casal-os. Piedade resistiu,um pleuriz a levou.
Foi esse trechosinho de romance que ligou osdous homens. Saberia Rubião que o nosso QuincasBorba trazia aquelle grãosinho de sandice, que ummedico suppoz achar-lhe? Seguramente, não; tinha-opor homem esquisito. É, todavia, certo que ogrãosinho não se despegou do cerebro de QuincasBorba,—nem antes, nem depois da molestia quelentamente o comeu. Quincas Borba tivera alli algunsparentes, mortos já agora em 1867; o ultimofoi o tio que o deixou por herdeiro de seus bens.Rubião ficou sendo o unico amigo do philosopho.Regia então uma escola de meninos, que fechoupara tratar do enfermo. Antes de professor, metterahombros a algumas emprezas, que foram apique.
Durou o cargo de enfermeiro mais de cinco mezes,perto de seis. Era real o desvello de Rubião,paciente, risonho, multiplo, ouvindo as ordens domedico, dando os remedios ás horas marcadas, saindoa passeio com o doente, sem esquecer nada, nem oserviço da casa, nem a leitura dos jornaes, logo quechegava a mala da Côrte ou a de Ouro-Preto.
—Tu és bom, Rubião, suspirava Quincas Borba.
—Grande façanha! Como se você fosse máo!
A opinião ostensiva do medico era que a doençado Quincas Borba iria saindo devagar. Um dia, onosso Rubião, acompanhando o medico até á porta darua, perguntou-lhe qual era o verdadeiro estado doamigo. Ouviu que estava perdido, completamenteperdido; mas, que o fosse animando. Para que tornar-lhea morte mais afflictiva pela certeza...?
—La isso, não, atalhou Rubião; para elle, morreré negocio facil. Nunca leu um livro que elleescreveu, ha annos, não sei que negocio de philosophia...
—Não; mas philosophia é uma cousa, e morrerde verdade é outra; adeus.
Rubião achou um rival no coração do QuincasBorba,—um cão, um bonito cão, meio tamanho,pello côr de chumbo, malhado de preto. QuincasBorba levava-o para toda parte, dormiam no mesmoquarto. De manhã, era o cão que acordara o senhor,trepando ao leito, onde trocavam as primeiras saudações.Uma das extravagancias do dono foi dar-lheo seu proprio nome; mas, explicava-o por dousmotivos, um doutrinario, outro particular.
—Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina,é o principio da vida e reside em toda a parte,existe tambem no cão, e este póde assim receber umnome de gente, seja christão ou mussulmano...
—Bem, mas porque não lhe deu antes o nomede Bernardo, disse Rubião com o pensamento em umrival politico da localidade.
—Esse agora é o motivo particular. Se eu morrerantes, como presumo, sobrevivirei no nome do meubom cachorro. Ris-te, não?
Rubião fez um gesto negativo.
—Pois devias rir, meu querido. Porque a immortalidadeé o meu lote ou o meu dote, ou comomelhor nome haja. Vivirei perpetuamente no meugrande livro. Os que, porém, não souberem ler,chamarão Quincas Borba ao cachorro, e...
O cão, ouvindo o nome, correu á cama. QuincasBorba, commovido, olhou para Quincas Borba:
—Meu pobre amigo! meu bom amigo! meuunico amigo!
—Unico!
—Desculpa-me, tu tambem o és, bem sei, eagradeço-te muito; mas a um doente perdoa-setudo. Talvez esteja começando o meu delirio. Deixaver o espelho.
Rubião deu-lhe o espelho. O doente contemploupor alguns segundos a cara magra, o olhar febril,com que descobria os suburbios da morte, para ondecaminhava a passo lento, mas seguro. Depois, comum sorriso pallido e ironico:
—Tudo o que está cá fóra corresponde ao quesinto cá dentro; vou morrer, meu caro Rubião... Nãogesticules, vou morrer. E que é morrer, paraficares assim espantado?
—Sei, sei que voce tem umas philosophias... Masfallemos do jantar; que hade ser hoje?
Quincas Borba sentou-se na cama, deixando penderas pernas, cuja estraordinaria magreza se adivinhavapor fóra das calças.
—Que é! que quer? acudiu Rubião.
—Nada, respondeu o enfermo sorrindo. Umasphilosophias! Com que desdem me dizes isso! Repete,anda, quero ouvir outra vez. Umas philosophias!
—Mas não é por desdem... Pois eu tenho capacidadepara desdenhar de philosophias? Digo só quevocê póde crêr que a morte não vale nada, porqueterá razões, principios...
Quincas Borba procurou com os pés as chinellas;Rubião chegou-lh'as; elle calçou-as e poz-se a andarpara esticar as pernas. Affagou o cão e accendeuum cigarro. Rubião quiz que se agazalhasse, etrouxe-lhe um fraque, um collete, um chambre, umcapote, á escolha. Quincas Borba recusou-os comum gesto. Tinha outro ar agora; os olhos mettidospara dentro viam pensar o cerebro. Depois demuitos passos, parou, por alguns segundos, deantede Rubião.
—Para entenderes bem o que é a morte e avida, basta contar-te como morreu minha avó.
—Como foi?
—Senta-te.
Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interessepossivel, em quanto Quincas Borba continuavaa andar, recolhendo as ideias.
—Foi no Rio de Janeiro, começou elle, defronteda Capella Imperial, que era então Real, em diade grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro,para ir ter á cadeirinha, que a esperava no largodo Paço. Gente como formiga. O povo queria verentrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas.No momento em que minha avó sahia do adropara ir á cadeirinha, um pouco distante, aconteceuespantar-se uma das bestas de uma sege; a bestadesparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minhaavó cahiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhepor cima. Foi levada em braços para umabotica da rua Direita, veiu um sangrador, mas eratarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o hombropartidos, era toda sangue; expirou minutos depois.
—Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.
—Não.
—Não?
—Ouve o resto. Aqui está como se tinha passadoo caso. O dono da sege estava no adro, e tinha fome,muita fome, porque era tarde, e almoçára cedo epouco. Dalli pôde fazer signal ao cocheiro; este fustigouas mulas para ir buscar o patrão. A sege nomeio do caminho achou um obstaculo e derribou-o;esse obstaculo era minha avó. O primeiro acto dessaserie de actos foi um movimento de conservação:Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó,fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó nãomorreria, mas o facto era o mesmo; Humanitas precisacomer. Se em vez de um rato ou de um cão,fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, differia ocaso no sentido de dar materia a muitos necrologios;mas o fundo subsistia. O universo ainda não paroupor lhe faltarem alguns poemas mortos em flor nacabeça de um varão illustre ou obscuro; mas Humanitas(e isto importa, antes de tudo) Humanitas precisacomer.
Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramentedesejoso de entender; mas não dava pelanecessidade a que o amigo attribuia a morte da avó.Seguramente o dono da sege, por muito tarde quechegasse a casa, não morria de fome, ao passo que aboa senhora morreu de verdade, e para sempre.Explicou-lhe, como pode, essas duvidas, e acabouperguntando-lhe:
—E que Humanitas é esse?
—Humanitas é o principio. Mas não, não digonada, tu não és capaz de entender isto, meu caroRubião; fallemos de outra cousa.
—Diga sempre.
Quincas Borba, que não deixára de andar, paroualguns instantes.
—Queres ser meu discipulo?
—Quero.
—Bem, irás entendendo aos poucos a minha philosophia;no dia em que a houveres penetrado inteiramente,ah! nesse dia terás o maior prazer da vida,porque não ha vinho que embriague como a verdade.Crê-me, o Humanitismo é o remate das cousas;e eu, que o formulei, sou o maior homem domundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borbaestá olhando para mim? Não é elle, é Humanitas...
—Mas que Humanitas é esse?
—Humanitas é o principio. Ha nas cousas todascerta substancia recondita e identica, um principiounico, universal, eterno, commum, indivisivele indestructivel,—-ou, para usar a linguagem dogrande Camões:
Uma verdade que nas cousas anda,
Que mora no visibil e invisibil.
Pois essa substancia ou verdade, esse principioindestructivel é que é Humanitas. Assim lhe chamo,porque resume o universo, e o universo é o homem.Vás entendendo?
—Pouco; mas, ainda assim, como é que a mortede sua avó...
—Não ha morte. O encontro de duas expansões,ou a expansão de duas fórmas, póde determinar asuppressão de uma dellas; mas, rigorosamente, nãoha morte, ha vida, porque a suppressão de uma é acondição da sobrevivencia da outra, e a destruiçãonão attinge o principio universal e commum. Dahi ocaracter conservador e benefico da guerra. Suppõetu um campo de batatas e duas tribus famintas.As batatas apenas chegam para alimentar uma dastribus, que assim adquire forças para transpor amontanha e ir á outra vertente, onde ha batatas emabundancia; mas, se as duas tribus dividirem empaz as batatas do campo, não chegam a nutrir-sesufficientemente e morrem de inanição. A paz, nessecaso, é a destruição; a guerra é a conservação. Umadas tribus extermina a outra e recolhe os despojos.Dahi a alegria da victoria, os hymnos, acclamações,recompensas publicas e todos os demais effeitos dasacções bellicas. Se a guerra não fosse isso, taesdemonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivoreal de que o homem só commemora e ama o quelhe é aprazivel ou vantajoso, e pelo motivo racionalde que nenhuma pessoa canonisa uma acção quevirtualmente a destroe. Ao vencido, odio ou compaixão;ao vencedor, as batatas.
—Mas a opinião do exterminado?
—Não ha exterminado. Desapparece o phenomeno;a substancia é a mesma. Nunca viste ferveragua? Hasde lembrar-te que as bolhas fazem-se edesfazem-se de continuo, e tudo fica na mesmaagua. Os individuos são essas bolhas transitorias.
—Bem; a opinião da bolha...
—Bolha não tem opinião. Apparentemente, hanada mais contristador que uma dessas terriveispestes que devastam um ponto do globo? E, todavia,esse supposto mal é um beneficio, não só porqueelimina os organismos fracos, incapazes de resistencia,como porque dá logar á observação, á descobertada droga curativa. A hygiene é filha de podridõesseculares; devemol-a a milhões de corrompidos einfectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, asbolhas ficam na agua. Vês este livro? ÉD. Quixote.Se eu destruir o meu exemplar, não elimino aobra, que continua eterna nos exemplares subsistentese nas edições posteriores. Eterna e bella, bellamenteeterna, como este mundo divino e supra-divino.
Quincas Borba calou-se de exhausto, e sentou-seofegante. Rubião correu a elle, levando-lhe agua epedindo que se deitasse para descançar; mas o enfermo,após alguns minutos, respondeu que não eranada. Perdera o costume de fazer discursos, é o queera. E, afastando com o gesto a pessoa de Rubião,afim de poder encaral-a sem esforço, emprehendeuuma brilhante descripção do mundo e suas excellencias.Misturou ideias proprias e alheias, imagensde toda sorte, idyllicas, epicas, a tal ponto queRubião perguntava a si mesmo como é que um homem,que ia morrer dalli a dias, podia tratar tãogalantemente aquelles negocios.
—Ande repousar um pouco.
Quincas Borba reflectiu.
—Não, vou dar um passeio.
—Agora não; você está muito cançado.
—Qual! Passou.
Ergueu-se, e poz paternalmente as mãos sobre oshombros de Rubião.
—Você é meu amigo?
—Que pergunta!
—Diga.
—Tanto ou mais do que este animal, respondeuRubião, em um arroubo de ternura.
Quincas Borba apertou-lhe as mãos.
—Bem.
No dia seguinte, Quincas Borba accordou com aresolução de ir ao Rio de Janeiro, voltaria no fimde um mez, tinha certos negocios... Rubião ficouespantado. E a molestia, e o medico? O doenterespondeu que o medico era um charlatão, e que amolestia precisava espairecer, tal qual a saude.Molestia e saude eram dous caroços do mesmofructo, dous estados de Humanitas.
—Vou a alguns negocios pessoaes, concluiu oenfermo, e levo, além disso, um plano tão sublime,que nem mesmo você poderá entendel-o. Desculpe-meesta franqueza; mas eu prefiro ser franco comvocê a sel-o com qualquer outra pessoa.
Rubião fiou do tempo que este projecto lhe passasse,como tantos outros; mas enganou-se. Accresciaque, em verdade, o doente parecia estar melhorando;não ia á cama, saía á rua, escrevia. No fimde uma semana, mandou chamar o tabellião.
—Tabellião? repetiu o amigo.
—Sim, quero registrar o meu testamento. Ouvamos la os dous...
Foram os tres, porque o cão não deixava partir oamo e senhor sem acompanhal-o. Quincas Borba registrouo testamento, com as formalidades do estylo,e tornou tanquillo para casa. Rubião sentia bater-lheo coração violentamente.
—Está claro que eu não o deixo ir só para aCôrte, disse elle ao amigo.
—Não, não é preciso. Demais, Quincas Borba nãovae, e não o confio a outra pessoa, senão a você.Deixo a casa como está. Daqui a um mez estou devolta. Vou amanhã; não quero que elle presinta aminha sahida. Cuide delle, Rubião.
—Cuido, sim.
—Jura?
—Por esta luz que me allumia. Então sou algumacreança?
—Dê-lhe leite ás horas apropriadas, as comidastodas do costume, e os banhos; e quando sahira passeio com elle, olhe que não vá fugir. Não, omelhor é que não saia .. não saia...
—Vá socegado.
Quincas Borba chorava pelo outro Quincas Borba.Não quiz vel-o á sahida. Chorava deveras, lagrimasde loucura ou de affeição, quaesquer que fossem,elle as ia deixando pela boa terra mineira, como oderradeiro suor de uma alma obscura, prestes acahir no abysmo.
Horas depois, teve Rubião um pensamento horrivel.Podiam crer que elle proprio incitara o amigoá viagem, para o fim de o matar mais depressa, eentrar na posse do legado, se é que realmente estavaincluso no testamento. Sentiu remorsos. Porquenão empregou todas as forças, para contel-o?Viu o cadaver do Quincas Borba, pallido, hediondo,fitando nelle um olhar vingativo; resolveu, se acasoo fatal desfecho se désse em viagem, abrir mão dolegado.
Pela sua parte o cão vivia farejando, ganindo,querendo fugir; não podia dormir quieto, levantava-semuitas vezes, á noite, percorria a casa, e tornavaao seu canto. De manhã, Rubião chamava-o ácama, e o cão acudia alegre; imaginava que era oproprio dono; via depois que não era, mas aceitavaas caricias, e fazia-lhe outras, como se Rubião tivessede levar as suas ao amigo, ou trazel-o paraalli. Demais, havia-se-lhe affeiçoado tambem, e paraelle era a ponte que o ligava á existencia anterior.Não comeu durante os primeiros dias. Supportandomenos a sede, Rubião pôde alcançar quebebesse leite; foi a unica alimentação por algumtempo. Mais tarde, passava as horas, calado, triste,enrolado em si mesmo, ou então com o corpo estendidoe a cabeça entre as mãos.
Quando o medico voltou, ficou espantado da temeridadedo doente; deviam tel-o impedido de sair;a morte era certa.
—Certa?
—Mais tarde ou mais cedo. Levou o tal cachorro?
—Não, senhor, está commigo; pediu que cuidassedelle, e chorou, olhe que chorou que foi umnunca acabar. Verdade é, disse ainda Rubião paradefender o enfermo, verdade é que o cachorro merecea estima do dono: parece gente.
O medico tirou a largo chapéo de palha para concertara fita; depois sorriu. Gente? Com que entãoparecia gente? Rubião insistia, depois explicava; nãoera gente como a outra gente, mas tinha cousas desentimento, e até de juizo. Olhe, ia contar-lhe uma...
—Não, homem, não, logo, logo, vou a um doentede erysipella... Se vierem cartas delle, e não foremreservadas, desejo vel-as, ouviu? E lembranças aocachorro, concluiu sahindo.
Algumas pessoas começaram a mofar do Rubião eda singular incumbencia de guardar um cão, em vezde ser o cão que o guardasse a elle. Vinha a risota,choviam as alcunhas. Em que havia de dar o professor!sentinella de cachorro! Rubião tinha medo daopinião publica. Com effeito, parecia-lhe ridiculo;fugia aos olhos extranhos, o mais que lhe era possivel;em casa, olhava com fastio para o animal;dava-se ao diabo, arrenegava da vida. Não tivesse aesperança de um legado, pequeno que fosse. Eraimpossivel que lhe não deixasse uma lembrança.
Sete semanas depois, chegou a Barbacena estacarta, datada do Rio de Janeiro, toda do punho doQuincas Borba:
«Meu caro senhor e amigo,
«Você ha de ter estranhado o meu silencio. Nãolhe tenho escripto por certos motivos particulares,etc. Voltarei breve; mas quero communicar-lhedesde já um negocio reservado, reservadissimo.
«Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho.Sei que ha de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião;a nossa intimidade permittia-me dizer palavramais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é aultima. Ignaro!
«Ouça, ignaro. Sou Santo Agostinho; descobriisto ante-hontem; ouça e cale-se. Tudo coincide nasnossas vidas. O santo e eu passámos uma parte dotempo nos deleites e na heresia, porque eu consideroheresia tudo o que não é a minha doutrina deHumanitas; ambos furtámos, elle, em pequeno, umasperas de Carthago, eu, já rapaz, um relogio do meuamigo Braz Cubas. Nossas mães eram religiosas ecastas. Emfim, elle pensava, como eu, que tudo queexiste é bom, e assim o demonstra no cap. XVI, livroVII dasConfissões, com a differença que paraelle, o mal é um desvio da vontade, illusão propriade um seculo atrazado, concessão ao erro, pois que omal nem mesmo existe, e só a primeira affirmação éverdadeira; todas as cousas são boas,omnia bona,e adeus.
«Adeus, ignaro. Não contes a ninguém o que teacabo de confiar, se não queres perder as orelhas.Cala-te, guarda, e agradece a boa fortuna de terpor amigo um grande homem, como eu, embora nãome comprehendas. Has de comprehender-me. Logoque tornar a Barbacena, dar-te-hei em termos explicados,simples, adequados ao entendimento de umasno, a verdadeira noção do grande homem. Adeus;lembranças ao meu pobre Quincas Borba. Não esqueçasde lhe dar leite; leite e banhos; adeus,adeus... Teu do coração
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.»
Rubião mal sustinha o papel nos dedos. Passadosalguns segundos, advertiu que podia ser um gracejodo amigo, e releu a carta; mas a segunda leituraconfirmou a primeira impressão. Não havia duvida;estava doudo. Pobre Quincas Borba! Assim, as exquisitices,a frequente alteração de humor, os impetossem motivo, as ternuras sem proporção, nãoeram mais que prenuncios da ruina total do cerebro.Morria antes de morrer. Tão bom! Tão alegre!Tinha impertinencias, é verdade; mas a doença explicava-as.Rubião enxugou os olhos, humidos decommoção. Depois, veiu a lembrança do possivellegado, e ainda mais o affligiu, por lhe mostrar quebom amigo ia perder.
Quiz ainda uma vez ler a carta, agora devagar,analysando as palavras, desconjuntando-as, para verbem o sentido e descobrir se realmente era umatroça de philosopho. Aquelle modo de o descomporbrincando, era conhecido; mas, o resto confirmava asuspeita do desastre. Já quasi no fim, parou enfiado.Dar-se-hia que, provada a alienação mental do testador,nullo ficaria o testamento, e perdidas asdeixas? Rubião teve uma vertigem. Estava aindacom a carta aberta nas mãos, quando viu apparecero doutor, que vinha por noticias do enfermo; o agentedo correio dissera-lhe haver chegado uma carta.Era aquella?
—É esta, mas...
—Tem alguma communicação reservada...?
—Justamente, traz uma communicação reservada,reservadissima; negocios pessoaes. Dá licença?
Dizendo isto, Rubião metteu a carta no bolso; omedico sahiu; elle respirou. Escapára ao perigo depublicar tão grave documento, por onde se podiaprovar o estado mental de Quincas Borba. Minutosdepois, arrependeu-se, devia ter entregado a carta,sentiu remorsos, pensou em mandal-a á casa do medico.Chamou por um escravo; quando este accudiu,já elle mudára outra vez de idéa; considerou queera imprudencia; o doente viria em breve,—d'alli adias,—perguntaria pela carta, arguil-o-hia de indiscreto,de delator... Remorsos faceis, de poucadura.
—Não quero nada, disse ao escravo. E outravez pensou no legado. Calculou o algarismo. Menosde dez contos, não. Compraria um pedaço de terra,uma casa, cultivaria isto ou aquillo, ou lavrariaouro. O peor é se era menos, cinco contos... Cinco?Era pouco; mas, emfim, talvez não passasse disso.Cinco que fossem, era um arranjo menor, e antesmenor que nada. Cinco contos... Peor seria se otestamento ficasse nullo. Vá, cinco contos!
No começo da semana seguinte, recebendo os jornaesda corte (ainda assignaturas do Quincas Borba)leu Rubião esta noticia em um d'elles:
«Falleceu hontem o Sr. Joaquim Borba dosSantos, tendo supportado a molestia com singularpbilosophia. Era homem de muito saber, e cançava-seem batalhar contra esse pessimismo amarelloe enfesado que ainda nos ha de chegar aqui um dia;é a molestia do seculo. A ultima palavra delle foique a dor era uma illusão, e que Pangloss não eratão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava.Deixa muitos bens. O testamento está emBarbacena.»
—Acabou de soffrer! suspirou Rubião.
Em seguida, attentando na noticia, viu que fallavade um homem que tinha apreço, consideração,a quem se attribuia uma peleja philosophica. Nenhumaallusão a demencia. Ao contrario, o finaldizia que elle delirára a ultima hora, effeito da molestia.Ainda bem! Rubião leu novamente a carta,e a hypothese da troça pareceu outra vez mais verosimil.Concordou que elle tinha graça; com certeza,quiz debical-o; foi a Santo Agostinho, como iria aSanto Ambrosio ou a Santo Hilario, e escreveuuma carta enigmatica, para confundil-o, até voltare rir-se do logro. Pobre amigo! Estava são,—são emorto. Sim, já não padecia nada. Vendo o cachorro,suspirou:
—Coitado do Quincas Borba! Se pudesse saberque o senhor morreu ...
Depois, comsigo:
—Agora, que já acabou a obrigação, vou dal-oá comadre Angelica.
A noticia correra a cidade, o vigario, o pharmaceuticoda casa, o medico, todos mandaram saberse era verdadeira. O agente do correio, que a leranas folhas, trouxe em mão propria ao Rubião, umacarta que viera na mala para elle; podia ser do finado,comquanto a lettra do subscripto fosse outra.
—Então afinal o homem espichou a canella?disse elle, emquanto Rubião abria a carta, corriaá assignatura e lia:Braz Cubas. Era um simplesbilhete:
«O meu pobre amigo Quincas Borba falleceuhontem em minha casa, onde appareceu ha temposesfrangalhado e sordido: fructos da doença. Antesde morrer pediu-me que lhe escrevesse, que lhedésse particularmente esta noticia, e muitos agradecimentos;que o resto se faria, segundo as praxesdo foro.»
Os agradecimentos fizeram empallidecer o professor;mas as praxes do foro restituiram-lhe osangue. Rubião fechou a carta sem dizer nada; oagente fallou de uma cousa e outra, depois sahiu.Rubião ordenou a um escravo que levasse o cachorrode presente á comadre Angelica, dizendo-lheque, como gostava de bichos, lá ia mais um; que otratasse bem, porque elle estava acostumado a isso;finalmente que o nome do cachorro era o mesmoque o do dono, agora morto, Quincas Borba.
Quando o testamento foi aberto, Rubião quasicahiu para traz. Adivinhaes porque. Era nomeadoherdeiro universal do testador. Não cinco, nem dez,nem vinte contos, mas tudo, o capital inteiro, especificadosos bens, casas na Côrte, uma em Barbacena,escravos, apolices, acções do Banco do Brazile de outras instituições, joias, dinheiro amoedado,livros,—tudo finalmente passava ás mãosdo Rubião, sem desvios, sem deixas a nenhumapessoa, nem esmolas, nem dividas. Uma só condiçãohavia no testamento, a de guardar o herdeiro comsigoo seu pobre cachorro Quincas Borba, nome quelhe deu por motivo da grande affeição que lhe tinha.Exigia do dito Rubião que o tratasse como se fossea elle proprio testador, nada poupando em seu beneficio,resguardando-o de molestias, de fugas, deroubo ou de morte que lhe quizessem dar por maldade;cuidar finalmente como se cão não fosse, maspessoa humana. Item, impunha-lhe a condição,quando morresse o cachorro, de lhe dar sepulturadecente em terreno proprio, que cobriria de flores eplantas cheirosas; e mais desenterraria os ossos dodito cachorro, quando fosse tempo idoneo, e os recolheriaa uma urna de madeira preciosa para deposital-osno lugar mais honrado da casa.
Tal era a clausula. Rubião achou-a natural,posto que só tivesse pensamento para cuidar na herança.Espreitára uma deixa, e sae-lhe do testamentoa massa toda dos bens. Não podia acabar decrer; foi preciso que lhe apertassem muito as mãos,com força,—a força dos parabens,—para não supporque era mentira.
—Sim, senhor, lavre um tento, dizia-lhe o donoda pharmacia que ministrara os remedios ao QuincasBorba.
Herdeiro já era muito; mas universal... Estapalavra inchava as bochechas á herança. Herdeirode tudo, nem uma colherinha menos. E quantoseria tudo? ia elle pensando. Casas, apolices, acções,escravos, roupa, louça, alguns quadros, que elleteria na côrte, porque era homem de muito gosto,fallava de cousas de arte com grande saber. Elivros? devia ter muitos livros, citava muitos delles.Mas emquanto andaria tudo? Cem contos? Talvezduzentos. Era possível; trezentos mesmo não haviaque admirar. Trezentos contos! trezentos! E oRubião tinha impetos de dansar na rua. Depoisaquietava-se; duzentos que fossem, ou cem, era umsonho que Deus Nosso Senhor lhe dava, mas umsonho comprido, para não acabar mais.
Aqui a ideia do cachorro pôde tomar pé no torvelinhode ideias que iam pela cabeça do nossohomem. Rubião achava que a clausula era natural,mas desnecessaria, porque elle e o cão eram dousamigos, e nada mais certo que ficarem juntos, paralembrar o terceiro amigo, o extincto, o autor da felicidadede ambos. Havia, sem duvida, umas particularidadesna clausula, uma historia de urna, enão sabia que mais; mas tudo se havia de cumprir,ainda que o céo viesse abaixo... Não, com a ajudade Deus, emendava elle. Bom cachorro! excellentecachorro!
Rubião não esquecia que muitas vezes tentáraenriquecer com emprezas que morreram em flor.Suppoz-se n'aquelle tempo um desgraçado, um caipora,quando a verdade era que «mais vale quemDeus ajuda, do que quem cedo madruga.» Tantonão era impossivel enriquecer, que estava rico.
—Impossivel, o que? exclamou em voz alta.Impossivel é a Deus peccar. Deus não falta a quempromette.
Ia assim, descendo e subindo as ruas da cidade,sem guiar para casa, sem plano, com o sangue aospulos, e as ideias baralhadas. De repente, surgiu-lheeste grave problema:—se iria viver no Rio deJaneiro, ou se ficaria em Barbacena. Sentia cocegasde ficar, de brilhar onde escurecia, de quebrar acastanha na bocca aos que antes faziam pouco casodelle, e principalmente aos que se riram da amizadedo Quincas Borba. Mas logo depois, vinha a imagemdo Rio de Janeiro, que elle conhecia, com os seusfeitiços, movimento, theatros em toda a parte,moças bonitas, «vestidas á franceza.» Resolveuque era melhor, podia subir muitas e muitas vezesá cidade natal.
—Quincas Borba! Quincas Borba! eh! QuincasBorba! bradou entrando em casa.
Nada de cachorro. Só então é que elle se lembroude havel-o mandado dar á comadre Angelica. Correuá casa da comadre, que era distante. De caminhoaccudiram-lhe todas as ideias feias, algumas extraordinarias.Uma ideia feia, é que o cão tivesse fugido.Outra extraordinaria é que algum inimigo,sabedor da clausula e do presente, fosse ter com acomadre, roubasse o cachorro, e o escondesse oumatasse. Neste caso, a herança... Passou-lhe umanuvem pelos olhos; depois começou a vêr maisclaro.
—Não conheço negocios de justiça, pensava elle,mas parece que não tenho nada com isso. A clausulasuppõe o cão vivo ou em casa; mas se ellefugir ou morrer, não se ha de inventar um cão;logo, a intenção principal... Mas são capazes de fazerchicana os meus inimigos. Não cumprida a clausula...
Aqui a testa e as costas das mãos do nosso amigoficaram em agua. Outra nuvem pelos olhos. E o coraçãobatia-lhe rapido, rapido. A clausula começavaa parecer-lhe extravagante. Rubião pegava-se comos santos, promettia missas, dez missas... Mas lá estavaa casa da comadre. Rubião picou o passo; viualguém; era ella? era, era ella, encostada á portae rindo.
—Que figura que o senhor vem fazendo, meucompadre? Meio tonto, jogando com os braços.
—Sinhá comadre, o cachorro? perguntou Rubiãocom indifferença, mas pallido.
—Entre, e abanque-se, respondeu ella. Que cachorro?
—Que cachorro? tornou Rubião cada vez maispallido. O que lhe mandei. Pois não se lembra quelhe mandei um cachorro para ficar aqui alguns dias,descançando, a ver se... em summa, um animal demuita estimação. Não é meu. Veiu para... Mas nãose lembra?
—Ah! não me falle nesse bicho! respondeu ellaprecipitando as palavras.
Era pequena, tremia por qualquer cousa, e quandose apaixonava, engrossavam-lhe as veias do pescoço.Repetiu que lhe não fallasse do bicho.
—Mas que lhe fez elle, sinhá comadre?
—Que me fez? Que é que me faria o pobre animal?Não come nada, não bebe, chora que parece gente,e anda só com o olho para fóra, a ver se foge.
Rubião respirou. Ella continuou a dizer os enfadamentosdo cachorro; elle ancioso, queria vel-o.
—Está lá no fundo, no cercado grande; está sósinhopara que os outros não bulam com elle. Mas ocompadre vem buscal-o? Não foi isso o que disseram.Pareceu-me ouvir que era para mim, que era dado.
—Daria cinco ou seis, se pudesse, respondeuRubião. Este não posso; sou apenas depositario. Masdeixe estar, prometto-lhe um filho. Creia que o recadoveiu torto.
Rubião ia andando; a comadre, em vez de o guiar,acompanhava-o. Lá estava o cão, dentro do cercado,deitado a distancia de um alguidar de comida.Cães, gatos, saltavam de todos os lados, cá fora;a um lado havia um gallinheiro, mais longe porcos;mais longe ainda, uma vacca deitada, somnolenta,com duas gallinhas ao pé, que lhe picavam a barriga,arrancando carrapato.
—Olhe o meu pavão! dizia a commadre.
Mas Rubião tinha os olhos no Quincas Borba, quefarejava impaciente, e que se atirou para elle, logoque um moleque abriu a porta do cercado. Foi umascena de delirio; o cachorro pagava as caricias doRubião, latindo, pulando, beijando-lhe as mãos.
—Meu Deus! que amizade!
—Não imagina, sinhá comadre. Adeus, prometto-lheum filho.
Rubião e o cachorro, entrando em casa, sentiram,ouviram a pessoa e as vozes do finado amigo. Emquanto o cachorro farejava por toda a parte, Rubiãofoi sentar-se na cadeira onde estivera, quando QuincasBorba referiu a morte da avó com explicaçõesscientificas. A memoria delle recompoz, aindaque de embrulho e esgarçadamente, os argumentosdo philosopho. Pela primeira vez, attentoubem na allegoria das tribus famintas e comprehendeua conclusão: «Ao vencedor, as batatas!»Ouviu distinctamente a voz roufenha do finado expora situação das tribus, a luta e a razão da luta,o exterminio de uma e a victoria da outra, e murmuroubaixinho:
—Ao vencedor, as batatas!
Tão simples! tão claro! Olhou para as calças debrim surrado e o rodaque cirzido, e notou que atéha pouco fora, por assim dizer, um exterminado,uma bolha extincta; mas que ora não, era um vencedor.Não havia duvida; as batatas fizeram-se paraa tribu que elimina a outra, afim de transpor amontanha e ir ás batatas do outro lado. Justamenteo seu caso. Ia descer de Barbacena para arrancare comer as batatas da capital. Cumpria-lhe serduro e implacavel, era poderoso e forte. E levantando-sede golpe, alvoroçado, ergueu os braçosexclamando:
—Ao vencedor, as batatas!
Gostava da formula, achava-a engenhosa, compendiosae eloquente, além de verdadeira e profunda.Ideou as batatas era suas varias fórmas, classificou-aspelo sabor, pelo aspecto, pelo poder nutritivofartou-se antemão do banquete da vida. Era tempode acabar com as raizes pobres e seccas, que apenasenganavam o estomago, triste comida de longosannos; agora o farto, o solido, o perpetuo, comeraté morrer, e morrer em colchas de seda, que émelhor que trapos. E voltava á affirmação de serduro e implacavel, e á formula da allegoria. Chegoua compor de cabeça um sinete para seu uso, comeste lemma: AO VENCEDOR AS BATATAS.
Esqueceu o projecto do sinete; mas a formula viveuno espirito de Rubião, por alguns dias:—Aovencedor as batatas Não a comprehenderia antes dotestamento; ao contrario, vimos que a achou obscurae sem explicação. Tão certo é que a paizagem dependedo ponto de vista, e que o melhor modo deapreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.
Não esqueça dizer que Rubião tomou a si mandardizer uma missa por alma do finado, embora soubesseou presentisse que elle não era catholico.Quincas Borba não dizia pulhices a respeito de padres,nem desconceituava doutrinas catholicas; mas,não fallava nem da egreja nem dos seus servos. Poroutro lado, a veneração de Humanitas fazia desconfiarao herdeiro que essa era a religião do testador. Nãoobstante, mandou dizer a missa, considerando que nãoera acto da vontade do morto, mas prece de vivos;considerou mais que seria um escandalo na cidade,se elle, nomeado herdeiro pelo defunto, deixasse dedar ao seu protector os suffragios que não se negamaos mais miseraveis e avaros deste mundo.
Se algumas pessoas deixaram de comparecer, paranão assistir á gloria do Rubião, muitas outrasforam,—e não da ralé,—as quaes viram a compuncçãoverdadeira do antigo mestre de meninos.Teve lagrimas; o vigario, quando elle lhe foi fallará sacristia, viu-lhe ainda os olhos vermelhos. Não seriamsaudades; mas a gratidão tambem chora.
Regulados os preliminares para a liquidação daherança, Rubião tratou de vir ao Rio de Janeiro,onde se fixaria, logo que tudo estivesse acabado.Havia que fazer em ambas as cidades; mas, ascousas promettiam correr depressa.
Na estação de Vassouras, entraram no tremSophia e o marido, Christiano de Almeida e Palha.Este era um rapagão de trinta e dous annos; ella iaentre vinte e sete e vinte e oito. Vieram sentar-senos dous bancos fronteiros ao do Rubião, acommodaramas cestinhas e embrulhos de lembranças quetraziam de Vassouras, onde tinham ido passar umasemana; abotoaram o guarda-pó, trocaram algumaspalavras, baixo.
Depois que o trem continuou a andar, foi que oPalha reparou na pessoa do Rubião, cujo rosto,entre tanta gente carrancuda ou aborrecida, era ounico placido e satisfeito. Christiano foi o primeiroque travou conversa, dizendo-lhe que as viagens deestrada de ferro cançavam muito, ao que Rubiãorespondeu que sim; para quem estava acostumado acosta de burro, accrescentou, a estrada de ferrocançava e não tinha graça; não se podia negar,porém, que era um progresso.
—De certo, concordou o Palha. Progresso egrande.
—O senhor é lavrador?
—Não, senhor.
—Mora na cidade?
—De Vassouras? Não; viemos aqui passar umasemana. Moro mesmo na Corte. Não teria geito paralavrador, com quanto ache que é uma posição boa ehonrada.
Da lavoura passaram ao gado, á escravatura e ápolitica. Christiano Palha maldisse o governo, queintroduzira na falla do throno uma palavra relativaá propriedade servil; mas, com grande espanto seu,Rubião não acudiu á indignação. Era plano destevender os escravos que o testador lhe deixára,excepto um pagem; se alguma cousa perdesse, o restoda herança cobriria o desfalque. Demais, a falla dothrono, que elle tambem lêra, mandava respeitar apropriedade actual. Que lhe importavam escravosfuturos, se os não compraria? O pagem ir ser forro,logo que elle entrasse na posse dos bens. Palhadesconversou, e passou á politica, ás camaras, águerra do Paraguay, tudo assumptos geraes, ao queRubião attendia, mais ou menos. Sophia escutavaapenas; movia tão sómente os olhos, que sabiabonitos, fitando-os ora no marido, ora no interlocutor.
—Vae ficar na Côrte ou volta para Barbacena?perguntou o Palha no fim de vinte minutos deconversação.
—Meu desejo é ficar, e fico mesmo, acudiuRubião; estou cançado da provincia; quero gozar avida. Póde ser até que vá á Europa, mas não seiainda.
Os olhos do Palha brilharam instantaneamente.
—Faz muito bem; eu faria o mesmo, se pudesse;por agora, não posso. Provavelmente, já lá foi?
—Nunca fui. É por isso que tive cá umasidéas, ao sahir de Barbacena; ora adeus! é preciso agente tirar a morrinha do corpo. Não sei aindaquando será; mas hei de...
—Tem razão. Dizem que ha lá muita cousaexplendida; não admira, são mais velhos que nós;mas lá chegaremos; e ha cousas em que estamos apar delles, e até acima. A nossa Côrte, não digo quepossa competir com Paris ou Londres, mas é bonita,verá...
—Já vi.
—Já?
—Ha muitos annos.
—Ha de achal-a melhor; tem feito progressosrapidos. Depois, quando fôr á Europa...
—A senhora já foi á Europa? interrompeuRubião, dirigindo-se a Sophia.
—Não, senhor.
—Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher,acudiu Christiano. Rubião inclinou-se respeitosamente;e, voltando-se para o marido, disse-lhesorrindo:
—Mas não me apresenta a mim? Palha sorriutambem; entendeu que nenhum delles sabia o nomeum do outro, e deu-se pressa em dizer o seu.
—Christiano de Almeida e Palha.
—Pedro Rubião de Alvarenga; mas Rubião écomo todos me chamam.
A troca dos nomes pol-os ainda mais a gosto.Sophia não interveiu, porém, na conversa; afrouxoua redea aos olhos, que se deixaram ir ao sabor de simesmos. Rubião fallava, risonho, e ouvia attento aspalavras do Palha, agradecido da amizade com queo tratava um moço que elle nunca tinha visto.Chegou a dizer-lhe que bem podiam ir juntos áEuropa.
—Oh! eu não poderei ir nestes primeiros annos,respondeu o Palha.
—Tambem não digo já; eu não irei tão cedo.O desejo que me deu, quando sahi de Barbacena,foi simples desejo, sem prazo; irei, não ha duvida,mas lá para diante, quando Deus quizer.
Palha acudiu, rapido:
—Ah! eu, quando digo que só daqui a annos,accrescento tambem que a vontade de Deus pódeordenar o contrario. Quem sabe se daqui a mezes?A Divina Providencia é que manda o melhor.
O gesto que acompanhou estas palavras era convictoe pio; mas, nem Sophia o viu (olhava para ospés), nem o proprio Rubião escutou as ultimaspalavras. O nosso amigo estava morto por dizer acausa que o trazia á capital. Tinha a boca cheiada confidencia, prestes a entornal-a no ouvido docompanheiro de viagem,—e só por um resto deescrupulo, já frouxo, é que ainda a retinha. E porqueretel-a, se não era crime, e ia ser caso publico?
—Tenho de cuidar primeiro de um inventario,murmurou finalmente,
—O senhor seu pai?
—Não; um amigo. Um grande amigo, que selembrou de fazer-me seu herdeiro universal.
—Ah!
—Universal. Creia que ha amigos neste mundo;como aquelle, poucos. Aquillo era ouro. E que cabeça!que intelligencia! que instrucção! Viveudoente os ultimos tempos, donde lhe veiu algumaimpertinencia, alguns caprichos. Sabe, não?rico e doente, sem familia, tinha naturalmenteexigencias... Mas ouro puro, ouro de lei. Aquilloquando estimava, estimava de uma vez. Eramosamigos, e não me disse nada. Vae um dia, quandomorreu, abriu-se o testamento, e achei-me comtudo. É verdade. Herdeiro universal! Olhe que nãoha uma deixa no testamento para outra pessoa.Tambem não tinha parentes. O unico parente queteria, seria eu, se elle chegasse a casar com umairmã minha, que morreu, coitada! Fiquei só amigo;mas, elle soube ser amigo, não acha?
—Seguramente, affirmou o Palha.
Já os olhos deste não brilhavam, reflectiam profundamente.Rubião mettera-se por um matto cerrado,onde lhe cantavam todos os passarinhos dafortuna; regalava-se em fallar da herança; confessouque não sabia ainda a somma total, mas podiacalcular por longe...
O melhor é não calcular nada, atalhou Christiano.Nunca será menos de cem contos?
—Upa!
—Pois d'ahi para cima, é esperar calado. E,outra cousa...
—Creio que não menos de trezentos...
—Outra cousa. Não repita o seu caso a pessoasextranhas. Agradeço-lhe a confiança que lhe mereci,mas não se exponha ao primeiro encontro. Discriçãoe caras serviçaes nem sempre andam juntas.
Chegados á estação da Côrte, despediram se quasifamiliarmente. Palha offereceu a sua casa em SantaThereza; o ex-professor ia para a Hospedaria União,e prometteram visitar-se.
No dia seguinte, estava Rubião ancioso porter ao pé de si o recente amigo da estrada de ferro,e determinou ir a Santa Thereza, á tarde; mas foio proprio Palha que o procurou logo de manhã.Ia cumprimental-o, ver se estava bem alli, ou sepreferia a casa delle, que ficava no alto. Rubiãonão acceitou a casa, mas acceitou o advogado,um contra-parente do Palha, que este lhe indicou,como um dos primeiros, apezar de muito moço.
—É aproveital-o, em quanto elle não exige quelhe paguem a fama.
Rubião fel-o almoçar, e acompanhou-o ao escriptoriodo advogado, apezar dos protestos do cão, quequeria ir tambem. Tudo se ajustou.
—Vá jantar logo commigo, em Santa Thereza,disse o Palha ao despedir-se. Não tem que hesitar,lá o espero, concluiu retirando-se.
Rubião tinha vexame, por causa de Sophia; nãosabia haver-se com senhoras. Felizmente, lembrou-seda promessa que a si mesmo fizera de ser fortee implacavel. Foi jantar. Abençoada resolução!Onde acharia eguaes horas? Sophia era, em casa,muito melhor que no trem de ferro. Lá vestia acapa, embora tivesse os olhos descobertos; cá traziaá vista os olhos e o corpo, elegantemente apertadoem um vestido de cambraia, mostrando as mãos queeram bonitas, e um principio de braço. Demais,aqui era a dona da casa, fallava mais, desfazia-se emobsequios; Rubião desceu meio tonto.
Jantou lá muitas vezes. Era timido e acanhado.A frequencia attenuou a impressão dos primeirosdias. Mas trazia sempre guardado, e mal guardado,certo fogo particular, que elle não podia extinguir.Emquanto durou o inventario, e principalmente a denunciadada por alguem contra o testamento, allegandoque o Quincas Borba, por manifesta demencia,não podia testar, o nosso Rubião distrahiu-se; mas adenuncia foi destruida, e o inventario caminhou rapidamentepara a conclusão. Palha festejou o acontecimentocom um jantar em que tomaram parte,alem dos tres, o advogado, o procurador e o escrivão.Sophia tinha nesse dia os mais bellos olhos domundo.
—Parece que ella os compra em alguma fabricamysteriosa, pensou Rubião, descendo o morro; nuncaos vi como hoje.
Seguiu-se a mudança para a casa de Botafogo,uma das herdadas; foi preciso alfaial-a, e aindaaqui o amigo Palha prestou grandes serviços aoRubião, guiando-o com o gosto, com a noticia,acompanhando-o ás lojas e leilões. Ás vezes, comojá sabemos, iam os tres; porque ha cousas, diziagraciosamente Sophia, que só uma senhora escolhebem. Rubião acceitava agradecido, e demorava omais que podia as compras, consultando sem proposito,inventando necessidades, tudo para ter maistempo a moça ao pé de si. Esta deixava-se estar,fallando, explicando, demonstrando.
Tudo isso passava agora pela cabeça do Rubião,depois do café, no mesmo logar em que o deixamossentado, a olhar para longe, muito longe. Continuavaa bater com as borlas do chambre. Afinallembrou-se de ir ver o Quincas Borba, e soltal-o.Era a sua obrigação do todos os dias. Levantou-se efoi ao jardim, ao fundo.
—Mas que peccado é este que me persegue? pensavaelle andando. Ella é casada, dá-se bem com omarido, o marido é meu amigo, tem-me confiança,como ninguem... Que tentações são estas?
Parava, e as tentações paravam tambem. Elle, umSanto Antão leigo, differençava-se do anachoretaem amar as suggestões do diabo, uma vez que teimassemmuito. D'ahi a alternação dos monologos:
—É tão bonita! e parece querer-me tanto!Se aquillo não é gostar, não sei o que seja gostar.Aperta-me a mão com tanto agrado, com tantocalor... Não posso affastar-me; ainda que elles medeixem, eu é que não resisto.
Quincas Borba sentiu-lhe os passos, e começou alatir. Rubião deu-se pressa em soltal-o; era soltar-sea si mesmo por alguns instantes daquella perseguição.
—Quincas Borba! exclamou, abrindo-lhe a porta.
O cão atirou-se fóra. Que alegria! que enthusiasmo!que saltos em volta do amo! chega a lamber-lhea mão de contente, mas Rubião dá-lhe umtabefe, que lhe doe; elle recua um pouco, triste,com a cauda entre as pernas; depois o senhor dá umestalinho com os dedos, e eil-o que volta novamentecom a mesma alegria.
—Socega! socega!
Quincas Borba vae atraz delle pelo jardim fóra,contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreiaa liberdade, mas não perde o amo de vista.Aqui fareja, alli pára a coçar uma orelha, acolácata uma pulga na barriga, mas de um salto galgao espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vezcom os calcanhares do senhor. Parece-lhe que Rubiãonão pensa em outra cousa, que anda agorade um lado para outro unicamente para fazel-oandar tambem, e recuperar o tempo em queesteve retido. Quando Rubião estaca, elle olha paracima, á espera; naturalmente, cuida delle; é algumaideia, algum projecto, sairem juntos, oucousa assim agradavel. Não lhe lembra nunca apossibilidade de um pontapé ou de um tabefe.Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memoriadas pancadas. Ao contrario, os affagos ficam-lheimpressos e fixos, por mais distrahidos que sejam.Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.
A vida alli não é completamente boa nem completamentemá. Ha um moleque que o lava todosos dias em agua fria, usança do diabo, a que elle senão acostuma. Jean, o cosinheiro, gosta do cão,o criado hespanhol não gosta nada. Rubião passamuitas horas fóra de casa, mas não o trata mal, econsente que vá acima, que assista ao almoço e aojantar, que o acompanhe á sala ou ao gabinete.Brinca ás vezes com elle; fal-o pular. Se chegamvisitas de alguma ceremonia, manda-o levar paradentro ou para baixo, e, resistindo elle sempre, ohespanhol toma-o a principio com muita delicadeza,mas vinga-se d'ahi a pouco, arrastando-o por umaorelha ou por uma perna, atira-o ao longe, e fecha-lhestodas as communicações com a casa:
—Perro del infierno!
Machucado, separado do amigo, Quincas Borbavae então deitar-se a um canto, e fica alli muitotempo, calado; agita-se um pouco, até que achaposição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme,recolhe as idéas, combina, relembra; a figura vagado finado amigo passa-lhe ao longe, muito ao longe,aos pedaços, depois mistura-se á do amigo actual, eparecem ambas uma só pessoa; depois outrasideias...
Mas já são muitas ideias,—-são ideias demais;em todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias,—menosainda que poeira, explicará o leitor. Masa verdade é que este olho que se abre de quando emquando para fixar o espaço, tão expressivamente,parece traduzir alguma cousa, que brilha lá dentro,lá muito ao fundo de outra cousa que não seicomo diga, para exprimir uma parte canina, quenão é a cauda nem as orelhas. Pobre lingua humana!
Afinal adormece. Então as imagens da vida brincamnelle, em sonho, vagas, recentes, farrapo d'aquiremendo d'alli. Quando accorda, esqueceu o mal;tem em si uma expressão, que não digo seja melancolia,para não aggravar o leitor. Diz-se de uma paizagemque é melancolica, mas não se diz egual cousade um cão. A razão não pode ser outra senão que amelancolia da paizagem está em nós mesmos, emquantoque attribuil-a ao cão é deixal-a fóra de nós.Seja o que fôr, é alguma cousa que não a alegria deha pouco; mas venha um assobio do cosinheiro, ouum gesto do senhor, e lá vae tudo embora, os olhosbrilham, o prazer arregaça-lhe o focinho, e as pernasvoam que parecem azas.
Rubião passou o resto da manhã alegremente. Eradomingo; dous amigos vieram almoçar com elle, umrapaz de vinte e quatro annos, que roia as primeirasaparas dos bens da mãe, e um homem de quarenta equatro ou quarenta e seis, que ja não tinha que roer.
Carlos Maria chamava-se o primeiro, Freitas osegundo. Rubião gostava de ambos, mas differentemente;não era só a edade que o ligava mais aoFreitas, era tambem a indole deste homem. Freitaselogiava tudo, saudava cada prato e cada vinho comuma phrase particular, delicada, e sahia de lá comas algibeiras cheias de charutos, provando assim queos preferia a quaesquer outros. Tinha-lhe sido apresentadoem certo armazem da rua Municipal, ondejantaram uma vez juntos. Contaram-lhe alli a historiado homem, a sua boa e má fortuna, mas nãoentraram em particularidades. Rubião torceu o nariz;era naturalmente algum naufrago, cuja convivencianão lhe traria nenhum prazer pessoal nem consideraçãopublica. Mas o Freitas attenuou logo essa primeiraimpressão; era vivo, interessante, anecdotico,alegre como um homem que tivesse cincoenta contosde renda. Como Rubião fallasse das bonitas rosasque possuia, elle pediu-lhe licença para ir vel-as: eradoudo por flores. Poucos dias depois appareceu lá,disse que ia ver as bellas rosas, eram poucos minutos,não se incommodasse o Rubião, se tinha que fazer.Rubião, ao contrario, gostou de ver que o homemnão se esquecêra da conversação, desceu ao jardimonde elle ficara esperando, e foi mostrar-lhe asrosas. Freitas achou-as admiraveis; examinava-ascom tal affinco que era preciso arrancal-o de umaroseira para leval-o a outra. Sabia o nome de todas,e ia apontando muitas especies que o Rubião não tinhanem conhecia,—apontando e descrevendo,assim e assim, deste tamanho (indicava o tamanhoabrindo e arredondando o dedo pollegar e o index),e depois nomeava as pessoas que possuiam bonsexemplares. Mas as do Rubião eram das melhoresespecies; esta, por exemplo, era rara, e aquellatambem, etc. O jardineiro ouvia-o com espanto.Tudo examinado, disse Rubião:
—Venha tomar alguma cousa. Que hade ser?
Freitas contentou-se com qualquer cousa. Chegandoacima, achou a casa muito bem posta. Examinouos bronzes, os quadros, os moveis, olhou parao mar.
—Sim, senhor! disse elle, o senhor vive comoum fidalgo.
Rubião sorriu; fidalgo, ainda por comparação,é palavra que se ouve bem. Veiu o creado hespanholcom a bandeija de prata, varios licores, e calices,e foi um bom momento para o Rubião. Offereceuelle mesmo, este ou aquelle licor; recommendouafinal um que lhe deram como superior a tudo que,em tal ramo, poderia existir no mercado. O Freitassorriu incredulo.
—Talvez seja encarecimento, disse elle.
Tomou o primeiro trago, saboreou-o devagar,depois segundo, depois terceiro. No fim, pasmado,confessou que era um primor. Onde é que compraraaquillo? Rubião respondeu que um amigo,dono de um grande armazem de vinhos, o presentearacom uma garrafa; elle, porém, gostou tantoque já encommendára tres duzias. Não tardou quese estreitassem as relações. E o Freitas vae alli almoçarou jantar muitas vezes,—mais vezes aindado que quer ou póde,—porque é difficil resistir aum homem tão obsequioso, tão amigo de ver carasamigas.
Rubião perguntou-lhe uma vez:
—Diga-me, Sr. Freitas, se me désse na cabeçair á Europa, o senhor era capaz de acompanhar-me?
—Não.
—Porque não?
—Porque eu sou amigo livre, e bem podia serque discordassemos logo no itinerario.
—Pois tenho pena, por que o senhor é alegre.
—Engana-se, senhor; trago esta mascara risonha,mas eu sou triste. Sou um architecto de ruinas.Iria primeiro ás ruinas de Athenas; depois aotheatro, ver oPobre das Ruinas, um drama delagrymas depois, aos tribunaes de fallencias, ondeos homens arruinados...
E Rubião ria-se; gostava daquelles modos expansivose francos.
Queres o avêsso disso, leitor curioso? Vê este outroconvidado para o almoço, Carlos Maria. Se aquelletem os modos «expansivos e francos»,—no bomsentido laudatorio,—claro é que elle os tem contrarios.Assim, não te custará nada vel-o entrar nasala, lento, frio e superior, ser apresentado ao Freitas,e estender-lhe a mão, olhando para outra parte.Freitas que já o mandou cordialmente ao diabo porcausa da demora (é perto do meio dia), corteja-oagora rasgadamente, com grandes alleluias intimas.
Tambem podes vêr por ti mesmo que o nossoRubião, se gosta mais do Freitas, tem o outro emmaior consideração; esperou-o até agora, e esperal-o-iaaté amanhã. Carlos Maria é que não temconsideração a nenhum delles. Examinai-o bem; éum galhardo rapaz de olhos grandes e placidos,muito senhor de si, ainda mais senhor dos outros.Olha de cima; não tem o riso jovial, mas escarninho.Agora, ao sentar-se á meza, ao pegar no talher, aoabrir o guardanapo, em tudo se vê que elle estáfazendo um insigne favor ao dono da casa,—talvezdous,—o de lhe comer o almoço, e o de lhe nãochamar pascacio.
E, máo grado essa disparidade de caracteres, oalmoço foi alegre. Freitas devorava, com algumapausa é certo,—e, confessando a si mesmo que oalmoço, se tivesse vindo á hora marcada (onze)talvez não trouxesse o mesmo sabor. Agora orçavapelos primeiros bocados que acodem á fome do naufrago.Ao cabo de uns dez minutos, pôde começara fallar; e fallou como de costume, cheio de riso,multiplicando-se em gestos e olhares, desfiando umrosario de ditos agudos e anecdotas picarescas. CarlosMaria ouviu a maior parte delles com seriedade, parahumilhal-o, a ponto que o Rubião, que realmenteachava graça no Freitas, já não ousava rir. Para ofim do almoço, Carlos Maria afrouxou um tanto agravata do espirito, expandiu-se, referiu algumasaventuras amorosas de outros; Freitas, para lisongeal-o,pediu-lhe uma ou duas delle mesmo. CarlosMaria estourou de riso.
—Que papel quer o senhor que eu faça? disseelle.
Freitas explicou-se; não era uma apologia, eramfactos, pedia-lhe factos; não havia inconveniente,nem ninguém era capaz de suppor...
—O senhor dá-se bem com a residencia aqui emBotafogo? interrompeu Carlos Maria dirigindo-se aodono da caza.
Freitas, interrompido, mordeu os beiços, e, pelasegunda vez, mandou o moço ao diabo. Collou-seao espaldar, teso, grave, olhando para um painel daparede. Rubião respondeu que se dava bem, que apraia era linda.
—A vista é bonita, mas nunca pude tolerar omáo cheiro que ha aqui, em certas occasiões, disseCarlos Maria. Que lhe parece? continuou voltando-separa o Freitas.
Freitas desencostou-se, e disse tudo o que pensava,que um e outro podiam ter razão;—mas insistiuem que a praia, a despeito de tudo, era magnifica;fallou sem amúo, nem vexame; fez até o obsequiode chamar a attenção do Carlos Maria para umpedacinho de fructa que lhe ficára na ponta dobigode.
Chegaram ao fim, era pouco mais de uma hora.Rubião, calado, recompunha mentalmente o almoço,prato a prato, via com gosto os copos e os seus residuosde vinho, as migalhas esparsas, o aspecto finalda meza, em vesperas de café. De quando em quandodava um olhar á casaca do criado. Chegou a apanharo rosto de Carlos Maria em flagrante prazer, quandotirava as primeiras fumaças de um dos charutos queelle mandára distribuir. Nisto entrou o criado comuma cestinha coberta por um lenço de cambraia, euma carta, que acabavam de trazer.
—Quem é que manda isto? perguntou Rubião,
—D. Sophia.
Rubião não conhecia a lettra; era a primeira vezque ella lhe escrevia. Que podia ser? Via-se-lhe acommoção no rosto e nos dedos. Em quanto elle abriaa carta, Freitas familiarmente descobria a cestinha:eram morangos. Rubião leu tremulo estas linhas:
«Mando-lhe estas fructinhas para o almoço, sechegarem a tempo; e, por ordem do Christiano, ficaintimado a vir jantar comnosco, hoje, sem falta. Suaverdadeira amiga
Sophia».
—Que fructas são? perguntou Rubião fechandoa carta.
—Morangos.
—Chegaram tarde. Morangos? repetiu elle semsaber o que dizia.
—Não é preciso córar, meu caro amigo, disse-lherindo o Freitas, logo que o criado saiu. Estas cousasacontecem a quem ama...
—A quem ama? repetiu Rubião corando deveras.Mas, póde ler a carta, veja...
Ia mostral-a; recuou e metteu-a no bolso. Estavafóra de si, meio confuso, meio alegre; Carlos Mariadeleitou-se em dizer-lhe que elle não podia encobrirque o mimo era de alguma namorada. E nãoachava que reprehender; o amor era lei universal:se era alguma senhora casada, louvava-lhe a discrição...
—Mas pelo amor de Deus! interrompeu o amphytrião.
—Viuva? Estamos no mesmo caso, continuouCarlos Maria; a discrição aqui é ainda um merecimento.O maior peccado, depois do peccado, é a publicaçãodo peccado. Eu, se fosse legislador, propunhaque se queimassem todos os homens convencidos deindiscrição nestas materias; e haviam de ir para afogueira, como os réos da Inquisição, com a differençaque, em vez de sambenito, levariam uma capade pennas de papagaio...
Freitas não podia ter-se com riso, e batia na mesa,á maneira de applauso; Rubião, meio enfiado, acudiaque não era casada nem viuva...
—Solteira então? replicou o moço. Um casorioem breve? Vá, que é tempo. Morangos de noivado,continuou pegando alguns entre os dedos. Cheirama alcova de donzella e a latim de padre.
Rubião não sabia mais que dissesse; afinal tornouatraz e explicou-se; eram da senhora de um seuamigo particular. Carlos Maria piscou o olho;Freitas interveiu dizendo que, agora, sim, senhor,estava explicado; mas que, a principio, o mysterio,o arranjo da cestinha, o ar dos proprios morangos,—morangosadulteros, disse elle, rindo,—todasessas cousas davam ao negocio um aspecto immorale peccaminoso; mas tudo ficara acabado.
Tomaram em silencio o café; depois passaram ásala. Rubião desfazia-se em obsequios, mas preoccupado.Corridos alguns minutos, estava satisfeitocom a primeira supposição dos dous convivas: a deum amor adultero; achou até que se defendera comdemasiado calor. Uma vez que não dissesse o nomede ninguem, podia ter confessado que era, em verdade,um negocio intimo. Mas tambem podia acontecerque o proprio calor da negativa deixasse algumaduvida no animo dos dous, alguma suspeita... Aquisorriu consolado.
Carlos Maria consultou o relogio; eram duas horas,ia-se embora. Rubião agradeceu-lhe muito e muito oobsequio e pediu-lhe que repetisse; podiam passaralguns domingos assim em boa palestra amigavel.
—Apoiado! bradou Freitas aproximando-se.
Tinha mettido meia duzia de charutos no bolso,e ao sair, disse ao ouvido do Rubião:
—Cá vae a lembrança do costume; seis dias dedelicias, uma delicia por dia.
—Leve mais.
—Não; virei busca-los depois.
Rubião acompanhou-os ao portão de ferro. QuincasBorba, logo que ouviu vozes, correu do fundo dojardim e veiu saudal-os, particularmente ao senhor;fez festas a Carlos Maria, quiz lamber-lhe a mão;o rapaz affastou-se com repugnancia. Rubião deuum pontapé no cachorro, que o fez gritar e fugir.Afinal despediram-se todos.
—O senhor para onde vae? perguntou CarlosMaria ao Freitas.
Freitas calculou que elle iria a alguma visitapara os lados de S. Clemente, e quiz acompanhal-o.
—Vou até o fim da praia, disse.
—Eu volto para traz, tornou o outro.
Rubião viu-os ir, entrou, metteu-se na sala, eainda uma vez leu o bilhete de Sophia. Cada palavrad'essa pagina inesperada era um mysterio; aassignatura uma capitulação.Sophia apenas;nenhum outro nome da familia ou do casal.Verdadeiraamiga era evidentemente uma metaphora.Quanto ás primeiras palavras:Mando-lhe estasfructinhas para o almoço respiravam a candidez deuma alma boa e generosa. Rubião viu, sentiu, palpoutodas essas cousas pela unica força do instinctoe deu por si beijando o papel,—digo mal, beijandoo nome, o nome dado na pia de baptismo, repetidopela mãe, entregue ao marido como parte da escripturamoral do casamento, e agora roubado a todasessas origens e posses para lhe ser mandado a elle,no fim d'uma folha de papel... Sophia! Sophia!Sophia!
—Por que veiu tão tarde? perguntou-lhe Sophia,logo que elle appareceu á porta do jardim, em SantaThereza.
—Depois do almoço, que acabou ás duas horas,estive arranjando uns papeis. Mas não é tão tardeassim, continuou Rubião vendo o relogio; são quatrohoras e meia.
—Sempre é tarde para os amigos, replicouSophia em ar de censura.
Rubião cahiu em si; mas não teve tempo deemendar a mão. Deante delle, ao pé da casa, estavamsentadas em bancos de ferro umas quatro senhoras,caladas, olhando para elle, curiosas; eram visitas deSophia que esperavam a vinda de um capitalistaRubião. Já tinham ouvido fallar delle. Sophia foiapresental-o a ellas. Tres d'ellas eram casadas, umasolteira, ou mais que solteira. Contava trinta e noveannos, e uns olhos pretos, cansados de esperar. Erafilha de um major Siqueira, que d'ahi a alguns minutosappareceu no jardim.
—O nosso Palha já me tinha fallado em VossaExcellencia, disse o major depois de apresentado aoRubião. Juro que é seu amigo ás direitas. Contou-meo acaso que os ligou. Geralmente, as melhores amizadessão essas. Eu, em trinta e tantos, pouco antesda Maioridade, tive um amigo, o melhor dos meusamigos daquelle tempo, que conheci assim por umacaso, na botica do Bernardos, por alcunha oJoãodas pantorrilhas... Creio que usou d'ellas, em rapaz,entre 1801 e 1812. O certo é que a alcunha ficou.A botica era na rua de S. José, ao desembocar na daMisericordia...João das pantorrilhas... Sabe que eraum modo de engrossar a perna... Bernardes era onome delle, João Alves Bernardes... Tinha a boticana rua de S. José. Conversava-se alli muito, á tarde,e á noite. Ia a gente com o seu capote, e bengalão;alguns levavam lanterna. Eu não; levava só o meucapote... Ia-se de capote; o Bernardes,—João AlvesBernardes era o nome todo delle; era filho de Maricá,mas criou-se aqui no Rio de Janeiro...João daspantorrilhas era a alcunha; diziam que elle andárade pantorrilhas, em rapaz, e parece que foi um dospetimetres da cidade. Nunca me esqueci:João daspantorrilhas... Ia-se de capote...
A alma do Rubião bracejava debaixo deste aguaceirode palavras; mas, estava n'um becco sem sahidapor um lado nem por outro. Tudo muralhas.Nenhuma porta aberta, nenhum corredor, e achuva a cahir. Se pudesse olhar para as moças viria,ao menos, que era objecto de curiosidade de todas,principalmente da filha do major, D. Tonica; masnão podia; escutava, e o major chovia a cantaros.Foi o Palha que lhe trouxe um guarda-chuva.Sophia tinha ido dizer ao marido que o Rubiãoacabára de chegar; d'ahi a nada estava o Palha nojardim, e saudava o amigo, dizendo-lhe que vieratarde. O major, que explicava ainda uma vez a alcunhado boticario, abandonou a presa, e foi ter comas moças; depois sahiu á rua.
As senhoras casadas eram bonitas; a mesma solteiranão devia ter sido feia, aos vinte e cinco annos;mas Sophia primava entre todas ellas.
Não seria tudo o que o nosso amigo sentia, masera muito. Era daquella casta de mulheres que otempo, como um esculptor vagaroso, não acaba logo,e vae polindo ao passar dos longos dias... Essas esculpturaslentas são miraculosas; Sophia rastejavaos vinte e oito annos; estava mais bella que aosvinte e sete; era de suppor que só aos trinta désseo esculptor os ultimos retoques, senão quizesse prolongarainda o trabalho, por dous ou tres annos.
Os olhos, por exemplo, não são os mesmos daestrada de ferro, quando o nosso Rubião fallavacom o Palha, e elles iam sublinhando a conversação... Agora,parecem mais negros, e já não sublinhamnada; compõem logo as cousas, por si mesmos, emlettra vistosa e gorda, e não é uma linha nem duas,são capitulos inteiros. A boca parece mais fresca.Hombros, mãos, braços, são melhores, e ella aindaos faz optimos por meio de attitudes e gestos escolhidos.Uma feição que a dona nunca póde supportar,—cousaque o proprio Rubião achou a principioque destoava do resto da cara,—o excesso de sobrancelhas,—issomesmo, sem ter diminuido, comoque lhe dá ao todo um aspecto mui particular.
Traja bem; comprime a cintura e os seios no corpinhode lã fina côr de castanha, obra simples, etraz nas orelhas duas perolas verdadeiras,—mimoque o nosso Rubião lhe deu pela Pascoa.
A bella dama é filha de um velho funccionariopublico. Casou aos vinte annos com este Christianode Almeida e Palha, zangão da praça, que entãocontava vinte e cinco. O marido ganhava dinheiro,era geitoso, activo, e tinha o faro dos negocios e dassituações. Em 1864, apezar de recente no officio,adivinhou,—não se póde empregar outro termo,—adivinhouas fallencias bancarias.
—Nós temos cousa, mais dia menos dia; istoanda por arames. O menor brado de alarma levatudo.
O peior é que elle despendia todo o ganho e mais.Era dado á boa chira; reuniões frequentes, vestidoscaros e joias para a mulher, adornos de casa, mórmentese eram de invenção ou adopção recente,—levavam-lheos lucros presentes e futuros. Salvo emcomidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vezao theatro sem gostar delle, e a bailes, em que sedivertia um pouco,—mas ia menos por si que paraapparecer com os olhos da mulher, os olhos e osseios. Tinha essa vaidade singular; decotava a mulhersempre que podia, e até onde não podia, paramostrar aos outros as suas venturas particulares.Era assim um rei Candaules, mais restricto por umlado, e, por outro, mais publico.
E aqui façamos justiça á nossa dama. A principio,cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas taesforam as admirações colhidas, e a tal ponto o usoaccommoda a gente ás circumstancias, que ellaacabou gostando de ser vista, muito vista, para recreioe estimulo dos outros. Não a façamos maissanta do que é, nem menos. Para as despezas da vaidade,bastavam-lhe os olhos, que eram ridentes,inquietos, convidativos, e só convidativos: podemoscomparal-os á lanterna de uma hospedaria em quenão houvesse commodos para hospedes. A lanternafazia parar toda a gente, tal era a lindeza da côr,e a originalidade dos emblemas; parava, olhava eandava. Para que escancarar as janellas? Escancarou-as,finalmente; mas a porta, se assim podemoschamar ao coração, essa estava trancada e retrancada.
—Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capaz defazer um escandalo! pensava Rubião, á noite, aocanto de uma janella, de costas para fóra, olhandopara Sophia, que olhava para elle.
Cantava uma senhora. Os tres maridos de fóra,que alli estavam de visita, interromperam o voltarete,em attenção á cantora, e vieram á sala, poralguns instantes; a cantora era mulher de umd'elles. O Palha, que a acompanhava ao piano,não via o contemplação mutua da esposa e do capitalista.Não sei se todas as outras pessoas estavamno mesmo caso. Uma dellas, sim, essa sei que osvia: D. Tonica, a filha do major.
—Meu Deus! como é bonita! Sinto-me capazde fazer um escandalo! continuava a pensar o Rubião,encostado á janella, de costas para fóra, comos olhos esquecidos na bella dama, que olhava paraelle.
Entende-se bem que D. Tonica observasse a contemplaçãodos dous. Desde que Rubião alli chegou,não cuidou ella mais que de attrahil-o. Os seuspobres olhos de trinta e nove annos, olhos sem parceirosna terra, indo já a resvalar do cançaço nadesesperança, acharam em si algumas fagulhas.Volvel-os uma e muitas vezes, requebrando-os, era olongo officio d'elles: Não lhe custou nada armal-oscontra o capitalista.
O coração, meio desenganado, agitou-se outra vez.Alguma cousa lhe dizia que esse mineiro rico eradestinado pelo ceu a resolver o problema do matrimonio.Rico era ainda mais do que ella pedia;não pedia riquezas, pedia um esposo. Todas as suascampanhas fizeram-se sem a consideração pecuniaria;nos ultimos tempos ia baixando, baixando,baixando; a ultima foi contra um estudantinhopobre... Mas quem sabe se o ceu não lhe destinavajustamente um homem rico? D. Tonica tinha féem sua madrinha, Nossa Senhora da Conceição, einvestiu a fortaleza com muita arte e valor.
—Todas as outras são casadas, pensou ella.
Não tardou em perceber que os olhos de Rubiãoe os de Sophia caminhavam uns para os outros;notou, porém, que os de Sophia eram menos frequentese menos demorados, phenomeno que lhepareceu explicavel, pelas cautellas naturaes da situação.Podia ser que se amassem... Esta ideiaaffligiu-a; mas o desejo e a esperança mostraram-lheque um homem, depois de um ou mais amores,podia muito bem vir a casar. A questão era captal-o;a idéa de casar e ter familia podia ser que acabassede matar qualquer outra inclinação da parte delle,se alguma houvesse.
Eil-a que redobra esforços. Todas as suas graçasforam chamadas a postos, e obedeceram, ainda quemurchas. Gestos de ventarola, apertos de labios, olhosobliquos, marchas, contra-marchas para mostrarbem a elegancia do corpo e a cintura fina que tinha,tudo foi empregado. Era o velho formulario em acção;nada lhe rendera até alli, mas a loteria é assimmesmo: lá vem um bilhete que resgata os perdidos.
Agora, porém, á noite, por occasião do canto aopiano, é que D. Tonica deu com elles embebidosum no outro. Não teve mais duvida; não eram olharesapparentemente fortuitos, breves, como até alli,era uma contemplação que eliminava o resto dasala. D. Tonica sentiu o grasnar do velho corvo dadesesperança.Quoth the Raven: NEVERMORE.
Ainda assim continuou a luta; chegou a conseguirque Rubião viesse sentar-se ao pé della, poralguns minutos, e tratou de dizer cousas bonitas,phrases que lhe ficaram de romances, outras que apropria melancholia da situação lhe ia inspirando. Rubiãoouvia e respondia, mas inquieto, quando Sophiadeixava a sala, e não menos quando tornava a ella.Uma das vezes a distracção foi excessiva. D. Tonicaconfessava-lhe que tinha muita vontade de ver Minas,principalmente Barbacena. Que taes eram os ares?
—Os ares, repetiu machinalmente o outro.
Olhava para Sophia, que estava então em pé, decostas para elle, fallando a duas senhoras sentadas.Rubião admirou-lhe ainda uma vez a figura, o bustobem talhado, estreito em baixo, largo em cima,emergindo das cadeiras amplas, como uma grandebraçada de folhas sae de dentro de um vaso. Acabeça podia então dizer-se que era como umamagnolia unica, direita, espetada no centro do ramo.Era isto que Rubião mirava, quando D. Tonica lheperguntou pelos ares de Barbacena, e elle repetiua palavra della, sem lhe dar sequer a mesma fórmainterrogativa.
Rubião estava resoluto. Nunca a alma de Sophiapareceu convidar a delle, com tamanha instancia, avoarem juntas até ás terras clandestinas, dondeellas tornam, em geral, velhas e cançadas. Algumasnão tornam. Outras param a meio caminho. Grandenumero não passa da beira dos telhados...
A lua era magnifica. No morro, entre o céo e aplanicie, a alma menos audaciosa era capaz de ircontra um exercito inimigo, e destroçal-o. Vede oque não seria com este exercito amigo. Estavam nojardim. Sophia enfiara o braço no delle, para iremver a lua. Convidára D. Tonica, mas a pobre damarespondeu que tinha um pé dormente, que já ia,e não foi.
Os dous ficaram calados algum tempo. Pelasjanellas abertas viam-se as outras pessoas conversando,e até os homens, que tinham acabado ovoltarete. O jardim era pequeno; mas a voz humanatem todas as notas, e os dous podiam dizer poemassem ser ouvidos.
Rubião lembrou-se de uma comparação velha,mui velha, apanhada em não sei que decima de1850, ou qualquer outra pagina em prosa de todosos tempos. Essa ideia foi chamar aos olhos de Sophiaas estrellas da terra, e ás estrellas os olhos do céu.Tudo isso baixinho e tremulo.
Sophia ficou pasmada. De subito endireitou ocorpo, que até alli viera pesando no braço do Rubião.Estava tão acostumada á timidez do homem... Estrellas?olhos? Quiz dizer que não caçoasse comella, mas não achou como dar fórma á resposta,sem rejeitar uma ideia que tambem era sua, ouentão sem animal-o a ir adeante. Dahi um longosilencio.
—Com uma differença, continuou Rubião. Asestrellas são ainda menos lindas que os seus olhos, eafinal nem sei mesmo o que ellas sejam; Deus, queas poz tão alto, é porque não poderão ser vistas deperto, sem perder muito da formosura... Mas os seusolhos, não; estão aqui, ao pé de mim, grandes, luminosos,mais luminosos que o céu...
Loquaz, destemido, Rubião parecia totalmenteoutro. Não parou alli; fallou ainda muito, mas nãodeixou o mesmo circulo de ideias. Tinha poucas; e asituação, apezar da repentina mudança do homem,tendia antes a cerceal-as, que a inspirar-lhe novas.Sophia é que não sabia que fizesse. Trouxera aocollo um pombinho, manso e quieto, e sae-lhe umgavião,—um gavião adunco e faminto.
Era preciso responder, fazel-o parar, dizer que iapor onde ella não queria ir, e tudo isso, sem queelle se zangasse, sem que se fosse embora... Sophiaprocurava alguma cousa; não achava, porque esbarravana questão, para ella insoluvel, se era melhormostrar que entendia, ou que não entendia. Aquilembraram-lhe os proprios gestos della, as palavrinhasdoces, as attenções particulares; concluiaque, em tal situação, não podia ignorar o sentidodas finezas do homem. Mas confessar que entendia, enão despedil-o de casa, eis ahi o ponto melindroso.
Em cima, as estrellas pareciam rir daquella situaçãoinextricavel.
Vá que a lua os visse! A lua não sabe escarnecer;e os poetas, que a acham saudosa, terão percebidoque ella amou outr'ora algum astro vagabundo, quea deixou ao cabo de muitos seculos. Pode ser atéque ainda se amem. Os seus eclypses (perdôe-me aastronomia) talvez não sejam mais que entrevistasamorosas. O mytho de Diana descendo a encontrar-secom Endymião bem pode ser verdadeiro. Descer éque é de mais. Que mal ha em que os dous seencontrem alli mesmo no céo, como os grilos entreas folhagens cá de baixo? A noite, mãe caritativa,encarrega-se de velar a todos.
Depois, a lua é solitaria. A solidão faz a pessoaseria. As estrellas, em chusma, são como as moçasentre quinze e vinte annos, alegres, palreiras, rindoe fallando a um tempo de tudo e de todos.
Não nego que são castas; mas tanto peor,—terãorido do que não entendem... Castas estrellas! é assimque lhes chama Othello, o terrível, e TristramShandy, o jovial. Esses extremos do coração e doespirito estão de accordo n'um ponto: as estrellas sãocastas. E ellas ouviam tudo (castas estrellas!) tudo oque a boca temeraria de Rubião ia entornando naalma pasmada de Sophia.O recatado de longos mezesera agora (castas estrellas!) nada menos que umlibertino. Dissereis que o Diabo andára a enganar amoça com as duas grandes azas de archanjo queDeus lhe poz; de repente, metteu-as na algibeira, edesbarretou-se para mostrar as duas pontas malignas,fincadas na testa. E rindo, daquelle riso obliquo dasmãos, propunha comprar-lhe não só a alma, mas aalma e o corpo... Castas estrellas!
—Vamos para dentro, murmurou Sophia.
Quiz tirar o braço; mas o delle reteve-lh'o comforça. Não; ir para que? Estavam alli bem, muitobem... Que melhor? Ou seria que elle a estivesseaborrecendo? Sophia acudiu que não, ao contrario,mas precisava ir fazer sala ás visitas... Ha quantotempo estavam alli!
—Não ha dez minutos, disse o Rubião. Que sãodez minutos?
—Mas podem ter dado pela nossa ausencia...
Rubião estremeceu diante deste possessivo:nossaausencia. Achou-lhe um principio de complicidade.Concordou que podiam dar pelanossa ausencia.Tinha razão, deviam separar-se; só lhe pedia umacousa, duas cousas; a primeira é que não esquecesseaquelles dez minutos sublimes; a segunda é que,todas as noites, ás dez horas, fitasse o Cruzeiro, elleo fitaria tambem, e os pensamentos de ambos iriamachar-se alli juntos, intimos, entre Deus e oshomens.
O convite era poetico, mas só o convite. Rubião,em quanto fallava, ia devorando a moça com olhosde fogo, e segurava-lhe uma das mãos para que ellanão fugisse. Nem os olhos nem o gesto tinham poesianenhuma. Sophia esteve a ponto de dizer algumapalavra aspera, mas engoliu-a logo, ao advertir queRubião era um bom amigo da casa. Quiz rir, masnão pôde; mostrou se então arrufada, logo depoisresignada, afinal supplicante; pediu-lhe pela almada mãe delle, que devia estar no ceu... Rubião nãosabia do ceu nem da mãe, nem de nada. Que eramãe? que era ceu? parecia dizer a cara delle.
—Ai, não me quebre os dedos! suspirou baixinhoa moça.
Aqui é que elle começou a voltar a si; afrouxoua pressão, sem soltar-lhe os dedos.
—Vá, disse elle, mas primeiro...
Inclinava-se para beijar a mão, quando uma voz,a alguns passos, veiu accordal-o inteiramente.
—Olá! estão apreciando a lua? Realmente, estádeliciosa; está uma noite para namorados... Sim,deliciosa... Ha muito que não vejo uma noite assim... Olhemsó para baixo, os bicos de gaz... Deliciosa!para namorados... Os namorados gostam sempre dalua. No meu tempo, em Icarahy...
Era Siqueira, o terrivel major. Rubião não sabiaque dissesse; Sophia, passados os primeiros instantesreadquiriu a posse de si mesma; respondeu que, emverdade, a noite era linda; depois contou que Rubiãoteimava em dizer que as noites do Rio não podiamcomparar-se ás de Barbacena, e, a proposito disso,referira uma anecdota de um padre Mendes... Nãoera Mendes?
—Mendes, sim, o padre Mendes, murmurou oRubião.
O major mal podia conter o assombro. Tinhavisto as duas mãos presas, a cabeça do Rubião meiainclinada, o movimento rapido de ambos, quandoelle entrou no jardim; e sae-lhe de tudo isto umpadre Mendes... Olhou para Sophia; viu-a risonha,tranquilla, impenetravel. Nenhum medo, nenhumacanhamento; fallava com tal simplicidade, que omajor pensou ter visto mal. Mas o Rubião estragoutudo. Vexado, calado, não fez mais que tirar o relogiopara ver as horas, leval-o ao ouvido, como se lheparecesse que não andava, depois limpal-o com olenço, devagar, devagar, sem olhar para um nempara outro...
—Bem, conversem, vou vêr as amigas, que nãopodem estar sós. Os homens já acabaram o malditovoltarete?
—Já, respondeu o major olhando curiosamentepara Sophia. Já, e até perguntaram por este senhor;por isso é que eu vim ver se o achava no jardim.Mas estavam aqui ha muito tempo?
—Agora mesmo, disse Sophia.
Depois, batendo carinhosamente no hombro domajor,passou do jardim á casa; não entrou pela portada sala de visitas, mas por outra que dava para a dejantar; de maneira que, quando chegou áquella pelointerior, era como se acabasse de dar ordens para o chá.
Rubião, voltando a si, ainda não achou que dizer,e comtudo urgia dizer alguma cousa. Boa ideia eraa anecdota do padre Mendes; o peior é que não haviapadre nem anecdota, e elle era incapaz de inventarnada. Pareceu-lhe bastante isto:
—O padre! o Mendes! Muito engraçado o padreMendes!
—Conheci-o, disse o major sorrindo. O padreMendes? Conheci-o; morreu conego. Esteve algumtempo em Minas?
—Creio que esteve, murmurou o outro, espantado.
—Era filho aqui de Saquarema; era um quenão tinha este olho, continuou o major levando odedo ao olho esquerdo. Conheci-o muito, se é que éo mesmo; póde ser que seja outro.
—Póde ser.
—Morreu conego. Era homem de bons costumes,mas amigo de ver moças bonitas, como se mira umpainel de mestre; e que maior mestre que Deus?dizia elle. Esta D. Sophia, por exemplo, nunca ellea viu na rua que me não dissesse: Hoje vi aquellabonita senhora do Palha... Morreu conego; era filhode Saquarema... E, na verdade, tinha bom gosto... Realmente,a mulher do nosso Palha, é um primor,bella de cara e de figura; eu ainda a acho mais bemfeita que bonita... Que lhe parece?
—Parece que sim...
—E boa pessoa, excellente dona de casa; continuouo major accendendo um charuto.
A luz do phosphoro deu á cara do major umaexpressão de escarneo, ou de outra cousa menos dura,mas não menos adversa. Rubião sentiu correr-lheum frio pela espinha. Teria ouvido? visto? adivinhado?Estava alli um indiscreto, um mexeriqueiro?A cara do homem dizia que sim e que não; em todocaso, era mais seguro crer no peior. Aqui temos onosso heroe como alguem que, depois de navegarcosido com a praia, longos annos, acha-se um diaentre as ondas do alto mar; felizmente o medotambem é official de ideias, e deu-lhe alli uma,lisongear o interlocutor. Não hesitou em achal-ogracioso e interessante, e dizer-lhe que tinha umacasa ás suas ordens, na praia de Botafogo, numerotantos. Dava-lhe muita honra em travar relações comelle. Contava poucos amigos aqui: o Palha, a quemdevia grandes obsequios,—D. Sophia que era umasenhora de rara gravidade, e mais tres ou quatropessoas. Vivia só; podia ser até que se retirasse paraMinas.
—Já?
—Não digo já, mas póde ser que me não demore.Sabe que uma pessoa que viveu toda a sua vida emum logar, custa-lhe muito a acostumar-se em outro.
—Isso conforme.
—Sim, conforme... Mas é a regra.
—Regra será, mas o senhor vae ser uma excepção.A côrte é o diabo; apanha-se uma paixãocomo se apanha uma constipação; basta uma frestade ar, fica-se perdido. Olhe, eu não me dava deapostar que o senhor, antes de seis mezes, estácasado...
—Não viu nada, pensou Rubião.
E depois, alegre:
—Póde ser, mas tambem em Minas ha casamentos;nem lá faltam padres.
—Falta o padre Mendes, acudiu rindo o major.
Rubião sorriu constrangido, não entendendo se apalavra do major era innocente ou maliciosa. Este éque colheu as rédeas ao assumpto, e fallou de outrascousas, do tempo, da cidade, do ministerio, daguerra, e do marechal Lopez. E vede o contrasteda occasião: esse aguaceiro, maior que o da entrada,pareceu um raio de sol ao nosso Rubião. Eil-o queespaneja a alma ao calor do discurso infinito domajor, intercallando alguma palavrinha, se pode, esempre cabeceando com applauso. E pensava outravez que não, que elle não vira nada.
—Papae Papae está ahi? disse uma voz á portaque dava para o jardim.
Era D. Tonica; vinha chamal-o para irem embora.O chá estava na meza, é verdade; mas nãopodia esperar mais, tinha dor de cabeça, disse ellaao pae, baixinho. Depois estendeu os dedos ao Rubião;este pediu-lhe que ficasse ainda alguns minutos;o estimavel major...
—Perde o seu tempo, interrompeu o major; ellaé que me governa.
Rubião offereceu-lhe a casa com instancia; exigiuaté que lhe marcasse um dia, n'aquella mesmasemana, mas o major acudiu que não podia disporde dia certo; iria, logo que lhe fosse possivel. A vidadelle era muito trabalhosa; tinha os negocios doarsenal, que já eram muitos, e tinha mais...
—Papae! vamos!
—Vamos. Está vendo? Não posso conversar uminstante. Já te despediste? Onde está o meu chapéo?
Ladeira abaixo, D. Tonica foi ouvindo o resto dodiscurso do pae, que mudou de assumpto, sem mudarde estylo,—diffuso e derramado. Ouvia sem entender.Ia mettida em si mesma, absorta, remoendo anoite,recompondo os olhares de Sophia e de Rubião.
Chegaram a casa na rua do Senado; o pae foidormir, a filha não se deitou logo, deixou-se estarem uma cadeirinha, ao pé da commoda, onde tinhauma imagem da Virgem. Não trazia ideias de paznem de candura. Sem conhecer o amor, tinha noticiado adulterio, e a pessoa de Sophia pareceu-lhe hedionda.Via nella agora um monstro, metade gente,metade cobra, e sentiu que a aborrecia, que era capazde vingar-se exemplarmente, de dizer tudo ao marido.
—Conto-lhe tudo,—ia pensando—ou de vivavoz, ou por uma carta... Carta não; digo-lhe tudoum dia, em particular.
E imaginando o colloquio, antevia o espanto dohomem, depois o agastamento, depois os improperios,as palavras duras que elle havia de dizer ámulher, miseravel, indigna, vil... Todos esses nomessoavam bem aos ouvidos do seu desejo; ella faziaderivar por elles a propria colera; fartava-se de arebaixar assim, de a pôr debaixo dos pés do marido,já que o não podia fazer por si mesma... Vil, indigna,miseravel...
Durou muito tempo essa explosão de raiva interior,—pertode vinte minutos; mas a alma cançou,e tornou a si. A imaginação não podia mais, e arealidade proxima attrahiu-lhe a vista. Olhou emvolta de si, mirou a alcova de solteira, arrumadinhacom arte,—dessa arte engenhosa que faz da chitaseda e de um retalho velho uma fita, que recama,enlaça, alegra o mais que póde a nudez das cousas,enfeita as paredes tristes, aprimora os trastes modestose poucos. E tudo alli parecia feito para receberum noivo amado.
Onde li eu que uma tradicção antiga fazia esperara uma virgem de Israel, durante certa noitedo anno, a concepção divina? Seja onde fôr, comparemol-aá desta outra, que só differe daquella em nãoter noite fixa, mas todas, todas, todas... O vento, zunindofóra, nunca lhe trouxe o varão esperado, nema madrugada alva e menina lhe disse em que pontoda terra é que elle móra. Era só esperar, esperar...
Agora, aquietada a imaginação e o resentimento,mira e remira a alcova solitaria; recorda as amigasdo collegio e de familia, as mais intimas, casadastodas. A derradeira dellas desposou aos trintaannos um official de marinha, e foi ainda o que reverdeceuas esperanças á amiga solteira, que nãopedia tanto, posto que a farda de aspirante foi aprimeira cousa que lhe seduziu os olhos, aos quinzeannos... Onde iam elles? Mas lá passaram cincoannos, cumpriu os trinta e nove, e os quarenta nãotardam. Quarentona, solteirona; D. Tonica teve umcalafrio. Olhou ainda, recordou tudo, ergueu-se degolpe, deu duas voltas e atirou-se á cama chorando...
Não vão crer que a dor aqui foi mais verdadeiraque a colera; foram eguaes em si mesmas, os effeitosé que foram diversos. A colera deu em nada; ahumilhação debulhou-se em lagrimas legitimas.E contudo não faltaram a esta senhora impetos deestrangular Sophia, calcal-a aos pés, arrancar-lhe ocoração aos pedaços, dizendo-lhe na cara os nomescrus que attribuia ao marido... Tudo imaginações!Crede-me: ha tyrannos de intenção. Quem sabe?Na alma desta senhora passou agora um tenue fiode Caligula...
E em quanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo,meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudochorando seria monotono, tudo rindo cançativo; masuma boa distribuição de lagrimas e polkas, soluçose sarabandas, acaba por trazer á alma das cousas avariedade necessaria, e faz-se o equilibrio da vida.
A outra que ri é a alma do Rubião. Escutai acantiga alegre, brilhante, com que ella desce o morro,dizendo as cousas mais intimas ás estrellas,—áscastas estrellas,—especie de rhapsodia feita de umalinguagem que ninguem nunca alphabetou, por serimpossivel achar um signal que lhe exprima osvocabulos. Cá em baixo, as ruas desertas parecem-lhepovoadas, o silencio é um tumulto, e de todas asjanellas debruçam-se vultos de mulher, caras bonitase grossas sobrancelhas, todas Sophias e uma Sophiaunica. Uma ou outra vez, Rubião acha que foi temerario,indiscreto, recorda o caso do jardim, a resistencia,o enfado da moça, e chega a arrepender-se;tem então calefrios, fica atterrado com a ideia deque podem fechar-lhe a porta, e cortar inteiramenteas relações; tudo porque precipitou os acontecimentos.Sim, devia esperar; a occasião não era propria;visitas, muitas luzes, que ideia foi aquellade fallar de amores, sem cautellas, desbragadamente...?Achava-lhe razão; era bem feito que o despedisselogo.
—Fui um maluco! dizia em voz alta.
Não fallava do jantar, que foi lauto, nem dosvinhos, que eram generosos, nem da electricidadepropria de uma sala em que ha senhoras,galantes; achava-se maluco, completamente maluco.
Logo depois, a mesma alma que se accusava, defendia-se.Sophia parecia tel-o animado ao que fez;os olhos frequentes, depois fixos, os modos, os requebros,a distincção de o mandar sentar ao pé de si, ámesa de jantar, de só cuidar delle, de lhe dizer melodiosamentecousas affaveis, que era tudo isso maisque exhortações e solicitações? E a boa alma explicavaa contradicção da moça, depois, no jardim: eraa primeira vez que ouvia taes palavras, fóra dogremio conjugal, e alli perto de todos, devia tremernaturalmente; demais, elle expandira-se muito, eprecipitou tudo. Nenhuma graduação; devia ter idopé ante pé, e nunca segurar-lhe as mãos com tantaforça que chegasse a molestal-a. Em conclusão,achava-se grosseiro. Voltava o receio de lhe fecharema porta; depois, tornava ás consolações da esperança,á analyse das acções da moça, á propria invenção dopadre Mendes, mentira de complicidade; pensavatambem na estima do marido.. Aqui estremeceu.A estima do marido deu-lhe remorsos. Não só mereciaa confiança delle, mas accrescia certa divida pecuniaria,e umas tres lettras que Rubião aceitou porelle.
—Não posso, não devo, ia dizendo a si mesmo,não é bonito ir adeante. Tambem é verdade que, arigor, não sou autor de nada; ella é que, desdemuito, me anda desafiando. Pois que desafie agora!Sim, é preciso resistir-lhe... Emprestei o dinheiroquasi sem pedido, porque elle precisava muito e eudevia-lhe obsequios; as lettras, sim, as lettras foielle que me pediu que assignasse, mas não me pediumais nada. Sei, que é honrado, que trabalha muito;o diabo da mulher é que fez mal em metter-se depermeio, com os lindos olhos e a figura... Que admiravelfigura, meu pae do ceu! Hoje então estava divina.Quando o braço della roçava no meu, á meza,apezar da minha manga...
Confuso, incerto, ia a cuidar na lealdade que deviaao amigo, mas a consciencia partia-se em duas, umaincrepando a outra, a outra explicando-se, e ambasdesorientadas...
Deu por si na praça da Constituição. Viera andandoá toa. Teve ideia de ir ao theatro, mas eratarde. Então dirigiu-se ao largo de S. Franciscopara metter-se em um tilbury e ir para Botafogo.Achou tres, que vieram logo ao encontro delle,oferecendo os seus serviços e louvando principalmenteo cavallo, um bom cavallo,—um animalexcellente.
O rumor das vozes e dos vehiculos acordou ummendigo que dormia nos degráos da egreja. O pobrediabo sentou-se, viu o que era, depois tomou a deitar-se,mas accordado, de barriga para o ar, com osolhos fitos no ceu. O ceu fitava-o tambem, impassivelcomo elle, mas sem as rugas do mendigo, nem ossapatos rotos, nem os andrajos, um ceu claro, estrellado,socegado, olympico, tal qual presidiu ásbodas de Jacob e ao suicidio de Lucrecia. Olhavam-sen'uma especie de jogo do sizo, com certoar de majestades rivaes e tranquillas, sem arrogancia,nem baixeza, como se o mendigo dissesseao ceu:
—Afinal, não me hasde cair em cima.
E o ceu:
—Nem tu me hasde escalar.
Rubião não era philosopho; a comparação quealli fez entre os seus cuidados e os do maltrapilhoapenas lhe trouxe á alma uma sombra de inveja.Aquelle malandro não pensa em nada, disse elle comsigo;d'aqui a pouco está dormindo, emquanto eu...
—Meu amo, entre que o animal é bom. Vamoslá em quinze minutos.
Os outros dois cocheiros diziam-lhe a mesmacousa, quasi por eguaes palavras:
—Meu amo, venha aqui e verá...
—Olhe o meu cavallinho...
—Faça favor; são treze minutos de viagem. Emtreze minutos está em casa.
Rubião, depois de hesitar ainda, deu consigo dentrodo tilbury que lhe ficava á mão, e mandou tocarpara Botafogo. Então lembrou-se de um velho episodioesquecido, ou foi o episodio que lhe deu inconscientementea solução. Uma ou outra cousa,Rubião guiou o pensamento, com o fim de escaparás sensações daquella noite.
La iam longos annos. Elle era então muito rapaz,e pobre. Um dia, ás oito horas da manhã, sahiu decasa, que era na rua do Cano (Sete do Setembro),entrou no largo do S. Francisco do Paula; d'allidesceu pela rua do Ouvidor. Ia com alguns cuidados;morava em casa de um amigo, que começava atratal-o como hospede de tres dias, e elle ja o era dequatro semanas. Dizem que os de trez dias cheirammal; muito antes d'isso cheiram mal os defuntos,ao menos nestes climas quentes... Certo é que onosso Rubião, singelo como um bom mineiro, masdesconfiado como um paulista, ia cheio de cuidados,pensando em retirar-se quanto antes. Póde crer-seque desde que sahiu de casa, entrou no largo deS. Francisco, e desceu a rua do Ouvidor até a dosOurives, não viu nem ouviu cousa nenhuma.
Na esquina da rua dos Ourives deteve-o um ajuntamentode pessoas, e um prestito singular. Umhomem, judicialmente trajado, lia em voz alta umpapel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados,curiosos. Mas, as principaes figuras eramdous pretos. Um delles, mediano, magro, tinha asmãos atadas, os olhos baixos, a côr fula, e levavauma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraçoiam nas mãos de outro preto. Este outro olhava paraa frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava comgalhardia a curiosidade publica. Lido o papel, oprestito seguiu pela rua dos Ourives adeante; vinhado aljube e ia para o largo do Moura.
Rubião naturalmente ficou impressionado. Durantealguns segundos esteve como agora á escolha de umtilbury. Forças intimas offereciam-lhe o seu cavallo,umas que voltasse para traz ou descesse para iraos seus negocios,—outras que fosse ver enforcar opreto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, emvinte minutos está tudo findo!—Senhor, vamostratar de outras cousas! E o nosso homem fechou osolhos, e deixou-se ir ao acaso. O acaso, em vez deleval-o pela rua do Ouvidor abaixo até á da Quitanda,torceu-lhe o caminho pela dos Ourives, atrazdo prestito. Não iria ver a execução, pensou elle;era só ver a marcha do réo, a cara do carrasco, ascerimonias... Não queria ver a execução. De quandoem quando, parava tudo, chegava gente ás portas ejanellas, e o porteiro dos auditorios relia a sentença.Depois, o prestito continuava a andar com a mesmasolemnidade. Os curiosos iam narrando o crime,—umassassinato em Mata-porcos. O assassino era dadocomo homem frio e feroz. A noticia dessas qualidadesfez bem a Rubião; deu-lhe força para encararo réo, sem deliquios de piedade. Não era já a carado crime; o terror dissimulava a perversidade. Semreparar, deu consigo no largo da execução. Já allihavia bastante gente. Com a que vinha formou-semultidão compacta.
—Voltemos, disse elle consigo.
Verdade é que o réo ainda não subira a forca;não o matariam de relance; sempre era tempo defugir. E, dado que ficasse, porque não fecharia osolhos, como fez certo Alypio deante do expectaculodas feras? Note-se bem que Rubião nada sabiadesse tal rapaz antigo; ignorava, não só que fecháraos olhos, mas tambem que os abrira logo depois,devagarinho e curioso...
Eis o réo que sobe a forca. Passou pela turba umfremito. O carrasco pôz mãos á obra. Foi aqui que opé direito de Rubião descreveu uma curva na direcçãoexterior, obedecendo a um sentimento de regresso;mas o esquerdo, tomado de sentimento contrario,deixou-se estar; lutaram alguns instantes... Olheo meu cavallo!—Veja, é um rico animal!—Nãoseja máo!—Não seja medroso! Rubião esteveassim alguns segundos, os que bastaram para quechegasse o momento fatal. Todos os olhos fixaram-seno mesmo ponto, como os delle. Rubião não podiaentender que bicho era que lhe mordia as entranhas,nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e aretinham alli. O instante fatal foi realmente uminstante; o réo esperneou, contrahiu-se, o algoz cavalgou-ode um modo airoso e destro; passou pelamultidão um rumor grande, Rubião deu um grito,e não viu mais nada.
Vossa Senhoria hade ter visto que o cavallinhoé bom...
Rubião abriu os olhos, meio fechados, e deu como cocheiro que sacudia ao de leve a pontinha dochicote para espertar o animal. Interiormente zangou-secom o homem, que o veiu tirar de recordaçõesantigas. Não eram bellas, mas eram antigas,—antigase enfermeiras, porque lhe davam a beberum elixir que de todo parecia cural-o do presente.E vae o cocheiro empurra-o e accorda-o. Iam subindoa rua da Lapa; o cavallo, em verdade, comia oespaço como se fosse a descer.
—Este cavallo tem-me uma amizade, continuouo cocheiro, que se não acredita. Podia contar cousasextraordinarias. Ha pessoas que até dizem que émentira minha; mas, não, senhor, não é. Quemnão sabe que cavallo e cachorro são os animaesque mais gostam da gente? Cachorro parece queinda gosta mais...
Cachorro trouxe á memoria de Rubião o QuincasBorba, que lá devia estar em casa, á espera delle,ancioso. Rubião não esquecia a condição do testamento;jurava cumpril-a á risca. Convem dizerque, de envolta com o receio de vel-o fugir, entravao de vir a perder os bens. Não valiam affirmaçõesdo advogado; não ha, dizia-lhe este, nãoha no testamento clausula reversivel para outrem,no caso de fuga do cachorro; os bens não podiamsair-lhe das mãos. Que lhe importava a fuga, seera até melhor, um cuidado menos? Rubião aceitavaapparentemente a explicação, mas lá ficava a duvida,o exemplo de longas demandas, a variedadedas opiniões juridicas sobre uma só materia, aacção de algum invejoso ou inimigo, e, o que resumiatudo, o terror de ficar sem nada. Dahi osrigores da reclusão; dahi tambem o remorso de terpassado a tarde e a noute sem pensar uma só vez noQuincas Borba.
—Sou um ingrato! disse comsigo.
Emendou-se logo; mais ingrato era não ter pensadono outro Quincas Borba, que lhe deixou tudo.Vae se não quando, teve uma ideia extraordinaria, ade serem os dous Quincas Borbas a mesma creatura,por effeito da entrada da alma do defunto no corpodo cachorro, menos a purgar os seus peccados quea vigiar o dono. Foi uma preta de S. João d'El-reique lhe metteu, em creança, essa ideia de transmigração.Dizia ella que a alma cheia de peccados iapara o corpo de um bruto; chegou a jurar queconhecera um escrivão que acabou feito gambá...
—Vossa Senhoria, não se esqueça de dizer ondeé a casa, disse-lhe repentinamente o cocheiro.
—Pare. Já passámos, é aquella.
O tilbury deu volta e foi parar á porta; Rubiãopagou e desceu.
O cão ladrou de dentro; mas, logo que Rubiãoentrou, recebeu-o com grande alegria; e por maisimportuno que fosse, Rubião desfez-se em caricias.A idéa de poder estar alli o testador dava-lhe arrepios.Subiram juntos a escada de pedra; alli ficaram poralguns instantes, á luz do lampeão que Rubião mandáradeixar acceso. Rubião era mais credulo quecrente; não tinha razões para atacar nem para defendernada:—terra eternamente virgem para se lheplantar qualquer cousa. A vida da côrte deu-lhe atéuma particularidade; entre incredulos, chegava aser incredulo...
Olhou para o cão, emquanto esperava que lheabrissem a porta. O cão olhava para elle, de talgeito que parecia estar alli dentro o proprio e defunctoQuincas Borba; era o mesmo olhar meditativodo philosopho, quando examinava as cousas humanas... Novoarrepio; mas o medo, que era grande,não era tão grande que lhe atasse as mãos. Rubiãoestendeu-as sobre a cabeça do animal, coçando-lhe asorelhas e a nuca.
—Pobre Quincas Borba! Gosta de seu senhor,não gosta? Rubião é muito amigo de QuincasBorba...
E o cão movia devagar a cabeça, para a esquerdae para a direita, ajudando a distribuição das cariciasás duas orelhas pendentes; depois levantava oqueixo, para que lhe coçasse em baixo, e o donoobedecia; mas então os olhos do cão, meio fechadosde gosto, tinham um ar dos olhos do philosopho, nacama, contando-lhe cousas de que elle entendiapouco ou nada... Rubião fechava os seus. Abriram-lhea porta; despediu-se do cão, mas com taes carinhos,que era o mesmo que pedir-lhe que entrasse.O creado hespanhol incumbiu-se de o levar para baixo.
—Não lhe dê pancadas, recommendou Rubião.
Não lhe deu pancadas; mas só a descida era dolorosa,e o cão amigo gemeu por muito tempo nojardim. Rubião entrou, despiu-se e deitou-se. Ah!tinha vivido um dia cheio de sensações diversas econtrarias, desde as recordações da manhã, e o almoçoaos dous amigos, até aquella ultima ideia demetempsycose, passando pela lembrança do enforcado,e por uma declaração de amor não aceita, mal repellida,parece que adivinhada por outros... Misturavatudo; o espirito ia de um para outro lado como bolade borracha entre mãos de creanças. Comtudo, asensação maior era a do amor. Rubião estava admiradode si mesmo, e arrependia-se; mas o arrependimentoera obra da consciencia, ao passo que a imaginaçãonão soltava por nenhum preço a figura dabella Sophia... Uma, duas, tres horas... Sophia aolonge, os latidos do cão embaixo... O somno esquivo... Ondeiam já as tres horas? Tres e meia... Emfim,depois de muito cuidar, appareceu-lhe osomno, espremeu os classicas papoulas, o foi uminstante; Rubião dormiu antes das quatro.
Não, senhora minha, ainda não acabou este diatão comprido; não sabemos o que se passou entreSophia e o Palha, depois que todos se foram embora.Póde ser até que acheis aqui melhor sabor que no casodo enforcado.
Tende paciencia; é vir agora outra vez a SantaThereza. A sala está ainda alumiada, mas por umbico de gaz; apagaram-se os outros, e ia apagar-seo ultimo, quando o Palha mandou que o creadoesperasse um pouco la dentro. A mulher ia a sair,o marido deteve-a, ella estremeceu.
—A nossa festa esteve bem bonita, disse elle.
—Esteve.
—O Siqueira é um cacete, mas paciencia; éalegre. A filha não estava mal arranjada. Visteo Ramos como devorava tudo o que se lhe pozno prato? Tu verás que elle um dia engole a mulher.
—A mulher? disse Sophia, sorrindo.
—É gorda, concordo; mas a primeira era muitomais gorda, e creio que não morreu, elle enguliu-a,com certeza.
Sophia reclinada no canapé, ria das graças domarido. Criticaram ainda alguns episodios da tardee da noite; depois, Sophia, acariciando os cabellosdo marido, disse-lhe de repente:
—E você ainda não sabe do melhor episodio danoite.
—Que foi?
—Adivinhe.
Palha ficou algum tempo calado, olhando para amulher, a ver se adivinhava qual tinha sido o melhorepisodio da noite. Não podia acertar; acudia-lhe istoou aquillo, nada; Sophia abanava a cabeça.
—Mas então que foi?
—Não sei; adivinha.
—Não posso. Dize logo.
—Com uma condição, accudiu ella; não querozangas nem barulhos.
Palha foi ficando mais serio. Zangas? barulhos?Que diabo podia ser? pensava elle. Já se não ria;tinha só um resto de sorriso forçado e resignado.Olhou bem para ella, e perguntou-lhe o que era.
—Você promette o que lhe disse?
—Vá lá. Que foi?
—Pois saiba que ouvi nada menos que umadeclaração de amor.
Palha empallideceu. Não promettera deixar deempallidecer. Gostava da mulher, como sabemos,até o ponto singular de publical-a; não podia ouvira frio a noticia. Sophia viu a pallidez, e gostou damá impressão causada; para saboreal-a mais, inclinouo busto, soltou o cabello atraz, que a incommodavaum pouco, recolheu os grampos em um lenço, depoissacudiu a cabeça, respirou largo, e pegou nas mãosdo marido, que ficara de pé.
—É verdade, meu velho, namoraram-te a mulher.
—Mas quem foi o patife? disse elle impaciente.
—Mau, se vamos assim, não digo nada. Quemfoi? Quer saber quem foi? Hade ouvir quietinho.Foi o Rubião.
—O Rubião?
—Nunca imaginei tanto. Parecia-me acanhadoe respeitoso; fica sabendo que não é o habito quefaz o monge. De tantos homens que aqui vêm, e atérapazes solteiros, não ouvi nunca a menor cousa.Olhava para mim; naturalmente, porque não soufeia... Para que estás andando assim de um ladopara outro? Pára, que não quero levantar a voz... Bem,assim... Vamos ao caso. Não me fez declaraçãopositiva...
—Ah! não? accudiu vivamente o marido.
—Não, mas vem a dar na mesma.
E depois de contar o que se passara no jardim,desde que alli chegaram os dous, até que o majorappareceu:
—Foi só isso, concluiu; mas é bastante para verque se elle não disse amor é porque não lhe chegoua lingua, mas chegou-lhe a mão, que me apertou osdedos... Só isso, e é demais. Ainda bem que te nãozangas; mas é preciso trancar-lhe a porta,—ou deuma vez ou aos poucos; eu preferia logo, mas estoupor tudo. Como achas melhor?
Mordendo o beiço inferior, Palha ficou a olhar paraella a modo de estupido. Sentou-se no canapé, masnão fallou logo. Considerava o negocio. Achavanatural que as gentilezas da esposa chegassem a captivarum homem,—e Rubião podia ser esse homem;mas confiava tanto no Rubião, que o bilhete queSophia mandara a este, acompanhando os morangos,foi redigido por elle mesmo; a mulher limitou-se acopial-o, assignal-o e mandal-o. Nunca, entretanto,lhe passou pela cabeça que o amigo chegasse adeclarar amor a alguem, menos ainda a Sophia, se éque era amor deveras; podia ser gracejo de intimidade.Rubião olhava para ella muita vez, é certo;parece tambem que Sophia, em algumas occasiões,pagava os olhares com outros... Concessões de moçabonita! Mas, emfim, contanto que lhe ficassem osolhos, podiam ir alguns raios delles. Não havia deter ciumes do nervo optico, ia pensando o marido.Sophia levantou-se, foi pôr o lenço com os gramposem cima do piano, e deu uma olhada ao espelho paraver-se com a tranca cahida. Quando voltou ao canapé,o marido pegou-lhe na mão, rindo:
—Parece-me que te amofinaste mais do que ocaso merecia. Comparar os olhos de uma moça ásestrellas, e as estrellas aos olhos, afinal de contas écousa que até se póde fazer á vista de todos, emfamilia, e em prosa ou verso para o publico. A culpaé de quem tem olhos bonitos. Demais, apesar doque me contas, sabes que elle é ainda matuto...
—Então o diabo tambem é matuto, porque ellepareceu-me nada menos que o diabo. E pedir-me quea certa hora olhasse para o Cruzeiro, afim de que asnossas almas se encontrassem?
—Isso, sim, isso já cheira a namoro, concordouPalha; mas bem vês que é um pedido de alma candida.É assim que as moças fallam aos quinze annos;é assim que fallam os tolos em todos os tempos, eos poetas tambem; mas elle nem é moça nem poeta.
—Creio que não; mas segurar-me nas mãospara reter-me no jardim?
Palha teve um calefrio; a ideia do contacto dasmãos e da força empregada para reter a mulher éque o mortificava mais. Francamente, se pudesse,era capaz de ir ter com elle, e deitar-lhe as mãos aogasnate. Outras ideias, porém, acudiram e dissiparamo effeito da primeira; de modo que, cuidandoSophia havel-o irritado, viu-o dar de hombros comdesprezo, e responder-lhe que effectivamente era umacto de grosseria.
—E depois, Sophia, que ideia foi essa de convidal-oa ir ver a lua, não me dirás?
—Chamei D. Tonica para ir comnosco.
—Mas uma vez que D. Tonica recusou, deviaster achado meios e modos de não ir ao jardim. Sãocousas que acodem logo. Tu é que déste occasião...
Sophia olhou para elle, contrahindo as grossassobrancelhas; ia responder, mas calou-se. Palha continuoua desenvolver a mesma ordem de ideias; aculpa era della, não devia ter dado occasião...
—Mas você mesmo não me tem dito que devemostratal-o com attenções particulares? Seguramente,que eu não iria ao jardim, se pudesse imaginar oque se passou. Mas nunca esperei que um homemtão pacato, tão não sei como, se tirasse dos seus cuidadospara rir dizer-me cousas esquisitas...
—Pois daqui em diante evita a lua e o jardim,disse o marido, procurando sorrir.
—Mas, Christiano, como queres tu que lhe fallea primeira vez que elle cá vier? Não tenho carapara tanto; olha, o melhor de tudo é acabar com asrelações.
Palha atravessou uma perna sobre a outra ecomeçou a rufar no sapato. Durante alguns segundosficaram calados; cada um delles pensava em algumacousa. Palha cuidava na proposta de acabar com asrelações, não que quizesse acceital-a, mas não sabiacomo responder á mulher, que mostrava tanto resentimento,e se portava com tal dignidade. Era precisonem desapproval-a, nem aceitar a proposta, e nãolhe acendia nada. Levantou-se, metteu as mãos nasalgibeiras das calças, e depois de alguns passos, paroudefronte de Sophia.
—Talvez nos estejamos a incommodar com umsimples effeito de vinhos. Olha que elle não mandouo seu quinhão ao vigario; cabeça fraca, um pouco deabalo, e entornou o que tinha dentro... Sim, eu nãonego que lhe possas ter causado certa impressão,como tantas outras senhoras. Ha dias foi a um baileno Cattete, e fallou-me depois encantado das senhorasque lá vira, de uma principalmente, a viuva Mendes...
Sophia interrompeu-o:
—Porque é que não convidou essa belleza a vero Cruzeiro?
—Não jantou lá, naturalmente, e não haviajardim nem lua. O que eu quero dizer é que onossoamigo não estaria em si. Talvez se ache a agoraarrependido do que fez, envergonhado, sem sabercomo se hade explicar, ou se não explicará nada... Émuito possível até que se ausente...
—Era melhor.
—...Se o não chamarmos, concluiu Palha.
—Mas para que chamal-o?
—Sophia, disse-lhe o marido, sentando-se ao pédella. Não quero entrar em minudencias; digo sóque não permitto que alguem te falte ao respeito...
Houve uma pequena pausa; Sophia olhava paraelle, esperando.
—Não permitto, e ai d'aquelle que o fizesse,assim como ai de ti se o consentires; sabes que soude ferro, a este respeito, e que a certeza da tua amizade,—ou,vá logo tudo,—do amor que me tensé que me tranquillisa. Pois bem, nada me abalarelativamente ao Rubião. Crê que o Rubião é nossoamigo, devo-lhe obrigações...
—Alguns presentes, algumas joias, camarotesno theatro, não são motivos para que eu fite oCruzeiro com elle.
—Prouvera a Deus que fosse só isso! suspirou ozangão.
—Que ha mais?
—Não entremos em minudencias... Ha outrascousas... Fallaremos depois... Mas fica certa quenada me faria recuar, se visse no que contaste algumagravidade. Não ha nenhuma. O homemé um simplorio.
—Não.
—Não?
Sophia levantou-se; tambem não queria entrar emminudencias. O marido pegou-lhe na mão, ella ficoude pé e calada. Palha, com a cabeça reclinada nascostas do sophá, olhava sorrindo, sem achar quedizer. Ao cabo de alguns minutos, ponderou a mulherque era tarde, que ia mandar apagar tudo.
—Bem, tornou o Palha depois de breve silencio;escrevo-lhe amanhã que não ponha aqui os pés.
Olhou para a mulher esperando alguma recusa.Sophia coçava as sobrancelhas, e não respondeu nada.Palha repetiu a solução; e póde ser que destavez com sinceridade. A mulher então com ar detedio:
—Ora, Christiano... Quem é que te pede cartas?Já estou arrependida de haver fallado nisto. Contei-teum acto de desrespeito, e disse que era melhorcortar as relações,—aos poucos ou de uma vez.
—Mas como se hão de cortar as relações deuma vez?
—Fechar-lhe a porta, mas não digo tanto; basta,se queres, aos poucos...
Era uma concessão; Palha aceitou-a; mas immediatamenteficou sombrio, soltou a mão da mulher,com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pelacintura, disse em voz mais alta do que até então:
—Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro.
Sophia tapou-lhe a boca e olhou assustada parao corredor.
—Está bom, disse, não fallemos mais nisto. Vereicomo elle se comporta, e tratarei de ser mais fria... Nessecaso, tu é que não deves mudar, para quenão pareça que sabes alguma cousa. Verei o queposso fazer.
—Você sabe, cousas do negocio, algumas perdas... épreciso tapar um buraco daqui, outro dalli... odiabo! É por isso que... Mas riamos, meu bem;não vale nada. Sabes que confio em ti...
—Vamos, que é tarde.
—Vamos, repetiu o Palha dando-lhe um beijona face.
—Estou com muita dor de cabeça, murmurouella. Creio que foi do sereno, ou desta historia... Estoucom muita dor de cabeça...
Banhado, barbeado, meio vestido, Palha lia osjornaes, á espera do almoço, quando viu entrar amulher no gabinete, um tanto pallida.
—Estás peior?
Sophia respondeu com um gesto dos labios, quetanto negava como affirmava. Palha acreditou que,pelo dia adeante, passaria o incommodo; a agitaçãoda vespera, o jantar tarde... Depois, pediu que lhedeixasse acabar de ler um artigo relativo a certonegocio da praça. Era uma briga entre dous commerciantes,a proposito de uns saques; na vesperaescrevêra um delles, hoje vinha a resposta do outro.Resposta completa, disse elle acabando a leitura; eexplicou longamente á mulher a questão dos saques, omecanismo da cousa, a situação dos dous adversarios,os boatos da praça, tudo com o vocabulario technico.Sophia ouvia e suspirava; mas para o despotismoda profissão não ha suspiros de mulher, nem corteziade homem. Felizmente, o almoço estava na mesa.
Ficando só, a nossa amiga, que apenas tomou umcaldo, lá para as duas horas, foi sentar-se á porta decasa, no jardim. Naturalmente, voltou a pensarno lance da vespera. Não estava bem em si nem fórade si, nem com Deus nem com o diabo. Arrependia-sede haver contado o episodio ao marido, e ao mesmotempo irritava-se com as tentativas de explicaçãoque este lhe deu. No meio das reflexões, ouviu distinctamenteas palavras do major: «Olá! estão apreciando a lua?»como se as folhas as tivessem guardado,e repetido agora que a aragem começava amovel-as. Sophia teve um calefrio. Sequeira eraindiscreto,—indiscreto em farejar e indagar dascousas alheias; sel-o-hia ao ponto de publical-as?Sophia considerava-se já objecto de suspeita ou decalumnia... Formava planos. Não visitaria ninguem;ou iria para fóra, para Nova Friburgo oumais longe. A exigencia do marido em receber oRubião, como d'antes, era excessiva; maiormentepela causa dada. Não querendo obedecer nem desobedecer,cuidava em deixar a cidade, pretextando oque quer que fosse.
—A culpa foi minha! suspirou ella comsigo.
A culpa eram as attenções especiaes com o homem,carinhos, lembranças, obsequios familiares, e, navespera, aquelles olhos tão longamente pregadosnelle... Se não fosse isso... Ia-se assim perdendo emreflexões multiplicadas. Tudo a aborrecia, plantas,moveis, uma cigarra que cantava, um rumor devozes, na rua, outro de pratos, em casa, o andar dasescravas, e até um pobre preto velho que, em frenteá casa della, trepava com dificuldade um pedaço demorro. As cautellas do preto boliam-lhe com os nervos.
Nisto passou um rapaz alto, que a cortejou sorrindoe vagarosamente. Sophia cortejou-o tambem,um pouco espantada da pessoa e da acção.
—Quem é este sujeito? pensou ella.
E entrou a cogitar donde é que o conhecia, porque,em verdade, a cara não lhe era extranha, nem asmaneiras, nem os olhos placidos e grandes. Onde éque o teria visto? Percorreu varias casas, sem acertarcom a verdadeira; afinal pensou em certo baile,—nomez anterior,—em casa de um advogado quefazia annos. Era isso; viu-o lá, dansaram uma quadrilha,por simples condescendencia delle, que nãodansava nunca; lembrava-se de lhe ter ouvido muitascousas agradaveis, relativamente á belleza damulher, que, dizia elle, consistia principalmente nosolhos e nos hombros. Os della, como sabemos, erammagnificos. E quasi não tratou de outra cousa,—oshombros e os olhos;—a proposito de uns e outroscontou varias anecdotas succedidas com elle, algumassem interesse, mas fallava tão bem! e oassumpto era tão della! É verdade; lembrava-seagora que, apenas elle a deixou, Palha veiu ter comella, sentou-se na cadeira, ao lado, e disse-lhe onome do rapaz, porque ella não ouvira bem á pessoaque lh'o apresentara era Carlos Maria,—o propriodo almoço do nosso Rubião.
—É a primeira figura do salão, disse-lhe o maridocom orgulho de vêr que se occupára tanto tempocom ella.
—Entre os homens, explicou Sophia.
—Entre as senhoras és tu, acudiu elle mirando-seno collo da mulher, e circulando depois os olhos pelasala, com uma expressão de posse e dominio, que amulher já conhecia e que lhe fazia bem.
Quando acabou de recordar tudo, já iria longe orapaz; ao menos, foi uma interrupção na serie detedios que lhe tomavam a alma. Tinha uma dornas costas, que se calára por instantes. Voltou logo,teimosa, aborrecida; Sophia reclinou-se na cadeirae fechou os olhos. Quiz ver se passava pelo somno,mas não pôde. Os pensamentos eram tão teimososcomo a dor, e ainda mais ruins que ella. De quandoem quando um bater de azas, rapido, quebrava osilencio: eram as pombas de uma casa visinha quetornavam ao pombal. Sophia a principio abriu osolhos, umas duas vezes; depois, acostumou-se aorumor, e deixou-os fechados, a ver se dormia. Passadoalgum tempo, ouviu passos na rua, e levantou acabeça, suppondo que era Carlos Maria que regressava;era um carteiro que lhe trazia uma carta daroça. Entregou-lh'a em mão. Ao sair do jardim, tropeçouo carteiro no pé de um banco e caiu de bruços,espalhando as cartas no chão. Sophia não pôdeconter o riso.
Perdoem-lhe esse riso. Bem sei que o desassocego,a noite mal passada, o terror da opinião, tudocontrasta com esse riso inopportuno. Mas, leitoraamada, talvez a senhora nunca visse cair um carteiro.Os deuses de Homero,—e mais eram deuses,—debatiamuma vez no Olympo, gravemente, e atéfuriosamente. A orgulhosa Juno, ciosa dos colloquiosde Thetis e Jupiter em favor de Achilles,interrompe o filho de Saturno. Jupiter troveja eameaça; a esposa treme de colera. Os outros gememe suspiram. Mas quando Vulcano pega da urnade nectar, e vae coxeando servir a todos, rompeno Olympo uma enorme gargalhada inextinguivel.Porque? Senhora minha, com certeza nunca viucair um carteiro.
Ás vezes, nem é preciso que elle caia; outrasvezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginal-oou recordal-o. A sombra da sombra de umalembrança grotesca projecta-se no meio da paixãomais aborrecivel, e o sorriso vem ás vezes á tonada cara, leve que seja,—um nada. Deixemol-a rir,e ler a sua carta da roça.
Quinze dias depois, estando Rubião em casa,appareceu-lhe o marido de Sophia. Vinha perguntar-lheo que era feito delle? onde se tinha mettidoque não apparecia? estivera doente? ou já não cuidavados pobres? Rubião mastigava as palavras,sem acabar de compor uma phrase unica. No meiodisto, Palha viu que havia na sala um homem mirandoos quadros, e abafou a voz.
—Desculpe, não vi que estava com visitas, disseelle.
—Desculpar o que? é um amigo, como o senhor.Doutor, aqui está o meu amigo Christiano deAlmeida e Palha. Creio que já lhe fallei delle. Esteé o meu amigo Dr. Camacho,—João de SouzaCamacho.
Camacho fez um signal de cabeça, disse uma ouduas cousas, e quiz sair; mas Rubião acudiu, quenão, senhor, que ficasse. Eram ambos amigos; edepois a lua não tardava a illuminar a bella enseadade Botafogo.
A lua,—outra vez a lua,—e esta phrase:Creioque já lhe fallei delle, atordoaram de tal geito orecem-chegado, que não lhe foi possivel proferir umapalavra durante algum tempo. Bom é accrescentarque o dono da casa tambem não sabia que dissesse.Estavam os tres sentados, Rubião no canapé, Palhae Camacho em cadeiras defronte um do outro. Camacho,que conservára a bengala na mão, pol-averticalmente nos joelhos, batendo no nariz e olhandopara o tecto. Fóra, rumor de carros, tropel de cavallos,e algumas vozes. Eram sete horas e meia danoite, ou mais, perto de oito. O silencio foi maislongo do que era licito na occasião; nem Rubiãonem Palha davam por elle. Camacho é que, aborrecido,foi á janella, e exclamou dalli para os dous:
—Lá vem o luar entrando!
Rubião fez um gesto, Palha outro; mas quãodifferentes! Rubião era para transportar-se á janella;Palha ia a agarral-o pela gola. Cedia menos á divulgaçãopossivel da aventura do que á lembrança daviolencia com que elle pegára nas mãos da mulherpara attrahil-a a si. Um e outro contiveram-se; logodepois, Rubião, cruzando a perna esquerda sobre adireita, voltou-se para o Palha, e perguntou-lhe:
—Sabe que vou deixal-os?
Tudo esperava o outro, menos isto. Dahi o espantoem que se dissolveu a colera; dahi tambemuma sombrinha de pezar, que é o que o leitor menosespera. Deixal-os? Naturalmente ia-se embora doRio de Janeiro; era o castigo que a si mesmoimpunha, pela acção ruim que praticára, em SantaThereza; logo, vexára-se, arrependera-se... Não tinhacara de apparecer á esposa do amigo... Tal foi aprimeira conclusão do Palha; mas vieram outrashypotheses... Por exemplo, a paixão podia persistir,e a sahida delle era um modo de affastar-se dapessoa amada... tambem podia acontecer que entrasseahi algum plano de casamento.
A ultima hypothese trouxe á physionomia doPalha um elemento novo, que não sei como chame.Desappontamento? Já o elegante Garrett não achavaoutro termo para taes sensações, e nem por seringlez o desprezava. Vá desappontamento. Misturem-lheo espanto da noticia de separação, e a sombrinhade pezar; não se esqueçam da colera que primeirotrovejou surdamente, e não faltará quem acheque a alma deste homem é uma colxa de retalhos.
Póde ser; mas as colxas inteiriças são tão raras!O principal é que as cores se não desmintam umasás outras,—quando não possam obedecer á symetriae regularidade. Era o caso do nosso homem. Tinhao aspecto baralhado á primeira vista; mas attentandobem, por mais oppostos que fossem os matizes,lá se achava a unidade moral da pessoa.
Mas, porque é que Rubião ia deixal-os? Querazão? Que negocio?
No dia seguinte ao do caso de Santa Thereza,acordou oppresso. Almoçou mal. Não cuidou de nada;calçou as chinellas africanas sem interesse, nãocuidou das cousas bellas, ou simplesmente ricas, quelhe enchiam a casa. Não pôde supportar as cariciasdo cão mais de dous minutos; tão depressa o recebeuna sala, como o mandou embora. Elle é que enganouos criados e tornou ao amo; mas, tal foi o tabefeque recebeu na orelha, que não repetiu os affagos:estirou-se no chão com os olhos no amigo.
Rubião estava arrependido, irritado, envergonhado.No cap. X deste livro ficou escripto que os remorsosdeste homem eram faceis, mas de pouca dura; faltouexplicar a natureza das acções que os podiam fazercurtos ou compridos. Lá tratava-se daquella cartaescripta pelo finado Quincas Borba, tão expressivado estado mental do autor, e que elle occultou domedico, podendo ser util á sciencia ou á justiça. Seentrega a carta, não teria remorsos, nem talvezlegado,—o pequeno legado que então esperava doenfermo. No caso presente, era uma tentativa deadulterio. Certo que elle suspirava ha muito, e tinhaimpetos interiores; mas foi só a animação indiscretada moça, e a propria excitação do momento que olevou a fazer a declaração repellida. Passados osvapores da noite, não era só vexame que sentia, mastambem remorsos. A moral é uma, os peccados sãodifferentes.
Saltemos por cima de tudo o que elle sentiu epensou durante os primeiros dias. Chegou a esperaralguma cousa no domingo, um bilhete como o doanterior,—com morangos ou sem elles. Na segundafeira estava determinado a ir a Minas passar uns dousmezes; tinha necessidade de restaurar a alma aosventos de Barbacena. Não contava com o Dr. Camacho.
—Deixar-nos? perguntou finalmente o Palha.
—Creio que sim; vou a Minas.
Camacho, voltando da janella, sentou-se na cadeiraem que estivera antes.
—Que Minas? disse elle sorrindo.—Deixe-se deMinas por ora; lá irá quando fôr preciso, e não sedemorará muito que o seja.
Palha não ficou menos admirado das palavrasdeste que das do outro. Donde surgira semelhantehomem, com ar de dominar o Rubião? Olhou paraelle; era pessôa de estatura media, rosto estreito,pouca barba, queixo comprido, orelhas de pavilhãolargo e aberto. Foi tudo o que pôde observarrapidamente. Viu tambem que a roupa era fina, semluxo, e que os pés não estavam mal calçados. Nãoexaminou os olhos, nem o sorriso, nem as maneiras;não chegou a reparar no principio de calva, nemnas mãos magras e cabelludas.
Camacho era homem politico. Formado em direitoem 1844, pela faculdade do Recife, voltara para aprovincia natal, onde começou a advogar; mas aadvocacia era um pretexto. Já na academia, escreveraum jornal politico, sem partido definido, mas commuitas ideias colhidas aqui e alli, e expostas emestylo meio magro e meio inchado. Pessoa querecolheu esses primeiros fructos de Camacho fez umindice dos seus principios e aspirações:—ordempela liberdade, liberdade pela ordem;—a autoridadenão pode abusar da lei, sem esbofetear-se a sipropria;—a vida dos principios é a necessidademoral das nações novas como das nações velhas;—dai-meboas finanças, dar-vos-hei boa politica (BarãoLouis);—mergulhemos no Jordão constitucional;—daipassagem aos valentes, homem do poder;elles serão os vossos sustentaculos, etc, etc.
Na provincia natal, essa ordem de ideias teve deceder a outras; e o mesmo se pode dizer do estylo.Fundou alli um jornal; mas, sendo a politica localmenos abstracta, Camacho aparou as azas e desceudos intermundios de Epicuro ás nomeações de delegados,ás obras provinciaes, ás gratificações, á lutacom a folha adversa, e aos nomes proprios e improprios. Aadjectivação exigiu grande apuro. Nefasto,esbanjador, vergonhoso, perverso, foram ostermos obrigados, emquanto atacou o governo; mas,logo que, por uma mudança de presidente, passou adefendel-o, as qualificações mudaram tambem: energico,illustrado, justiceiro, fiel aos principios, verdadeiragloria da administração, etc., etc. Esse tiroteiodurou tres annos. No fim delles, a paixão politicadominava a alma do joven bacharel.
Membro da assemblea provincial, logo depois dacamara dos deputados, presidente de uma provinciade segunda ordem, onde, por natural mudança dodestino, leu nas folhas da opposição todos os nomesque escrevera outr'ora, nefasto, esbanjador, vergonhoso,perverso, Camacho teve dias grandes e pequenos,andou fóra e dentro da camara, fallou, escreveu,lutou constantemente. Acabou por vir morar nacapital do imperio. Deputado da conciliação dospartidos, viu governar o marquez de Paraná, e instoupor algumas nomeações, em que foi attendido;mas, se é certo que o marquez lhe pedia conselhos,e usava confiar-lhe os planos que trazia, ninguempodia affirmal-o, porque elle, em se tratando dapropria consideração, mentia sem difficuldade.
O que se pode crer é que queria ser ministro,e trabalhou por obtel-o. Aggregou-se a variosgrupos, segundo lhe parecia acertado; na camaradiscorria largamente sobre materias de administração,accumulava algarismos, artigos de legislação,pedaços de relatorio, trechos de autores francezes,embora mal traduzidos. Mas, entre a espiga e amão, está o muro de que falla o poeta; e por maisque o nosso homem estendesse a mão do seu desejopara colhel-a, a espiga la ficava do lado opposto,d'onde a arrancavam outras mãos, mais ou menossoffregas, ou até descuidadas.
Ha solteirões na politica. Camacho ia entrandonessa categoria melancolica, em que todos os sonhosnupciaes se evaporam com o tempo; mas não tinhaa superioridade de abandonal-a. Ninguem que organisasseum gabinete se atrevia, ainda que odesejasse, a dar-lhe uma pasta. Camacho ia-sesentindo cair; para simular influencia, tratava familiarmenteos poderosos do dia, contava em vozalta as visitas aos ministros e a outras dignidadesdo Estado; mas nem por isso dava um passoadeante.
Não lhe faltava que comer. A familia era pequena;mulher, uma filha, que ia nos dezoito annos, umafilhado de nove, e para isso dava a advocacia. Mastrazia a politica no sangue; não lia, quasi não fallavade outra cousa. De litteratura, sciencias naturaes,historia, philosophia, artes, não se preoccupavaabsolutamente nada. Tambem não conhecia grandescousas de direito; guardava algum do que lhe deraa academia, e mais a legislação posterior e as praticasforenses. Com isso ia arrazoando e ganhando.
Dias antes, indo passar a noite em casa de umconselheiro, viu alli Rubião. Fallava-se da chamadados conservadores ao poder, e da dissolução da camara.Rubião assistira á sessão em que o ministerio Itaborahypediu os orçamentos. Tremia ainda ao contar assuas impressões, descrevia a camara, tribunas, galeriascheias que não cabia um alfinete, o discurso de JoséBonifacio, a moção, a votação... Toda essa narrativanascia de uma alma simples; era claro. A desordemdos gestos, o calor da palavra tinham a eloquencia dasinceridade. Camacho escutava-o attento. Teve modode o levar a um canto da janella, e fazer-lhe consideraçõesgraves sobre a situação. Rubião opinava decabeça, ou por palavras soltas e approbatorias.
—Os conservadores não se demoram no poder,disse-lhe finalmente Camacho.
—Não?
—Não; elles não querem a guerra, e tem de cahirpor força. Veja como andei bem no programma da folha.
—Que folha?
—Conversaremos depois.
No dia seguinte, almoçaram noHotel de la Bourse,a convite de Camacho. Este referiu ao outro quefundára, mezes antes, uma folha com o unico programmade continuar a guerra a todo o transe... Andavamuito accesa a dissenção entre liberaes;pareceu-lhe que o melhor modo de servir ao propriopartido era dar-lhe um terreno neutro e nacional.
—E isto agora serve-nos, concluiu elle, porque ogoverno inclina-se á paz. Já amanhã sae um artigomeu, furibundo.
Rubião ouvia tudo, quasi sem tirar os olhos dooutro, comendo rapidamente, nos intervallos em queo proprio Camacho inclinava a cabeça ao prato. Folgavade vêr-se confidente politico; e, para dizer tudo,a ideia de entrar em luta para colher alguma cousadepois, um logar na camara, por exemplo, espanejouas azas de ouro no cerebro do nosso amigo. Camachonão lhe fallou em mais nada; procurou-o no dia seguinte,e não o achou. Agora, pouco depois deentrar, vinha o Palha interrompel-os.
—Sim, mas eu preciso ir a Minas, teimou Rubião.
—Para que? perguntou Camacho.
E o Palha fez-lhe egual pergunta. Para que iriaa Minas, salvo se era negocio de pouco tempo. Oujá estava aborrecido da Corte?
—Não, aborrecido não estou; ao contrario...
Ao contrario, gostava muito della; mas a terranatal—por menos bonita que seja,—um logarejo,—dásaudades á gente;—ainda mais quando apessoa veiu de lá homem. Queria ver Barbacena.E Barbacena era a primeira terra do mundo. Durantealguns minutos, Rubião pode subtrahir-se á acçãodos outros. Tinha a terra natal em si mesmo: ambições,vaidades da rua, prazeres ephemeros, tudocedia ao mineiro saudoso da provincia. Se a almadelle foi alguma vez dissimulada, e escutou a voz dointeresse, agora era a simples alma de um homemarrependido do goso, e mal accommodado na propriariqueza.
Palha e Camacho olharam um para o outro... Oh!esse olhar foi como um bilhete de visita trocadoentre as duas consciencias. Nenhuma disse o seusegredo, mas viram os nomes no cartão, e comprimentaram-se.Sim, era preciso impedir que o Rubiãosahisse; Minas podia retel-o. Concordaram que láfosse, mas depois,—alguns mezes depois;—etalvez o Palha fosse tambem. Nunca vira Minas;seria excellente occasião.
—O senhor? perguntou Rubião.
—Sim, eu; ha muito que desejo ir a Minase a S. Paulo. Olhe, ha mais de anno que estivemosvae não vae... Sophia é companheira para estascousas. Lembra-se quando nos encontrámos no tremda estrada de ferro?... Vinhamos de Vassouras;mas esta ideia de Minas nunca nos deixou. Iremosos tres.
Rubião agarrou-se ás eleições proximas; masaqui interveiu Camacho, affirmando que não erapreciso, que a serpente devia ser esmagada cámesmo na capital; não faltaria tempo depois parair matar saudades e receber a recompensa... Rubiãoagitou-se no canapé. A recompensa era, com certeza,o diploma de deputado. Visão magnifica, ambiçãoque nunca teve, quando era um pobre diabo... Eil-aque o toma, que lhe aguça todos os appetites degrandeza e gloria... Entretanto, ainda insistiu porpoucos dias de viagem, e, para ser exacto, devojurar que o fez sem desejo de que lhe aceitassem aa proposta.
A lua estava então brilhante; a enseada, vistapelas janellas, apresentava aquelle aspecto seductorque nenhum carioca póde crêr que exista em outraparte do mundo. A figura de Sophia passou ao longe,na encosta do morro, e diluiu-se no luar; a ultimasessão da camara, tumultuosa, resoou aos ouvidosdo Rubião... Camacho foi até á janella e voltoulogo.
—Mas quantos dias? perguntou elle.
—Isso é que não sei, mas poucos.
—Em todo o caso, amanhã fallaremos.
Camacho despediu-se. Palha ficou ainda algunsinstantes, para dizer-lhe que seria exquisito voltara Minas, sem que elles liquidassem as contas... Rubiãointerrompeu-o. Contas? Quem lhe fallavaem contas?
—Bem se vê que o senhor não é homem de comercio,redarguiu Christiano.
Não sou, é verdade; mas as contas pagam-sequando se podem. Entre nós, tem sido isto. Ou,quem sabe? Seja franco; precisa de algum dinheiro?
Não, não preciso. Obrigado. Tenho que proporum negocio, mas hade ser mais demoradamente. Vimvel-o para não botar annuncios nos jornaes: «Desappareceuum amigo, por nome Rubião, que tem umcachorro...»
Rubião gostou da facecia. Palha saiu e elle foiaccompanhal-o até a esquina da rua marquez deAbrantes. Ao despedir-se prometteu visital-o emSanta Thereza, antes de ir a Minas.
Pobre Minas! Rubião voltou para casa, sosinho,a passo lento, pensando no modo de lá não ir agora.E as palavras dos dous andavam-lhe no cerebro,como peixinhos de ouro em globo de vidro, abaixo,acima, rutilantes: «aqui é que se deve esmagar acabeça da cobra;»—«Sophia é companheira paraestas cousas.» Pobre Minas!
No dia seguinte recebeu um jornal que nuncavira antes, aAtalaia. O artigo editorial desancavao ministerio; a conclusão, porém estendia-se a todosos partidos e á nação inteira:—Mergulhemos noJordão constitucional. Rubião achou-o excellente;tratou de ver onde se imprimia a folha para assignal-a.Era na rua da Ajuda; lá foi, logo que saiude casa; lá soube que o redactor era o Dr. Camacho.Correu ao escriptorio delle.
Mas, em caminho na mesma rua:
—Deolindo! Deolindo! bradou angustiadamenteuma voz de mulher á porta de uma colchoaria.
Rubião ouviu o grito, voltou-se, viu o que era.Era um carro que descia e uma creança de tres ouquatro annos que atravessava a rua. Os cavallosvinham quasi em cima della, por mais que o cocheiroos sofreasse. Rubião atirou-se aos cavallos e arrancouo menino ao perigo. A mãe, quando o recebeudas mãos do Rubião, não podia fallar; estava pallida,tremula, e chorava. Algumas pessoas puzeram-se aaltercar com o cocheiro, mas um homem calvo, quevinha dentro, ordenou-lhe que fosse andando. O cocheiroobedeceu. Assim, quando o pai, que estava nointerior da colchoaria, veiu fóra, já o carro dobravaa esquina de S. José.
—Ia quasi morrendo, disse a mãe. Se não fosseeste senhor, não sei o que seria do meu pobre filho.
Era uma novidade no quarteirão. Visinhos entravama vêr o que succedêra ao pequeno; na rua,creanças e moleques, espiavam pasmados. A creançatinha apenas um arranhão no hombro esquerdo, produzidopela queda.
—Não foi nada, disse Rubião; em todo caso,não deixem o menino sair á rua; é muito pequenino.
—Obrigado, acudiu o pae; mas onde está oseu chapéo?
Rubião advertiu então que perdêra o chapéo. Umrapazinho esfarrapado, que o apanhára, estava áporta da colchoaria, aguardando a occasião de restituil-o.Rubião deu-lhe uns cobres em recompensa,cousa em que o rapazinho não cuidára, ao ir apanharo chapéo. Não o apanhou senão para ter uma partena gloria e nos serviços. Entretanto, aceitou os cobrescom prazer; foi talvez a primeira ideia que lhederam da venalidade das acções.
—Mas, espere, tornou o colchoeiro, o senhorferiu-se?
Com effeito, a mão do nosso amigo tinha sangue;havia um ferimento na palma, cousa pequena, e queelle não podia saber se era obra do dente do cavallo,se de algum ferrão das correias. A verdade é quesó agora começou a sentil-o. A mãe do pequenocorreu a buscar uma bacia e uma toalha, apezarde dizer o Rubião que não era nada, que não valiaa pena. Veiu a agua; emquanto elle lavava a mão,o colchoeiro correu á pharmacia proxima, e trouxeum pouco de arnica. Rubião curou-se, atou o lençona mão; a mulher do colchoeiro escovou-lhe o chapéo;e, quando elle sahiu, um e outro agradeceram-lhemuito o beneficio da salvação do filho. A outra gente,que estava á porta e na calçada, fez-lhe alas.
—Que é que tem ahi na mão? inquiriu Camacho,logo que Rubião entrou no escriptorio.
Rubião narrou o incidente da rua da Ajuda. Oadvogado fez-lhe muitas perguntas sobre a creança,os paes, o numero da casa; mas, o proprio Rubiãopôz termo ás respostas.
—Não sabe, ao menos, o nome do pequeno?
—Ouvi chamar Deolindo. Vamos ao que importa.Venho assignar a sua folha; recebi umnumero, e quero contribuir para...
Camacho acudiu que não precisava de assignaturas.Em assignaturas, a folha ia bem. O que ellaprecisava era de material typographico e desenvolvimentono texto; ampliar a materia, pôr-lhe maisnoticiario, variedades, traducção de algum romancepara o folhetim, movimento do porto, da praça, etc.Tinha annuncios, como viu.
—Sim, senhor.
—Estou com o capital quasi subscripto. Bastamdez pessoas, e já somos oito; eu e mais sete. Faltamdous. Com mais duas pessoas está completo o capital.
—Quanto será? pensou Rubião.
Camacho batia com um canivete na beira da escrevaninha,calado, olhando ás furtadellas para ooutro. Rubião passou uma vista á sala, poucosmoveis, alguns autos sobre um tamborete ao pédo advogado, estante com livros, Lobão, Pereira eSouza, Dalloz,Ordenações do reino, um retrato naparede, deante da escrevaninha.
—Conhece? disse Camacho apontando para oretrato.
—Não, senhor.
—Veja se conhece.
—Não posso saber. Nunes Machado?
—Não, acudiu o ex-deputado dando á cara umar pesaroso. Não pude obter um bom retrato delle.Vendem-se ahi umas lithographias que me não parecemboas. Não; aquelle é o marquez.
—De Barbacena?
—Não, de Paraná; é o grande marquez, meuparticular amigo. Tentou conciliar os partidos, e foipor isso que me achei com elle. Morreu cedo; aobra não pôde ir adeante. Hoje, se elle a quizesse,ter-me-hia contra si. Não! nada de conciliações;guerra de morte. Havemos de destruil-os; leia aAtalaia, meu bom companheiro de lutas; recebel-a-haem casa...
—Não, senhor.
—Porque não?
Rubião baixou os olhos deante do nariz interrogativodo Camacho.
—Não, senhor; sou firme, desejo ajudar osamigos. Receber a folha de graça...
—Mas, se já lhe disse que de assignaturas vamosbem, retorquiu Camacho.
—Sim, senhor, mas não disse tambem que faltamduas pessoas para o capital?
—Duas, sim; temos oito...
—Quanto é o capital?
—O capital é de cincoenta contos; cinco por pessoa.
—Pois entro com cinco.
Camacho agradeceu-lh'o em nome das ideias.Tinha intenção de convidal-o para entrar com elles;era um direito adquirido pela convicção, pela fidelidade,pelo amor aos negocios publicos do seu recenteamigo. Uma vez que espontaneamente se alistou,pedia-lhe que o desculpasse... Mostrou-lhe a listados outros; Camacho era o primeiro; entrava com afolha, o material existente, as assignaturas, e o trabalhoherculeo... Ia a emendar-se, mas repetiu corajosamente:trabalho herculeo. Podia dizer que o era,sem deslustre, nem mentira; esganou cobras, emcreança. Já agora era um vicio; gostava da luta,morreria nella, envolvido na bandeira...
Rubião despediu-se. No corredor passou por elleuma senhora alta, vestida de preto, com um arruidode seda e vidrilhos. Indo a descer a escada, ouviu avoz do Camacho, mais alta do que até então:—Oh!senhora baroneza!
No primeiro degráo parou. A voz argentina dasenhora começou a dizer as primeiras palavras; erauma demanda... Baroneza! E o nosso Rubião ia descendoa custo, de manso, para não parecer que ficáraouvindo. O ar mettia-lhe pelo nariz acima umaroma fino e raro, cousa de tontear, o aroma deixadopor ella. Baroneza! Chegou á porta da rua; viuparado umcoupê; o lacaio, em pé, na calçada, ococheiro na almofada, olhando; fardados ambos... Quenovidade podia haver em tudo isso? Nenhuma.Uma senhora titular, cheirosa e rica, talvez demandistapara matar o tedio. Mas o caso particularé que elle, Rubião, sem saber porque, e apezar doseu proprio luxo, sentia-se o mesmo antigo professorde Barbacena...
Na rua, encontrou Sophia com uma senhora edosae outra moça. Não teve olhos para ver bem as feiçõesdesta; todo elle foi pouco para Sophia. Fallaram-seacanhadamente, dous minutos apenas, e seguiram oseu caminho. Rubião parou adeante, e olhou paratraz; mas as tres senhoras iam andando sem voltar acabeça. Depois do jantar, comsigo:
—Irei lá hoje?
Reflexionou muito sem adeantar nada. Ora quesim, ora que não. Achara-lhe um modo exquisito;mas lembrava-se que sorriu,—pouco, mas sorriu.Poz o caso á sorte. Se o primeiro carro que passasseviesse da direita, iria; se viesse da esquerda,não. E deixou-se estar na sala, nopouf central,olhando. Veiu logo um tilbury da esquerda. Estavadito; não ia a Santa Thereza. Mas aqui a conscienciareagiu; queria os proprios termos da proposta:um carro. Tilbury não era carro. Devia ser o quevulgarmente se chama carro, uma caleça inteira oumeia, ou ainda uma victoria... D'ahi a pouco vieramchegando da direita muitas caleças, que voltavamde um enterro. Foi.
Sophia deu-lhe a mão gentilmente, sem sombrade rancor. As duas senhoras do passeio estavamcom ella, em trajes caseiros; apresentou-as. A moçaera prima, a velha era tia,—aquella tia da roça,autora da carta que Sophia recebeu no jardim dasmãos do carteiro, que logo depois deu uma queda.A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola,alguns escravos e dividas, que lhe deixárao marido, alem das saudades. A filha era MariaBenedicta,—nome que a vexava, por ser de velha,dizia ella; mas a mãe retorquia-lhe que as velhasforam algum dia moças e meninas, e que os nomesadequados ás pessoas eram cousas de poetas e contadoresde historias. Maria Benedicta era o nome daavó della, afilhada de Luiz de Vasconcellos, o vice-rei.Que queria mais?
Contaram isto ao Rubião, sem que ella se vexasse.Sophia, ou por attenuar o caso, ou por outro motivo,accrescentou que os mais feios nomes eramlindos, segundo a pessoa. Maria Benedicta era lindissimo.
—Não lhe parece? concluiu voltando-se paraRubião.
—Deixa de caçoada, prima! acudiu Maria Benedicta, rindo.
Podemos crer que a velha nem Rubião entenderamo dito,—a velha, porque começava a cochilar,—Rubiãoporque affagava um cãosinho que tinhamdado a Sophia, pequeno, delgado, leve, boliçoso,olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindoa dona da casa, elle respondeu que sim, semsaber o que era. Maria Benedicta deu um muchocho.Em verdade, não era bonita; não lhe pedissemolhos que fascinam, nem d'essas boccas que segredamalguma cousa, ainda caladas. Altinha, mãosgrandes, grandes olhos attonitos quando escutavamsomente, mas que sabiam fallar, se a boccafallava tambem,—ahi fica o principal das feiçõesda moça. Era natural, sem acanho de roceira;e tinha um donaire particular, que corrigia as incoherenciasdo vestido.
Nascera na roça e gostava da roça. A roça eraperto, Iguassú. De longe em longe vinha á cidade,passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros,já estava anciosa por tornar a casa. A educação foisummaria: ler, escrever, doutrina e algumas obrasde agulha. Nos ultimos tempos (ia em dezenoveannos), Sophia apertou com ella para apprenderpiano; a tia consentiu; Maria Benedicta veiu paraa casa da prima, e alli esteve uns dezoito dias. Nãopôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltoupara a roça, deixando consternado o professor, queannunciou n'ella, desde os primeiros dias, um grandetalento musical.
—Oh! sem duvida, um grande talento!
Maria Benedicta riu-se quando a prima lhe contouisto, e nunca mais pode ver a serio o homem. Ásvezes, no meio de uma licção, deitava a rir; Sophiacontrahia as sobrancelhas, a modo de ralho, e opobre homem perguntava o que era, e de si mesmoexplicava que havia de ser alguma lembrançade moça, e continuava a licção. Nem piano nemfrancez,—outra lacuna, que Sophia mal podia desculpar.D. Maria Augusta não comprehendia aconsternação da sobrinha. Para que francez? A sobrinhadizia-lhe que era indispensavel para conversar,para ir ás lojas, para ler um romance...
—Sempre fui feliz sem francez, respondia avelha; e os meia-linguas da roça são a mesma cousa:não vivem peior que os creoulos.
Um dia accrescentou:
—Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pódecasar, já lhe disse que póde casar quando quizer,que eu tambem casei; e até deixar-me na roça, sosinha,morrer como uma besta velha...
—Mamãe!
—Não tenha pena; é só apparecer o noivo. Emapparecendo, vá com elle, e deixe-me ficar. OlhaMaria José o que fez commigo? Vive lá pelo Ceará...
—Mas se o marido é juiz de direito, ponderavaSophia.
—Torto que seja! Para mim é a mesma cousa.Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedicta,casa depressa; eu morrerei com Deus... Não tereifilhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos.Casa, anda, casa!
Toda essa rabugem era calculo; tinha em miraarredar a filha do matrimonio, excitando-lhe o terrore a piedade. Quando menos, retardar-lh'o. Não creioque revelasse esse peccado ao confessor, nem quechegasse a entendel-o: era obra de um egoismo edosoe melindroso. D . Maria Augusta fora longamentequerida; a mãe era douda por ella, o marido amou-aaté o ultimo dia com a mesma intensidade. Mortosambos, todas as suas saudades filiaes e matrimoniaesforam postas na cabeça das duas filhas. Umafugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outracasasse tambem, D. Maria Augusta fazia tudo o quepodia por evitar o desastre.
Curta foi a visita de Rubião. As nove horas levantou-seelle discretamente, esperando qualquer palavrade Sophia, um pedido para que ficasse aindaalgum tempo, que esperasse o marido que já vinha,um espanto que fosse:Já! mas nem isso. Sophiaestendeu-lhe a mão, em que elle mal pôde tocar. Comtudo,a moça, durante a visita, mostrou-se tão natural,tão sem azedume... Não teve seguramente osolhos longos e loquazes, como d'antes; parecia atéque não houvera nada, nem bem nem mal, nemmorangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras;ella achava todas as que queria, e, se era precisoolhar para elle, fazia-o direitamente, tranquillamente...
—Lembranças ao nosso Palha, murmurou ellede chapéo e bengala na mão.
—Obrigada! Foi fazer uma visita; parece queouço passos; hade ser elle.
Não era elle; era Carlos Maria. Rubião ficou espantadode o ver alli, mas achou logo que a presençada fazendeira e da filha explicaria tudo; podiaser até que fossem aparentados.
—Ia saindo, quando o senhor entrou, disse-lhe Rubiãodepois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta.
—Ah! respondeu o outro, olhando para o retratode Sophia.
Sophia foi até á porta despedir-se do Rubião; disse-lheque o marido ficaria com pena de não estarem casa; mas que a visita era imperiosa. Negocios... Iriapedir-lhe desculpa.
—Que desculpa? acudiu Rubião.
Parece que quiz dizer ainda alguma cousa; maso aperto de mão de Sophia e a reverencia que estalhe fez, deram-lhe o signal de despedida. Rubiãoinclinou-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz deCarlos Maria, na sala:
—Vou denunciar seu marido, minha senhora; éhomem de muito mau gosto, ele mauvais goût mèneau crime...
Rubião parou.
—Porque? disse Sophia.
—Tem este seu retrato na sala, continuouCarlos Maria; a senhora é muito mais bella, infinitamentemais bella que a pintura... Comparem,minhas senhoras.
—Como elle diz aquellas cousas tão naturalmente!pensou Rubião, em casa, relembrando aspalavras de Carlos Maria. Desfazer no retrato sópara elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muitoparecido...
De manhã, na cama, teve um sobresalto. O primeirojornal que abriu foi aAtalaia. Leu o artigoeditorial, uma correspondencia, e algumas noticias.De repente, deu com o seu nome.
—Que é isto?
Era o seu proprio nome impresso, rutilante, multiplicado,nada menos que uma noticia do caso darua da Ajuda. Depois do sobresalto, aborrecimento.Que diacho de ideia aquella de imprimir uma cousaparticular, contada em confiança? Não quiz lernada; desde que percebeu o que era, deitou a folhaao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera aserenidade, lia por alto, pulava algumas cousas, nãoentendia outras, ou dava por si no fim de vintelinhas sem saber como viera escorregando até alli...
Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé dacama, e pegou daAtalaia. Lançou os olhos pelanoticia: era mais de uma columna. Columna e tantopara cousa tão diminuta! pensou comsigo. E afimde ver como é que Camacho enchera o papel, leutudo, um pouco ás pressas, vexado dos adjectivose da descripção dramatica do caso.
—Foi bem feito! disse em voz alta. Quem memandou ser linguarudo?
Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecera bisbilhotice da folha, acanhado com a publicaçãode um negocio, que elle reputava minimo,e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escriptor,como se se tratasse de dizer bem ou mal empolitica. Ao café, pegou novamente na folha, paraler outras cousas, nomeações do governo, um assassinatoem Garanhuns, meteorologia, até que a vistadesastrada foi cair na noticia, e leu-a então compausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crerna sinceridade do escriptor. O enthusiasmo da linguagemexplicava-se pela impressão que lhe ficou dofacto; tal foi ella que lhe não permittiu ser maissobrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordoua sua entrada no escriptorio do Camacho, o modoporque fallou; e dahi tornou atraz, ao proprio acto.Estirado no gabinete, evocou a scena: o menino, ocarro, os cavallos, o grito, o salto que deu, levadode um impeto, irresistivel:—Agora mesmo nãopodia explicar o negocio; foi como se lhe tivessepassado uma cousa pelos olhos... Atirou-se á creança,e aos cavallos, cego e surdo, sem attender ao propriorisco... E podia ficar alli, embaixo dos animaes,esmagado pelas rodas, morto ou ferido; feridoque fosse... Podia ou não podia? Era impossivelnegar que a situação foi grave... A prova é que ospaes e a visinhança...
Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda anoticia. Que era bem escripta, era. Trechos haviaque releu com muita satisfação. O diabo do homemparecia ter assistido á scena. Que narração! que vivezade estylo! Alguns pontos estavam accrescentados,—confusãode memoria,—mas o accrescimonão ficava mal. E certo orgulho que lhe notou aorepetir-lhe o nome? «O nosso amigo, o nosso distinctissimoamigo, o nosso valente amigo...»
Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificadoem demasia. Afinal, que tinha que o outrodésse aos seus leitores uma cousa que era verdadeira,que era interessante, dramatica,—e, seguramente,—nãovulgar? Sahindo, recebeu alguns comprimentos;Freitas chamou-lhe S. Vicente de Paula.E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuia-se, nãoera nada...
—Nada? replicou alguem. Dê-me muitos dessesnadas... Salvar uma creança com risco da propriavida...
Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contavaa scena a alguns curiosos, que a queriam dapropria bocca do autor. Certos ouvintes respondiamcom proezas suas,—um que salvara uma vezum homem, outro uma menina, prestes a afogar-seno boqueirão do Passeio, estando a tomar banho.Vinham tambem suicidios malogrados, por intervençãodo ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz, efel-o jurar... Cada gloriasinha occulta picava o ovo,e punha a cabeça de fóra, olho aberto, sem pennas,em volta da gloria maxima do Rubião. Tambemteve invejosos, alguns que nem o conheciam, sópor ouvil-o louvar em voz alta. Rubião foi agradecera noticia ao Camacho, não sem alguma censura peloabuso de confiança, mas uma censura molle, aocanto da bocca... D'alli foi comprar uns tantosexemplares da folha para os amigos de Barbacena.Nenhuma outra transcreveu a noticia; elle, a conselhodo Freitas, fel-a reimprimir nosa pedidos doJornal do Commercio, interlinhada.
Maria Benedicta consentiu finalmente em apprenderfrancez e piano. Durante quatro dias aprima teimou com ella, a todas as horas, de tal artee maneira, que a mãe da moça resolveu appressara volta á fazenda, para evitar que ella acabasseaceitando. A filha resistiu muito; respondia queeram cousas superfluas, que moça de roça não precisade prendas da cidade. Uma noite, porém, estandoalli Carlos Maria, pediu-lhe este que tocassealguma cousa; Maria Benedicta fez-se vermelha.Sophia acudiu com uma mentira:
—Não lhe peça isso; ainda não tocou depoisque veiu. Diz que agora só toca para os roceiros.
—Pois faça de conta que somos roceiros, insistiuo moço.
Felizmente, fallou logo de outra cousa, do baileda baroneza do Piauhy (casualmente, a mesma queo nosso amigo Rubião encontrou no escriptorio doCamacho), um baile esplendido, oh! esplendido! Abaroneza presava-o muito. No dia seguinte, MariaBenedicta declarou á prima que estava prompta aapprender piano e francez, rabeca e até russo, sequizesse. A difficuldade era vencer a mãe. Esta,quando soube da resolução da filha, poz as mãos nacabeça. Que francez? que piano? Bradou que não,ou então que deixasse de ser sua filha; podiaficar, tocar, cantar, fallar cabinda ou a lingua dodiabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiufinalmente; disse-lhe que, por mais superfluasque lhe parecessem aquellas prendas, eram o minimodos adornos de uma educação de sala...
—Mas eu criei minha filha na roça e para aroça, interrompeu a tia.
—Para a roça? Quem sabe lá para que cria osfilhos? Meu pae destinara-me a padre; é por issoque arranho algum latim. A senhora não hade viversempre; os seus negocios andam atrapalhados. Podeacontecer que Maria Benedicta fique ao desamparo... Aodesamparo, não digo; emquanto vivermossomos todos uma só pessoa. Mas não é melhorprevenir? Podia ser até que, se lhe faltassemos todos,ella vivesse á larga, só com ensinar francez e piano... Bastaque os saiba para estar em condições melhores.É bonita, como a senhora foi no seutempo; e possue raras qualidades moraes. Podeachar marido rico... Sabe a senhora se já tenhoalguem em vista, pessoa séria?
—Sim? Então ella vae apprender francez, pianoe namoro?
—Que namoro? Fallo-lhe de pensamentos intimos,de um plano que me parece adequado á felicidadedella e de sua mãe. Pois eu havia... Ora,tia Augusta!
Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixouo tom aspero pelo tom secco. Resistiu ainda; mas anoite deu-lhe bons conselhos O estado dos seus negocios,e a possibilidade de um genro abastado fizerammais que outras razões. Os melhores genrosda roça alliavam-se a outras fazendas, a familias derepresentação e riqueza segura. Dous dias depoisacharam ummodus vivendi: Maria Benedicta ficariacom a prima; iriam de quando em quando á roça,e a tia tambem viria á capital, para vel-os. Palhachegou a dizer que, logo que o estado da praça o permittisse,arranjaria meio de liquidar-lhe os negociose transportal-a para aqui. Mas a isto a boa senhoraabanou a cabeça.
Não se pense que tudo isso foi tão facil como ahifica escripto. Na pratica, vieram os obices, amofinações,saudades, rebelliões de Maria Benedicta.Dezoito dias depois da volta da mãe á fazenda, quizir visital-a, e a prima acompanhou-a; estiveram láuma semana. A mãe, dous mezes depois, veiu passaruns dias aqui. Sophia acostumava habilmente a primaás distracções da cidade; theatros, visitas, passeios,reuniões em casa, vestidos novos, chapéos lindos,joias. Maria Benedicta era mulher, posto que mulherexquisita; gostou de taes cousas, mas tinha para sique, logo que quizesse, podia arrebentar todos essesliames, e andar para a roça. A roça vinha ter comella, ás vezes, em sonho ou simples devaneio. Depoisdos primeiros saráos, quando voltava para casa, nãoeram as sensações da noite que lhe enchiam a alma,eram as saudades de Iguassú. Cresciam-lhe mais acertas horas do dia, quando a quietação da casa eda rua era completa. Então batia as azas para avaranda da velha casa, onde bebia café, ao pé damãe; pensava na escravaria, nos moveis antigos, nasbonitas chinellas que lhe mandara o padrinho, umfazendeiro rico de S. João d'El-rey,—e que láficaram em casa. Sophia não consentiu que ella astrouxesse.
Os mestres de francez e piano eram homens sabedoresdo officio. Sophia teve modo de dizer-lhes emparticular que a prima vexava-se de apprender tãotarde, e pediu-lhes que não fallassem nunca de taldiscipula. Prometteram que sim; o de piano apenasreferiu o pedido a alguns collegas d'arte, que lheacharam graça, e contaram outras anedoctas da clientela.O certo é que Maria Benedicta apprendia comsingular facilidade, estudava com afinco, quasi todasas horas, a tal ponto que a mesma prima julgavaacertado interrompel-a.
—Descança, filha de Deus!
—Deixa recobrar o tempo perdido, respondiaella rindo.
Então Sophia inventava passeios, á toa, para fazel-adescançar. Ora um bairro, ora outro. Emcertas ruas, Maria Benedicta não perdia tempo:lia as taboletas francezas, e perguntava pelos substantivosnovos, que a prima, algumas vezes, nãosabia dizer o que eram, tão estrictamente adequadoera o seu vocabulario ás cousas do vestido, da salae do galanteio.
Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedictafazia progressos rapidos. A pessoa ajustára-seao meio, mais depressa do que fariam crer o gostonatural e a vida da roça. Já competia com a outra,embora houvesse nesta um desgarre, e não sei queexpressão particular que, para assim dizer, davacôr a todas as linhas e gestos da figura. Não obstanteessa differença, é certo que a outra era vista e notadaao pé della, de tal geito que Sophia, que começárapor louval-a em toda a parte, não a deslouvavaagora, mas ouvia calada as admirações. Fallavabem;—mas, quando calava, era por muito tempo;dizia que eram os seus «calundús». Contradansavasem vida, que é a perfeição desse genero de recreio;gostava muito de ver polkar e valsar. Sophia, imaginandoque era por medo que a prima não valsavanem polkava, quiz dar-lhe algumas lições em casa,sosinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusavasempre.
—Isso é ainda um bocadinho de casca da roça,disse-lhe uma vez Sophia.
Maria Benedicta sorriu de um modo tão particular,que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame,nem de despeito, nem de desdem. Desdem,porque? Comtudo, é certo que o riso parecia vir decima. Não menos o é que Sophia polkava e valsavacom ardor, e ninguem se pendurava melhor dohombro do parceiro; Carlos Maria, que era rarodansar, só valsava com Sophia,—dous ou tresgiros, dizia elle;—Maria Benedicta contou umanoite quinze minutos.
Os quinze minutos foram contados no relogio doRubião, que estava ao pé da Maria Benedicta, e aquem ella perguntou duas vezes que horas eram, noprincipio e no fim da valsa. A propria moça inclinou-separa ver bem o ponteiro dos minutos.
—Está com somno? perguntou Rubião.
Maria Benedicta olhou para elle de soslaio. Viu-lheo rosto placido, sem intenção nem riso.
—Não, respondeu; digo-lhe até que estou commedo que prima Sophia se lembre de ir cedo para casa.
—Não vae cedo. Já acabou a desculpa de SantaThereza, por causa da subida. A casa fica pertodaqui.
De facto, as duas moravam agora na praia doFlamengo, e o baile era na rua dos Arcos.
É de saber que tinham decorrido oito mezes desdeo principio do capitulo anterior, e muita cousa estavamudada. Rubião é socio do marido de Sophia, emuma casa de importação, á rua da Alfandega, sob afirma Palha & Comp. Era o negocio que este ia propor-lhe,naquella noite, em que achou o Dr. Camachona casa de Botafogo. Apezar de facil, Rubião, recuoualgum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contosde réis, não entendia de commercio, não lhe tinhainclinação. Demais, os gastos particulares eram jágrandes; o capital precisava do regimen do bomjuro e alguma poupança, a ver se recobrava as corese as carnes primitivas. O regimen que lhe indicavamnão era claro; Rubião não podia comprehender osalgarismos do Palha, calculos de lucros, tabellas depreço, direitos da alfandega, nada; mas, a linguagemfallada suppria a escripta. Palha dizia cousas extraordinarias,aconselhava ao amigo que aproveitasse aoccasião para pôr o dinheiro a caminho, multiplical-o.Se tinha medo, era outra cousa; elle,Palha, faria o negocio com John Roberts socio quefoi da casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefevoltou para a Inglaterra, e era agora membro doparlamento.
Rubião não cedeu logo, pediu prazo, cinco dias.Consigo era mais livre; mas desta vez a liberdadesó servia para atordoal-o. Computou os dinheirosdespendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal, quelhe deixára o philosopho. Quincas Borba, que estavacom elle no gabinete, deitado, levantou casualmentea cabeça e fitou-o, Rubião estremeceu; a idéa deque naquelle Quincas Borba podia estar a alma dooutro nunca se lhe varreu inteiramente do cerebro.Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nosolhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia serhomem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão ecoçou as orelhas ao animal, para captal-o.
Atraz dos motivos de recusa, vieram outros contrarios.E se o negocio rendesse? Se realmente lhemultiplicasse o que tinha? Accrescia que a posiçãoera respeitavel, e podia trazer-lhe vantagens naeleição, quando houvesse de propor-se ao parlamento,como o velho chefe da casa Wilkinson. Outra razãomais forte ainda era o receio de magoar o Palha, deparecer que lhe não confiava dinheiros, quandoera certo que, dias antes, recebera parte da dividaantiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituidadentro de dous mezes.
Nenhum desses motivos era pretexto de outro;vinham de si mesmos. Sophia só appareceu no fim,sem deixar de estar nelle, desde o principio, ideialatente, inconsciente, uma das causas ultimas doacto, e a unica dissimulada. Rubião abanou a cabeçapara expellil-a, e levantou-se. Sophia (dona astuta!)recolheu-se á inconsciencia do homem, respeitosa daliberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmoque entraria de socio com o marido, mediante certasclausulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedadecommercial; assim é que Rubião legalisou aassiduidade das suas visitas.
—Senhor Rubião, disse Maria Benedicta depoisde alguns segundos de silencio, não lhe parece queminha prima é bem bonita?
—Não desfazendo na senhora, acho.
—Bonita e bem feita.
Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharamcom os olhos o par de valsistas, que passeavaao longo do salão. Sophia estava magnifica.Trajava de azul escuro, mui decotada,—pelas razõesditas no cap. XXXVIII, os braços nús, cheios,com uns tons de ouro claro, ajustavam-se ás espaduase aos seios, tão acostumados ao gaz do salão. Diademade perolas feitiças, tão bem acabadas, queiam de par com as duas perolas naturaes, que lheornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera umdia...
Ao lado della, Carlos Maria não ficava mal. Era umrapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmosolhos placidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneirassubditas, nem as curvas reverentes dos outrosrapazes; fallava com a graça de um rei benevolo.Entretanto, se, á primeira vista, parecia fazer apenasum obsequio áquella senhora, não é menos certo queia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulherda noite. Os dous sentimentos não se contradiziam;fundiam-se ambos na adoração que este moçotinha de si mesmo. Assim, o contacto de Sophia erapara elle como a prosternação de uma devota. Nãose admirava de nada. Se um dia accordasse imperador,só se admiraria da demora do ministerio emvir comprimental-o.
—Vou descançar um pouco, disse Sophia.
—Está cançada ou... aborrecida? perguntou-lhe o braceiro.
—Oh! cançada apenas!
Carlos Maria, arrependido de haver supposto aoutra hypothese, deu-se pressa em climinal-a.
—Sim, creio; porque é que estaria aborrecida?Mas eu affirmo que é capaz de fazer me o sacrificiode passear ainda algum tempo. Cinco minutos?
—Cinco minutos.
—Nem mais um que seja? Pela minha parte,passearia a eternidade.
Sophia abaixou a cabeça.
—Com a senhora, note bem.
Sophia deixou-se ir com os olhos no chão, semcontestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos.Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanteriasé de uso que se agradeçam. Já lhe tinhaouvido outr'ora palavras analogas, dando-lhe a primaziaentre as mulheres deste mundo. Deixou de asouvir durante seis mezes,—quatro que elle gastouem Petropolis,—dous em que lhe não appareceu.Ultimamente é que tornou a frequentar a casa,a dizer-lhe finezas daquellas, ora em particular, ora ávista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foramandando calados, calados, calados,—até que ellerompeu o silencio, notando-lhe que o mar defronteda casa della, batia com muita força, na noite anterior.
—Passou lá? perguntou Sophia.
—Estive lá; ia pelo Cattete, já tarde, e lembrou-medescer á praia do Flamengo. A noite eraclara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e asua casa. A senhora aposto que nem sonhava commigo?Entretanto, eu quasi que ouvia a sua respiração...
Sophia tentou sorrir; elle continuou:
—O mar batia com força, é verdade, mas o meucoração não batia menos rijamente;—com estadifferença que o mar é estupido, bate sem saberporquê, e o meu coração sabe que batia pela senhora.
—Oh! murmurou Sophia.
Com espanto? Com indignação? Com medo?São muitas perguntas a um tempo. Estou que a propriadama não poderia responder exactamente, talfoi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço.Em todo caso, não foi com incredulidade. Não possodizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa,tão abafada que elle mal pode ouvil-a. Pela sua parte,Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda asala; nem antes, nem durante, nem depois das palavras,mostrou no rosto a menor commoção; tinhaaté umas sombras de riso caustico, um riso de seuuso, quando mofava de alguem; parecia ter dito umepigramma. Comtudo, mais de um olho de mulherespreitava a alma de Sophia, estudava o gesto damoça, tal ou qual acanhado, e as palpebras teimosamente cahidas.
—A senhora está perturbada, disse elle; disfarcecom o leque.
Sophia machinalmente entrou a abanar-se e levantouos olhos. Viu que muitos outros a fitavam,e empallideceu. Os minutos iam correndo, com amesma brevidade dos annos; os primeiros cinco e ossegundos iam longe; estavam no decimo terceiro,atraz deste iam apontando as azas de outro, e maisoutro. Sophia disse ao braceiro que queria sentar-se.
—Vou deixal-a e retiro-me.
—Não, disse ella precipitadamente.
Depois, emendou-se:
—O baile está bonito.
—E tá, mas eu quero levar commigo a melhorrecordação da noite. Qualquer outra palavra queouça agora será como o coaxar das rãs, depois docanto de um lindo passaro, um dos seus passaros láde casa. Onde quer que a deixe?
—Ao lado de minha prima.
Rubião cedeu a cadeira, e acompanhou CarlosMaria, que atravessou a sala, e foi até o gabineteda entrada, onde estavam os sobretudos e uns dezhomens conversando. Antes que o rapaz entrasse nogabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente,para lhe perguntar alguma cousa,—fosse o quefosse,—mas, em verdade, para retel-o comsigo, eprocurar sondal-o. Começava a crer possivel ou realuma ideia que o atormentava desde muitos dias.Agora, a conversação dilatada, os modos della...
Carlos Maria não tinha noticia da longa paixãodo mineiro, guardada, mortificada, não se podendoconfessar a ninguem,—esperando os beneficios doacaso,—contentando-se de pouco, da simples vistada pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiropara as operações mercantis... Que elle não tinhaciumes do marido. Nunca a intimidade do casal lheexcitara os odios contra o legitimo senhor. E lá iammezes e mezes, sem alteração do sentimento, nemmorte da esperança... Mas a possibilidade de umrival de fóra veiu atordoal-o; aqui é que o ciumetrouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.
—Que é? disse Carlos Maria voltando-se.
Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde osdez homens tratavam de politica, porque este baile,—ia-meesquecendo dizel-o,—era dado em casade Camacho, a proposito dos annos da mulher.Quando os dous alli entraram, a conversação erageral, o assumpto o mesmo, e todos fallavam paratodos,—um turbilhão de ditos, de pareceres, deaffirmações diversas... Um, que era doutrinario, conseguiudominar os outros, que se calaram por instantes,fumando.
—Podem fazer tudo, disse o doutrinario, mas apunição moral é certa. As dividas dos partidos pagam-secom juros até o ultimo real e até a ultimageração. Principios não morrem; os partidos que oesquecem expiram no lodo e na ignominia.
Outro, meio calvo, não acreditava na puniçãomoral, e dizia porquê; mas um terceiro, fallou dademisão de uns collectores, e os espiritos, meio tontoscom a doutrina, tomaram pé. Os collectores nãotinham outra culpa, alem da opinião; e nem aomenos se podia defender o acto com o merecimentodos substitutos. Um destes trazia ás costas um desfalque;outro era cunhado de um tal Marques quedera um tiro de garrucha no delegado, em S. Josédos Campos... E os novos tenentes-coroneis? Verdadeirosréos de policia...
—Já se vae embora? perguntou Rubião ao moço,quando o viu tirar o sobretudo d'entre os outros.
—Já; estou com somno. Ajude-me a enfiar estamanga. Estou com somno.
—Mas ainda é cedo; fique. O nosso Camachonão deseja que os rapazes saiam; quem é que hadedansar com a moças?
Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dadoa dansas. Valsára com D. Sophia, por ser mestra noofficio; senão, nem isso. Estava com somno; preferiaa cama á orchestra. E estendeu-lhe a mão combenignidade; Rubião apertou-lh'a, meio incerto.
Não sabia que pensasse. O facto de sair, de adeixar no baile, em vez de esperar para acompanhal-aá carroagem, como de outras vezes... Podia ser enganodelle... E pensava, recordava a noite deSanta Thereza, quando elle ousou declarar á moça,o que sentia, pegando-lhe na bella mão delicada... Omajor interrompera-os; mas porque não insistiuelle mais tarde? Nem ella o maltratou, nem o maridopercebera cousa nenhuma... Aqui voltava aideia do possivel rival; é certo que se retirára comsomno, mas os modos della... Rubião ia á porta dosalão, para ver Sophia, depois chegava-se a um cantoou á meza do voltarete, inquieto, aborrecido.
Em casa, ao despentear-se, Sophia fallou daquellesaráo como de uma cousa enfadonha. Bocejava,doiam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposiçãodella. Se lhe doiam as pernas é porquedançára muito. Ao que retorquiu a mulher que, senão dançasse, teria morrido de tedio. E ia tirandoos grampos, deitando-os a um vaso de crystal; oscabellos cahiam-lhe aos poucos sobre os hombros,mal cobertos pela camisola de cambraia. Palha,por traz della, disse-lhe que o Carlos Maria valsavamuito bem. Sophia estremeceu; fitou-o no espelho, orosto era placido. Concordou que não valsava mal.
—Não, senhora, valsa muito hem.
—Você louva os outros porque sabe que ninguemé capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso,já te conheço.
Palha, estendendo a mão e pegando-lhe no queixo,obrigou-a a olhar para elle. Vaidoso, porque? porqueé que elle era vaidoso?
—Ai, gemeu Sophia; não me machuques.
Palha beijou-lhe a espadua; ella sorriu, semtedio, sem dor de cabeça, ao contrario daquella noitede Santa Theresa, em que relatou ao marido os atrevimentosdo Rubião. É que os morros serão doentios,e as praias saudaveis...
No dia seguinte, Sophia acordou cedo, ao somdos trillos da passarada de casa, que parecia dar-lheum recado de alguem. Deixou-se estar na cama, efechou os olhos para ver melhor.
Ver melhor o que? Não, seguramente, os morrosdoentios. A praia era outra cousa. Posta á janella,dalli a meia hora, Sophia contemplava as ondasque vinham morrer defronte, e, ao longe, as que selevantavam e desfaziam á entrada da barra. A imaginosadama perguntava a si mesma se aquillo era avalsa das aguas, e deixava-se ir por essa torrente deideias abaixo, sem velas nem remos. Deu comsigoolhando para a rua, ao pé do mar, como procurando ossignaes do homem que alli estivera, na ante-vespera,alta noite... Não juro, mas cuido que achou ossignaes. Ao menos, é certo que cotejou o achado como texto da conversação:
«A noite era clara; fiquei cerca de uma hora,entre o mar e a sua casa. A senhora aposto quenem sonhava commigo? Entretanto, eu quasi queouvia a sua respiração... O mar batia com força,é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente;com esta differença que o mar é estupido,bate sem saber porque, e o meu coração sabe quebatia pela senhora...»
Sophia teve um calefrio, procurou esquecer o texto,mas o texto ia-se repetindo: «A noite era clara...»
Entre duas phrases, sentiu que alguem lhe punhaa mão no hombro; era o marido, que acabava detomar café e ia para a cidade. Despediram-se affectuosamente;Christiano recommendou-lhe Maria Benedicta,que acordara muito aborrecida.
—Já de pé! exclamou Sophia.
—Quando eu desci, já a achei na sala de jantar.Accordou com ideias de ir para a roça; teve umsonho... não sei que...
—Calundús! concluiu Sophia.
E com os dedos habeis e leves concertou a gravataao marido, puxou-lhe a gola do fraque paradeante, e despediram-se outra vez. Palha desceu esahiu; Sophia deixou-se estar á janella. Antes dedobrar a esquina, elle voltou a cabeça, e, na fórmado costume, disseram adeus com a mão.
«A noite era clara; fiquei cerca de uma horaentre o mar e a sua casa. A senhora aposto que...»
Quando Sophia pôde arrancar-se de todo á janella,o relogio de baixo batia nove horas. Zangada, arrependida,jurou a si mesma, pela alma da mãe, nãopensar mais em semelhante episodio. Considerou quenão valia nada; o erro foi deixar que o rapaz chegasseao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que,procedendo assim, evitou algum grande escandalo,porque elle era capaz de a acompanhar até a cadeirae dizer-lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o restorepetia-se ainda uma vez na memoria della, comoum trecho musical teimoso, as mesmas palavras,e a mesma voz: «A noite era clara; fiquei cercade uma hora...»
Emquanto ella repetia a declaração da vespera,Carlos Maria abria os olhos, estirava os membros, e,antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeioa cavallo, reconstruiu a vespera. Tinha esse costume;achava sempre nos successos do dia anterioralgum facto, algum dito, alguma cousa que lhefazia bem. Ahi é que o espirito se demorava; ahieram as estalagens do caminho, onde elle descavalgavao corpo, para beber vagarosamente um golped'agua fresca. Se não havia successo nenhum desses,—ouse os havia só contrarios, nem por isso as sensaçõeseram desconfortativas; bastava-lhe o saborde alguma palavra que elle mesmo houvesse dito,—dealgum gesto que fizesse, a contemplação subjectiva,o gosto de se ter sentido viver,—para que avespera não fosse um dia perdido.
Na vespera figurava Sophia. Parece até que foio principal da reconstrucção, a fachada do edificio,larga e magnifica. Carlos Maria saboreou de memoriatoda a conversação da noite, mas, quando selembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e mal.Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação;e, posto que o beneficio corrigisse o tedio, o rapazficou entre uma e outra sensação, sem plano. Aorecordar-se da noticia que lhe deu de haver ido ápraia do Flamengo, na outra noite, não pôde sustero riso, porque não era verdade. Nascera-lhe aideia da propria conversação; mas nem lá foi nempensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-sedelle; o facto de haver mentido trouxe-lhe umasensação de inferioridade, que o abateu. Chegou apensar em rectificar o que dissera, logo que estivessecom Sophia, mas reconheceu que a emenda era peorque o soneto, e que ha bonitos sonetos mentirosos.
Depressa ergueu a alma. Viu de memoria a sala,os homens, as mulheres, os leques impacientes, osbigodes despeitados, e estirou-se todo n'um banho deinveja e admiração. De inveja alheia, note-se bem;elle carecia desse sentimento ruim. A inveja e aadmiração dos outros é que lhe davam ainda agorauma delicia intima. A princeza do baile entregava-se-lhe.Definia assim a superioridade de Sophia,posto lhe conhecesse um defeito capital,—a educação.Achava que as maneiras polidas da moçavinham da imitação adulta, após o casamento, oupouco antes, e ainda assim não subiam muito domeio em que vivia.
Outras mulheres vieram ali,—as que o preferiamaos demais homens no trato e na contemplaçãoda pessoa. Se as requestava ou requestáratodas? Não se sabe. Algumas, vá: é certo, porém,que se deleitava com todas ellas. Taes havia deprovada honestidade que folgavam de o trazer aopé de si, para gostar o contacto de um bello homem,sem a realidade nem o perigo da culpa,—como oexpectador que se regala das paixões de Othello, esae do theatro com as mãos limpas da morte deDesdemona.
Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria,tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriammoças em flor; mas a distincção suppria a juvenilidade.Carlos Maria recebia-as, como um deus antigodevia receber, quieto no marmore, as lindas devotase suas offerendas. No borborinho geral distinguia asvozes de todas,—não todas a um tempo,—mas ástres e ás quatro.
A derradeira dellas foi a da recente Sophia;escutou-a ainda namorado, mas sem o alvoroço doprincipio, porque a lembrança das outras donas,pessoas de qualidade, diminuia agora a importanciadesta. Comtudo, não podia negar que era muiattractiva e que valsava perfeitamente. Chegaria aamar com força? Nisto appareceu-lhe outra vez amentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama.
—Quem diabo me mandou dizer semelhantecousa?
Tornou a encarar a ideia de restabelecer a verdade;e desta vez mais seriamente que da outra.Mentir, pensava elle, era para os lacaios e seus congeneres.
D'ahi a meia hora, trepava ao cavallo e sahia decasa, que era na rua dos Invalidos. Cattete adeante,veiu-lhe á ideia que a casa de Sophia era na praiado Flamengo; nada mais natural que torcer a redea,descer uma das ruas perpendiculares ao mar, epassar pela porta da valsista. Achal-a-hia, talvez ájanella; vel-a-hia córar, comprimental-o. Tudo istopassou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos;chegou a dar um geito á redea, mas a alma,—nãoo cavallo,—a alma empinou—; era ir muitodepressa atraz della. Deu outro geito á redea, econtinuou o passeio.
Montava bem. Toda a gente que passava, ou estavaás portas não se fartava de mirar a postura domoço, o garbo, a tranquilidade régia com que sedeixava ir. Carlos Maria,—e este era o ponto emque cedia á multidão,—recolhia as admiraçõestodas, por infimas que fossem. Para adoral-o, todosos homens faziam parte da humanidade.
—Já de pé! repetiu Sophia, ao ver a prima lendoos jornaes.
Maria Benedicta teve um sobresalto, mas aquietou-selogo; dormira mal, e accordou cedo. Nãoestava para aquellas folias até tão tarde, disse ella,mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se,a vida do Rio de Janeiro não era a mesmada roça, dormir com as galinhas e accordar com osgallos. E depois perguntou-lhe que impressões trouxerado baile; Maria Benedicta levantou os hombroscom indifferença, mas verbalmente respondeu queboas. Custava-lhe fallar, as palavras sahiam-lhe poucase molles. Sophia, entretanto, ponderou-lhe que dansaramuito, salvo polkas e valsas. E porque nãohavia de polkar e valsar tambem? A prima lançou-lheuns olhos máos.
—Não gosto.
—Qual não gosta! É medo.
—Medo?
—Falta de costume, explicou Sophia.
A outra teve uma ideia, e quiz retel-a; mas aideia escapou-lhe, a despeito do exforço:
—Não gosto que um homem me aperte o corpoao seu corpo, e ande commigo, assim, á vista dosoutros. Tenho vexame.
Sophia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou,fallou-lhe da roça, perguntou-lhe se era certoo que lhe dissera Christiano, que ella queria ir paracasa. Então a prima, que folheava os jornaes, á toa,respondeu animadamente que sim; não podia viversem a mãe.
—Mas porque? Você não estava tão contentecomnosco?
Maria Benedicta não disse nada; passeou os olhosem um dos jornaes, como se procurasse algumacousa, trincando o beiço, tremula, inquieta. Sophiateimou em querer saber a causa daquella mudançarepentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias.
—Você precisa casar, disse finalmente. Tenhojá um noivo.
Era Rubião; o Palha queria acabar por ahi, casandoo socio com a prima; tudo ficava em casa,dizia elle á mulher. Esta tomou a si guiar o negocio.Accudia-lhe agora a promessa; tinha um noivoprompto, era só fallar.
—Quem? perguntou Maria Benedicta.
—Uma pessoa.
Crel-o-heis, posteros? Sophia não pôde soltar onome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido haverfallado nelle, e era mentira. Agora, indo a fallardeveras, o nome não lhe sahiu da boca. Ciumes?Seria singular que esta mulher, que não tinhaamor áquelle homem, não quizesse dal-o de noivo áprima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo esenhor. Inventou o ciume de Othello e o do cavalleiroDesgrieux, podia inventar este outro de umapessoa que não quer ceder o que não quer possuir.
—Mas quem? repetiu Maria Benedicta.
—Direi depois, deixe-me arranjar as cousas,respondeu Sophia, e mudou de conversa.
Maria Benedicta trocou de rosto; a boca encheu-se-lhede riso, um riso de alegria e de esperança.Os olhos agradeceram a promessa e o trabalho, edisseram palavras que ninguem podia ouvir nementender, palavras curiosas e obscuras:
—Gosta de valsar; é o que é.
Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra.Tinha valsado tanto na vespera, com o mesmoCarlos Maria, que bem se poderia achar na dansaum pretexto; Maria Benedicta concluia agora queera o proprio e unico motivo. Conversaram muitonos intervallos, é certo, mas naturalmente eradella que fallavam, uma vez que a prima tinha apeito casal-a, e só lhe pedia que deixasse arranjaras cousas. Talvez elle a achasse feia, ou sem graça.Uma vez, porém, que a prima queria arranjar ascousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina.
Rubião é que não perdeu a suspeita assim tão facilmente.Teve ideia de fallar a Carlos Maria, interrogal-o,e chegou a ir á rua dos Invalidos, no diaseguinte, tres vezes; não o encontrando, mudou deparecer. Encerrou-se por alguns dias; o major Siqueiraarrancou-o á solidão. Ia participar-lhe quese mudara para a rua Dous de Dezembro. Gostoumuito da casa do nosso amigo, das alfaias, doluxo, de todas as minucias, ouros e bambinellas.Sobre este assumpto fallou longamente, relembrandoalguns moveis antigos. Como só elle fallasse,parou de repente, para dizer que o achava aborrecido;era natural, faltava-lhe alli um complemento.
—O senhor é feliz, mas falta-lhe aqui umacousa; falta-lhe mulher. O senhor precisa casar.Case-se, e diga que eu o engano.
Rubião lembrou-se de Santa Thereza,—daquellafamosa noite da conversação com Sophia,—e sentiucorrer-lhe um frio pelas costas; mas a voz domajor não tinha nenhum sarcasmo. Tambem nãolhe fallava por interesse. A filha estava ainda quala deixámos no capitulo XLXIII, com a differença queos quarenta annos vieram. Quarentona, solteirona.Gemeu-os comsigo, logo de manhã, no dia em queos completou; não poz fita nem rosa no cabello.Nenhuma festa; tão sómente um discurso do pae, aoalmoço, lembrando-lhe cousas de criança, anecdotasda mãe e da avó, um dominó de baile de mascaras,um baptisado de 1848, a solitaria de um coronelClodomiro, varias cousas assim de mistura, para entreteras horas. D. Tonica mal podia ouvil-o; mettidaem si mesma, ia roendo o pão da solitude moral,ao passo que se arrependia dos ultimos exforçosempregados na busca de um marido. Quarentaannos; era tempo de parar.
Nada disso lembrava agora ao major. Fallou sinceramente;achou que a casa de Rubião não tinhaalma. E repetiu, ao despedir-se:
—Case-se, e diga que eu o engano.
—E por que não? perguntou uma voz, depoisque o major sahiu.
Rubião, apavorado, olhou em volta de si; viuapenas o cachorro, parado, olhando para elle. Eratão absurdo crer que a pergunta viria do proprioQuincas Borba,—ou antes do outro Quincas Borba,cujo espirito estivesse no corpo deste, que o nossoamigo sorriu com desdem; mas, ao mesmo tempo,executando o gesto do capitulo XLIX, estendeu a mão,e coçou amorosamente as orelhas e a nuca do cachorro,—actoproprio a dar satisfação ao possivelespirito do finado.
Era assim que o nosso amigo se desdobrava, sempublico, deante de si mesmo.
Mas a voz repetiu:—E porque não? Sim, porquenão havia de casar, continuou elle raciocinando.Mataria a paixão que o ia comendo aos poucos, semesperança nem consolação. Demais, era a porta deum mysterio. Casar, sim, casar logo e bem.
Estava ao portão, quando esta idéa começou aabotoar;—foi dalli para dentro, subindo os degráosde pedra, abrindo a porta, sem consciencia de nada.Ao fechar a porta, é que um pulo do Quincas Borba,que o viera acompanhando, fel-o dar por si. Ondeficara o major? Quiz descer para vel-o, mas advertiua tempo que acabava de o acompanhar até á rua.As pernas tinham feito tudo; ellas é que o levarampor si mesmas, direitas, lucidas, sem tropeço, paraque ficasse á cabeça tão sómente a tarefa de pensar.Boas pernas! pernas amigas! muletas naturaes doespirito!
Santas pernas! Ellas o levaram ainda ao canapé,estenderam-se com elle, devagarinho, emquanto oo espirito trabalhava a ideia do casamento. Era ummodo de fugir a Sophia; podia ser ainda mais algumacousa.
Sim, podia ser tambem um modo de restituir ávida a unidade que perdera, com a troca do meio eda fortuna; mas esta consideração não era propriamentefilha do espirito nem das pernas, mas deoutra causa, que elle não distinguia bem nem mal,como a aranha. Que sabe a aranha a respeito deMozart? Nada; entretanto, ouve com prazer umasonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant, étalvez um animal metaphysico. Em verdade, o casamentopodia ser o laço da unidade perdida. Rubiãosentia-se disperso; os proprios amigos de transito,que elle amava tanto, que o cortejavam tanto, davam-lheá vida um aspecto de viagem, em que alingua mudasse com as cidades, ora hespanhol, oraturco. Sophia contribuia para esse estado; era tãodiversa de si mesma, ora isto, ora aquillo, que osdias iam passando sem accôrdo fixo, nem desenganoperpetuo.
Rubião não tinha que fazer; para matar os diaslongos e varios, ia as sessões do jury, á camara dosdeputados, á passagem dos batalhões, dava grandespasseios, fazia visitas desnecessarias, á noite, ou iaaos theatros, sem prazer. A casa era ainda um bomrepouso ao espirito, com o seu luxo rutilante e ossonhos que vagavam no ar.
Ultimamente, occupava-se muito em ler; lia romances,mas só os historicos de Dumas pae, ou os contemporaneosde Feuillet, estes com difficuldade, pornão conhecer bem a lingua original. Dos primeirossobravam traducções. Arriscava-se a algum mais, selhe achava o principal dos outros, uma sociedadefidalga e régia. Àquellas scenas da côrte de França,inventadas pelo maravilhoso Dumas, e os seus nobresespadachins e aventureiros, as condessas e os duquesde Feuillet, mettidos em estufas ricas, todos ellescom palavras mui compostas, polidas, altivas ougraciosas, faziam-lhe passar o tempo ás carreiras.Quasi sempre, acabava com o livro cahido e os olhosno ar, pensando. Talvez algum velho marquez defunctolhe repetisse anedoctas de outras eras.
Antes de cuidar da noiva, cuidou do casamento.Naquelle dia e nos outros, compoz de cabeça aspompas matrimoniaes, os coches,—se ainda os houvesseantigos e ricos, quaes elle via gravados noslivros de usos passados. Oh! grandes e soberboscoches! Como elle gostava de ir esperar o Imperador,nos dias de grande gala, á porta do paçoda cidade, para ver chegar o prestito imperial, especialmenteo coche de Sua Magestade, vastas proporções,fortes molas, finas e velhas pinturas, quatroou cinco parelhas guiadas por um cocheiro gravee digno! Outros vinham, menores em grandeza,mas ainda assim tão grandes que enchiam os olhos.
Um desses outros, ou ainda algum menor, podiaservir-lhe ás bodas, se toda a sociedade não estivessejá nivellada pelo vulgarcoupé. Mas, emfim,iria decoupé; imaginava-o forrado magnificamente,de que? De uma fazenda que não fosse commum,que elle mesmo não distinguia, por ora; mas quedaria ao vehiculo o ar que não tinha. Parelha rara.Cocheiro fardado de ouro. Oh! mas de um ouronunca visto. Convidados de primeira ordem, generaes,diplomatas, senadores, um ou dous ministros,muitas summidades do commercio; e as damas, asgrandes damas? Rubião nomeava-as de cabeça;via-as entrar, elle no alto da escada de um palacio,com o olhar perdido por aquelle tapete abaixo,—ellasatravessando o saguão, subindo os degraus comos seus sapatinhos de setim, breves e leves,—aprincipio, poucas,—depois mais, e mais, e aindamais. Carruagens após carruagens... Lá vinhamos condes de Tal, um varão guapo e uma singulardama... «Caro amigo, aqui estamos», dir-lhe-hiao conde, no alto; e, mais tarde, a condessa: «SenhorRubião, a festa é esplendida...»
De repente, o internuncio... Sim, esquecera-seque o internuncio devia casal-os; lá estaria elle,com as suas meias roxas de monsenhor, e os grandesolhos napolitanos, em conversação com o ministroda Russia. Os lustres de crystal e ouro allumiandoos mais bellos collos da cidade, casacasdireitas, outras curvas ouvindo os leques que seabriam e fechavam, dragonas e diademas, a orchestradando signal para uma valsa. Então os braçosnegros, em angulo, iam buscar os braços nús, enluvadosaté o cotovello, e os pares saiam girando pelasala, cinco, sete, dez, doze, vinte pares. Ceia explendida.Crystaes da Bohemia, louça da Hungria,vasos de Sèvres, criadagem lesta e fardada, com asiniciaes do Rubião na gola.
Esses sonhos iam e vinham. Que mysteriosoProspero transformava assim uma ilha banal emmascarada sublime? «Vae; Ariel, traze aqui os teuscompanheiros, para que eu mostre a este jovencasal alguns feitiços da minha feitiçaria.» As palavrasseriam as mesmas da comedia; a ilha é queera outra, a ilha e a mascarada. Aquella era a propriacabeça do nosso amigo; esta não se compunhade deusas nem de versos, mas de gente humana eprosa de sala. Mais rica era. Não esqueçamos queo Prospero de Shakespeare era um duque de Milão;e, eis ahi, talvez, porque se metteu na ilha do nossoamigo.
Em verdade, as noivas que appareciam ao ladodo Rubião, naquelles sonhos de bodas, eram sempretitulares. Os nomes eram os mais sonoros e faceisda nossa nobiliarchia. Eis aqui a explicação: poucassemanas antes, Rubião apanhou um almanack deLaemmert,e, entrando a folheal-o, deu com o capitulodos titulares. Se elle sabia de alguns, estavalonge de os conhecer a todos. Comprou um almanack,e lia-o muitas vezes, deixando escorregar osolhos por alli abaixo, desde os marquezes até osbarões, voltava atraz, repetia os nomes bonitos, traziaa muitos de cór. Ás vezes, pegava da penna e de umafolha de papel, escolhia um titulo moderno ou antigo,e escrevia-o repetidamente, como se fosse o propriodono e assignasse alguma cousa:
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Marquez de Barbacena
Ia assim, até o fim da lauda, variando a lettra,ora grossa, ora miuda, cabida para traz, em pé, detodos os feitios. Quando acabava a folha, pegavanella, e comparava as assignaturas; deixava o papele perdia-se no ar.
D'ahi a jerarchia das noivas. O peor é que todastraziam a cara de Sophia;—podiam parecer-se nosprimeiros instantes com alguma visinha, ou com amoça que elle comprimentára, á tarde, na rua;podiam começar muito magras ou gordas;—masnão tardavam em mudar de figura, encher ou desbastaro corpo, e sobre isto vinha rutilar o rosto dabella Sophia, com os seus mesmos olhos amotinadosou quietos. Não havia fugir, ainda casando? Rubiãochegou a pensar na morte do Palha; foi em certodia, ao sahir da casa delle, tendo-lhe ouvido aella uma porção de cousas bonitas e vagas. Grandefoi a sensação de ventura, posto que elle repellissedahi a pouco a ideia, como um ruim agouro. Diasdepois, trocadas as maneiras, tornava elle definitivamenteaos seus planos. Mais de uma vez,era oproprio Palha que o accordava daquelles sonhosconjugaes.
—Tem onde ir hoje á noite?
—Não.
—Pegue lá uma entrada para o Theatro Lyrico;camarote n. 8, primeira ordem, á esquerda.
Rubião chegava mais cedo, ia esperar por elles, edava o braço a Sophia. Si ella estava de bom humor,a noite era das melhores do mundo. Si não, era ummartyrio, para repetir as proprias palavras delle, aocão, um dia:
—Vim hontem de um martyrio, meu pobreamigo.
—Case-se, e diga que eu o engano, latiu-lheQuincas Borba.
—Sim, meu pobre amigo, accudiu elle pegando-lhenas patas deanteiras e collocando-as sobre osjoelhos. Você tem razão; precisa de uma boa amigaque lhe dê cuidados que não posso ou não sei dar.Quincas Borba, você ainda se lembra do nossoQuincas Borba? Bom amigo meu, grande amigo,eu tambem fui amigo delle, dous grandes amigos.Se fosse vivo, seria o padrinho do meu casamento,levantaria os brindes,—ao menos, o de honra, aosnoivos;—e seria por um copo de ouro e diamantes,que eu lhe mandaria fazer de proposito... GrandeQuincas Borba!
E o espirito de Rubião pairava sobre o abysmo.
Um dia, como houvesse sahido mais cedo de casa,e não soubesse onde passar a primeira hora, caminhoupara o armazem. Desde uma semana que nãoia á praia do Flamengo, por haver Sophia entrado emum dos seus periodos de sequidão. Achou o Palha deluto; morrera a tia da mulher, D. Maria Augusta,na fazenda; a noticia chegara na ante-vespera, átarde.
—A mãe daquella mocinha?
—Justo.
Palha fallou da defuncta com muitos encarecimentos;depois contou a dôr de Maria Benedicta;estava que mettia pena. Perguntou-lhe porque é quenão ia ao Flamengo, logo á noite, para ajudal-os adistrail-a? Rubião prometteu ir.
—Vá, é favor que nos faz; a pobre pequena valetudo. Não imagina que primor alli está. Boa educação,muito severa; e quanto a prendas de sociedade,se não as teve em criança, ressarsiu o tempo perdidocom rapidez extraordinaria. Sophia é a mestra. Edona de casa? Isso, meu amigo, não sei se em taledade, se achará pessoa tão completa. Já agora ficacomnosco. Tem uma irmã, Maria José, casada comum juiz de direito, no Ceará; tem tambem o padrinho,em S. João d'El-rei. A defuncta fallava dellecom elogio; não creio que elle a mande buscar, masainda que mande, não a dou. Já agora é nossa. Nãohade ser pelo que o padrinho lhe quizer deixar emtestamento que nos desfaremos della. Aqui ficará,concluiu tirando com o dedo um pouco de poeira dagola do Rubião.
Rubião agradeceu. Depois, como estavam no escriptorio,ao fundo, olhou por entre as grades, e viuentrar uns fardos no armazem. Perguntou que traziam.
—São uns morins inglezes.
—Morins inglezes, repetiu Rubião, com indifferença.
—A proposito, sabe que a casa Moraes & Cunha,paga a todos os credores, integralmente?
Rubião não sabia nada, nem se a casa existia, nemse elles eram credores della; ouviu a noticia, respondeuque estimava muito, e dispoz-se a ir embora.Mas o socio reteve-o ainda alguns instantes. Estavaalegre agora; parecia que não lhe morrera ninguem.Voltou a fallar de Maria Benedicta. Tinha intençãode casal-a bem; nem ella era moça de dar lerias apelintras, nem se deixava ir por phantasias tolas;era ajuizada, merecia um bom esposo, pessoa seria.
—Sim, senhor, ia dizendo Rubião.
—Olhe, murmurou de repente o socio; não seadmire do que lhe vou dizer. Creio que você é quecasa com ella.
—Eu? acudiu Rubião, espantado. Não, senhor.E em seguida, para attenuar o effeito da recusa:Não nego que seja moça digna e perfeita; mas... porora... não penso em casar...
—Ninguem lhe diz que seja amanhã ou depois;casamento não é cousa que se improvise. O queeu digo é que tenho cá um palpite. São cousas;palpites. Sophia nunca lhe fallou neste meu palpite?
—Nunca.
—É exquisito, disse-me que lhe fallára umavez, ou duas, não me lembro bem.
—Pode ser, sou muito distrahido. Que queriamcasar-me com a moça?
—Não, que eu tinha um palpite. Mas, não fallemosmais n'isto. Demos tempo ao tempo.
—Adeus.
—Adeus; vá cedo.
Com que então, Sophia queria casal-o? sahiupensando o Rubião; era naturalmente o processomais expedito para descartar-se d'elle. Casal-o,fazel-o seu primo. Rubião palmilhou muita rua,antes que chegasse a esta outra hypothese:—TalvezSophia não se houvesse esquecido de fallar, masmentisse de proposito ao marido para não dar andamentoao projecto. N'este caso o sentimento eraoutro. Esta explicação pareceu-lhe logica; a almavoltou á serenidade anterior.
Mas não ha serenidade moral que corte uma polegadasiquer ás abas do tempo, quando a pessoanão tem maneira de o fazer mais curto. Ao contrario,a ancia de ir ao Flamengo, á noite, vinhatornar as horas mais arrastadas. Era cedo, cedopara tudo, para ir á rua do Ouvidor, para voltara Botafogo. O Dr. Camacho estava em Vassourasdefendendo um réo no jury. Não havia divertimentoalgum publico; festa nem sermão. Nada. Rubião,profundamente aborrecido, trocava as pernas, á toa,lendo as taboletas, ou detendo-se ao simples incidentede um atropello de carros. Em Minas, não seaborrecia tanto, porque? Não achou solução ao enigma,uma vez que o Rio de Janeiro tinha mais emque se distrahir, e que o distrahia deveras; mashavia aqui horas de um tedio mortal.
Felizmente, ha um deus para os enojados. Accudiuá memoria de Rubião que o Freitas,—aquelleFreitas tão alegre—estava gravemente enfermo;Rubião chamou um tilbury e foi visital-o á PraiaFormosa, onde morava. Gastou alli perto de duashoras, conversando com o doente; este adormeceu,elle despediu-se da mãe,—um caco de velha,—eá porta antes de sair:
—A senhora hade ter tido seus apertos de dinheiro,disse o Rubião; e, vendo-a morder o beiçoe baixar os olhos: Não se envergonhe; necessidadeafflige, mas não envergonha. Eu o que queria eraque a senhora acceitasse alguma cousa, que lhe voudeixar para acudir á despeza; pagará um dia, sepuder...
Tinha aberto a carteira, tirou seis notas de vintemil reis, fez um bolo de todas ellas, e deixou-lh'ona mão. Abriu a porta e saiu. A velha, espantada,nem teve alma para agradecer; só ao rodar do tilbury,é que correu á janella, mas já não podia vero bemfeitor.
Tudo aquillo saiu tão expontaneamente ao Rubião,que elle só teve tempo de reflectir, depois que otilbury começou a andar. Parece que chegou a levantara cortina do postigo; a velha ia entrando;viu-lhe ainda o resto do braço. Rubião sentiu toda avantagem de não estar invalido. Reclinou-se, desabafouo peito com um grande suspiro e olhou paraa praia; logo depois inclinou-se. Na vinda, malpudera vel-a.
—Vossa Senhoria está gostando, disse-lhe o cocheirocontente com o bom freguez que tinha.
—Acho bonito.
—Nunca veiu aqui?
—Creio que vim, ha muitos annos, quando estiveno Rio de Janeiro pela primeira vez. Que eu sou deMinas... Pare, moço.
O cocheiro fez parar o cavallo; Rubião desceu, edisse-lhe que fosse andando de vagar.
Em verdade, era curioso. Aquellas grandes braçadasde matto, brotando do lodo, e postas alli aopé da cara do Rubião, davam-lhe vontade de ir tercom ellas. Tão perto da rua! Rubião nem sentiao sol. Esquecera o doente e a mãe do doente. Assimsim,—dizia elle comsigo,—fosse o mar todo umacousa daquelle feitio, alastrado de terras e verduras,e valia a pena navegar. Para lá daquillo ficava apraia dos Lazaros e a de S. Christovão. Uma pernadaapenas.
—Praia Formosa, murmurou elle; bem postonome.
Entretanto, a praia ia mudando de aspecto. Dobravapara o Sacco do Alferes, vinham as casas edificadasdo lado do mar. De quando em quando, nãoeram casas, mas canoas, encalhadas no lodo, ou emterra, fundo para o ar. Ao pé de uma dessas canoas,viu meninos brincando, em camisa e descalços, emvolta de um homem que estava de barriga parabaixo. Todos elles riam; um ria mais que os outrosporque não acabava de fixar o pé do homem no chão.Era um pecurrucho do tres annos; agarrava-se-lheá perna e ia-a estendendo até nivelal-a com o chão,mas o homem fazia um gesto e levava pelo ar o pée o menino.
Rubião deteve-se alguns minutos deante daquillo.O sujeito, vendo-se objecto de attenção, redobrou oexforço no brinco; perdeu a naturalidade. Os outrosmeninos mais edosos detiveram-se a olhar espantados.Mas Rubião não distinguia nada; via tudoconfusamente. Foi ainda a pé durante largo tempo;passou o Sacco do Alferes, passou a Gamboa, paroudeante do cemiterio dos inglezes, com os seus velhossepulchros trepados pelo morro, e afinal chegou áSaude. Viu ruas esguias, outras em ladeira, casasapinhadas ao longe e no alto dos morros, beccos,muita casa antiga, algumas do tempo do rei, comidas,gretadas, estripadas, o caio encardido, e a vidalá dentro. E tudo isso lhe dava uma sensação denostalgia... Nostalgia do farrapo, da vida escassa,acalcanhada e sem vexame. Mas durou pouco; ofeiticeiro que andava nelle transformou tudo. Era tãobom não ser pobre!
Rubião chegou ao fim da rua da Saude. Ia á toacom os olhos espraiados e desattentos. Rente comelle, passou uma mulher, não bonita, nem feia, singellasem elegancia, antes pobre que remediada,mas fresca de feições; contaria vinte e cinco annos,e levava pela mão um menino. Este atrapalhou-senas pernas do Rubião.
—Que é isso, nhonhô? disse a moça, puxando ofilho pelo braço.
Rubião inclinara-se ao pequeno, para amparal-o.
—Muito obrigada, desculpe, disse ella sorrindo;e comprimentou-o.
Rubião tirou o chapéo, e sorriu tambem. A visãoda familia apoderou-se delle outra vez.—«Case-se,e diga que eu o engano!»—Parou, olhou paratraz, viu ir a moça, tique-tique, e o menino ao pédella, amiudando as perninhas, para ajustar-se aopasso da mãe. Depois, foi andando lentamente, pensandoem varias mulheres que podia escolher muitobem, para executar, a quatro mãos, a sonata conjugal,musica séria, regular e classica. Chegou apensar na filha do major, que apenas sabia umasvelhas mazurkas. De repente, ouvia a guitarra dopeccado, tangida pelos dedos de Sophia, que o deliciavam,que o estonteavam, a um tempo; e lá seia toda a castidade do plano anterior. Teimavanovamente, forcejava por trocar as composições;pensava na moça da Saude, modos tão bonitos,creancinha pela mão...
A vista do tilbury fez-lhe lembrar o doente dapraia Formosa.
—Pobre Freitas! suspirou.
Logo depois, pensou tambem no dinheiro que deixáraá mãe do enfermo, e achou que fizera bem.Talvez a ideia de haver dado uma ou duas notas demais esvoaçou por alguns segundos no cerebro donosso amigo; elle a sacudiu depressa, não sem sezangar consigo, e, para esquecel-a de todo, exclamouainda em voz alta:
—Boa velha! pobre velha!
Como a ideia tornasse ainda, Rubião atirou-se depressaao tilbury, entrou e sentou-se, faltando aococheiro, para fugir a si mesmo.
—Dei uma caminhada grande; mas, sim, senhor,isto aqui é bonito, é curioso; aquellas praias, aquellasruas, é differente dos outros bairros. Gósto disto.Heide vir mais vezes.
O cocheiro sorriu para si de um modo tão particular,que o nosso Rubião desconfiou. Não atinavacom o motivo do riso; talvez lhe houvesse escapadoalguma palavra que no Rio de Janeiro tivesse máosentido; mas repetiu-as e não descobriu nada; eramtodas usadas e communs. Entretanto, o cocheirosorria ainda, com o mesmo ar do principio, meiosubserviente, meio velhaco. Rubião esteve a piquede o interrogar, mas recuou a tempo. Foi o outroque reatou a conversação.
—Vossa Senhoria está então muito admirado dobairro? disse elle. Hade deixar que eu não acredite,sem se zangar, que não é para offender a Vossa Senhoria,nem eu sou pessoa que aggrave um freguezserio; mas não creio que esteja admirado do bairro.
—Porque? aventurou Rubião.
O cocheiro meneou a cabeça para um e outro lado,e insistiu em não crer,—não porque o bairro nãofosse digno de apreço, mas porque naturalmente jáo conhecia muito, Rubião ratificou a primeira affirmação;tinha ido alli muitos annos antes, quandoesteve da outra vez no Rio de Janeiro, mas não selembrava da nada. E o cocheiro ria; e, á medidaque o freguez ia demonstrando, elle ia ficando maisfamiliar, fazia negativas com o nariz, com os beiços,com a mão.
—Já sei disso, concluiu elle. Nem eu sou homemque não veja as cousas. Vossa Senhoria pensaque não vi a maneira porque olhou para aquellamoça que passou ainda agora? Basta só isso paramostrar que Vossa Senhoria tem faro e gósta...
Rubião, lisongeado, sorriu um pouco; mas emendou-selogo:
—Que moça?
—Que lhe dizia eu? redarguiu o homem. VossaSenhoria é fino, e faz muito bem; mas eu sou pessoade segredo, e cá o carro tem servido para estas idase vindas. Não ha muitos dias trouxe aqui um bellomoço, muito bem vestido, pessoa fina,—já se sabe,negocio de rabo de saia.
—Mas eu... interrompeu o Rubião.
Mal podia conter-se; a supposição agradava-lhe;o cocheiro cuidou que elle dissimulava a culpa.
—Olhe, eu bem digo,—continuou elle; tal qualo moço da rua dos Invalidos. Vossa Senhoria pódeficar descançado; não digo nada; cá estou paraoutras. Então, quer que eu acredite que é por gostoque uma pessoa, que tem carro ás ordens, vem andandoa pé desde a praia Formosa até aqui? VossaSenhoria veiu ao logar marcado, a pessoa não veiu...
—Que pessoa? Fui ver um doente, um amigoque está para morrer.
—Tal qual o moço da rua dos Invalidos, repetiuo homem. Esse veiu ver uma costureira da mulher,como se fosse casado...
—Da rua dos Invalidos? perguntou Rubião, quesó agora attentava no nome da rua.
—Não digo mais nada, acudiu o cocheiro. Erada rua dos Invalidos, bonito, um moço de bigodes eolhos grandes, muito grandes. Oh! eu tambem sefosse mulher, era capaz de apaixonar-me por elle... Ellanão sei d'onde era, nem diria ainda que soubesse;sei só que era um peixão.
E vendo que o freguez o escutava com os olhosarregalados:
—Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era deboa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por umveu, cousa papafina. A gente, por ser pobre, nãodeixa de apreciar o que é bom.
—Mas... como foi? murmurou Rubião.
—Ora, como foi! Elle chegou como Vossa Senhoria,no meu tilbury, apeou-se e entrou n'umacasa de rotula; disse que ia ver a costureira da mulher.Como eu não lhe perguntei nada, e elle tinhavindo calado toda a viagem, muito cheio de si, comprehendilogo a finura. Agora, podia ser verdade,porque é mesmo uma costureira que mora na casada rua da Harmonia...
—Da Harmonia? repetiu Rubião.
—Máo! Vossa Senhoria está arrancando o meusegredo; fallemos de outra cousa; não digo maisnada.
Rubião olhava attonito para o homem, que defacto se calou por dous ou tres minutos, mas logodepois continuou:
—Tambem não ha muita cousa mais. O moçoentrou; eu fiquei esperando; meia hora depois vium vulto de mulher, ao longe, e desconfiei logo queia para lá. Meu dito, meu feito; ella veiu, veiu, devagar,olhando disfarçadamente para todos os lados;ao passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisoubater; foi como nas magicas, a rotula abriu-se porsi, e ella enfiou por alli dentro. Se eu já conheçoisto. Em que é que Vossa Senhoria quer que a genteganhe alguma cousa mais? O preço da tabella maldá para comer; é preciso fazer estes ganchos.
—Não, não podia ser ella, reflectiu Rubião,em casa, vestindo-se de preto.
Desde que chegara, não pensou em outra cousaque não fosse o caso contado pelo cocheiro do tilbury.Tentou esquecel-o, arranjando papeis, oulendo, ou dando estalinhos com os dedos para verpular o Quincas Borba; mas a visão perseguia-o.Dizia-lhe a razão que ha muitas senhoras de boafigura, e nada provava que a da rua da Harmoniafosse ella; mas o bom effeito era curto. Dahi apouco, desenhava-se ao longe, cabisbaixa, vagarosa,uma pessoa, que era nem mais nem menos a propriaSophia, e andava, e entrava de repente pela portade uma casa, que se fechava logo...Beati quorumtecta sunt peccata. Assim rangia a porta em mau elitteral sentido. A visão foi tal, em certa occasião,que o nosso amigo ficou a olhar para a parede, comose alli estivesse a rotula da rua Harmonia. De imaginação,fez uma serie de acções:—bateu, entrou,lançou a mão ao gasnate da costureira, e pediu-lhe averdade ou a vida. A pobre mulher, ameaçada damorte, confessou tudo; levou-o a ver a dama, que eraoutra, não era Sophia. Quando Rubião voltou a si,sentiu-se vexado.
—Não, não podia ser ella.
Vestiu o collete, e foi abotoal-o deante de umadas janellas, que dava os fundos, no momento emque uma caravana de formigas ia passando pelo peitoril.Quantas vira passar outr'ora! Mas desta vez,nunca soube como, pegou de uma toalha, deu dousgolpes, atropellou as tristes formigas, matandouma porção dellas. Talvez alguma lhe pareceu«boa figura e bonita de corpo». Logo depois arrependeu-sedo acto; e realmente, que tinham as formigascom as suas suspeitas? Felizmente, começoua cantar uma cigarra, com tal propriedade e significação,que o nosso amigo parou no quarto botãodo collete.Sôôôô... fia, fia, fia, fia, fia, fia...Sôóóô... fia, fia, fia, fia, fia...
Oh! precaução sublime e piedosa da natureza,que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigasmortas, para compensal-as. Essa reflexão é do leitor.Do Rubião não póde ser. Nem era capaz de approximaras cousas, e concluir dellas,—nem o fariaagora que está a chegar ao ultimo botão do collete,todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigasmortas! Ide agora ao vosso Homero gaulez, quevos pague a fama; a cigarra é que se ri, emendandoo texto:
Vous marchiez? J'en suis fort aise.
Eh bien! mourez maintenant.
Soou a campainha do jantar; Rubião compozo rosto, para que os seus habituados (tinha semprequatro ou cinco) não percebessem nada. Achou-osna sala de visitas, conversando, á espera; ergueram-setodos, foram apertar-lhe a mão, alvoroçadamente.Rubião teve aqui um impulso curioso,—dar-lhesa mão a beijar. Reteve-se a tempo, espantadode si proprio.
De noite, correu á praia do Flamengo. Não pôdefallar a Maria Benedicta, que estava em cima, noquarto, com duas moças da visinhança, amigas della.Sophia veiu recebel-o á porta, e levou-o para o gabinete,onde duas costureiras faziam os vestidos deluto. O marido acabava de chegar; ainda não descera.
—Sente-se aqui, disse ella.
Tomou conta delle; estava divina. As palavrassabiam-lhe carinhosas e graves, entrecortadas desorrisos amigos e honestos. Fallou-lhe da tia, daprima, do tempo, dos criados, dos expectaculos, dafalta d'agua, de uma multidão de cousas diversas,vulgares ou não, mas que passando pela bocca damoça, mudavam de natureza e de aspecto. Rubiãoouvia fascinado. Ella, para não estar vadia, ia cosendouns folhos; e, quando a conversação faziapausa, Rubião era pouco para comer-lhe as mãosageis, que pareciam brincar com a agulha.
—Sabe que estou formando uma commissão desenhoras? perguntou ella.
—Não sabia; para que?
—Não leu a noticia daquella epidemia n'umacidade das Alagoas?
Contou-lhe que ficara tão penalisada, que resolveulogo organisar uma commissão de senhoras,para pedir esmolas. A morte da tia interrompeu osprimeiros passos; mas ia continuar, passada a missado setimo dia. E perguntou que lhe parecia.
—Parece-me bem. Não ha homens na commissão?
—Ha só senhoras. Os homens apenas dão dinheiro,concluiu rindo.
Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantiagrossa, para obrigar os que viessem depois. Eratudo verdade. Era tambem verdade que a commissãoia pôr em evidencia a pessoa de Sophia, e dar-lheum empurrão para cima. As senhoras escolhidasnão eram da roda da nossa dama, e só uma a comprimentava;mas, por intermedio de certa viuva,que brilhára entre 1840 e 1850, e conservava doseu tempo as saudades e o apuro, conseguira quetodas entrassem naquella obra de caridade. Desdealguns dias não pensara em outra cousa. Ás vezes,á noite, antes do chá, parecia dormir na cadeira debalanço; não dormia, fechava os olhos para considerar-sea si mesma, no meio das companheiras,pessoas de qualidade. Comprehende-se que estefosse o assumpto principal da conversação; mas, Sophiatornava de quando em quando ao presenteamigo. Porque é que elle fazia fugidas tão longas,oito, dez, quinze dias, e mais? Rubião respondeuque por nada, mas tão commovido, que uma dascostureiras bateu no pé da outra. Dahi em deante,ainda quando o silencio era largo, cortado apenaspelo som das agulhas no merinó, das tesouradas, dosrasgados, uma e outra não perdiam de vista a pessoado nosso amigo, com os olhos fisgados na donada casa.
Veiu uma visita de pesames,—um homem, directorde banco. Foram chamar logo o Palha, quedesceu a recebel-o. Sophia, pediu licença ao Rubião,por alguns segundos; ia ver Maria Benedicta.
Rubião, ficando só com as duas mulheres, entroua andar de um lado para outro, abafando os passos,para não incommodar ninguem. Da sala vinha umaou outra palavra do Palha: «Em todo o caso, podecrer...»—«Nem a administração de um banco écousa de brincadeira...»—-«Positivamente...»O director fallava pouco, secco e baixo.
Uma das costureiras dobrou a costura, arrecadouapressadamente retalhos, tesouras, carreteis de linha,de retroz. Era tarde; ia-se embora.
—Dondon, espera um bocado que eu vou tambem.
—Não, não posso. O senhor faz favor de dizerque horas são?
—São oito e meia, respondeu Rubião.
—Jesus! é muito tarde.
Rubião, para dizer alguma cousa, perguntou-lheporque não esperava, como a outra pedia.
—Só espero D. Sophia, acudiu Dondon comrespeito; mas o senhor sabe onde é que esta móra?Móra na rua do Passeio. E eu vou dar com os ossosna rua da Harmonia. Olhe que daqui á rua da Harmoniaé um estirão.
Sophia desceu logo, achou Rubião transtornado,fugindo com os olhos. Perguntou-lhe o que era;elle respondeu que nada. Dondon sahiu, o directordo banco despedia-se; Palha agradecia-lhe a fineza,estimava-lhe a saude. Onde estava o chapéo?Achou-o; deu-lhe tambem o sobretudo; e, parecendoque elle procurava outra cousa, perguntou seera a bengala.
—Não, senhor, é o guarda chuva. Creio que éeste; é este. Adeus.
—Ainda uma vez, obrigado, muito obrigado,disse o Palha. Ponha o seu chapéo, está humido,não faça ceremonias. Obrigado, muito obrigado,concluiu apertando-lhe a mão nas suas, e curvadoem angulo.
Voltando ao gabinete, deu com o socio, que teimavaem sair. Instou tambem; disse-lhe que tomasseuma chicara de chá, que lhe passava logo;Rubião recusou tudo.
—A sua mão está fria, observou o moça ao Rubião,apertando-lh'a; porque não espera? Agua demelissa é muito bom. Vou buscar.
Rubião deteve-a; não era preciso; conheciaaquelles achaques, curavam-se com o somno. Palhaquiz mandar vir um tilbury; mas o outro accudiudizendo que o ar da noite lhe faria bem, e que noCattete acharia conducção.
—Vou agarral-a antes de chegar ao Cattete,disse Rubião subindo pela rua do Principe.
Calculou que a costureira teria ido por alli. Aolonge, descobriu alguns vultos de um e outro lado;um delles pareceu-lhe de mulher. Hade ser ella,pensou; e picou o passo. Entende-se naturalmenteque levava a cabeça atordoada: rua da Harmonia,costureira, uma dama, e todas as rotulas abertas.Não admira que, fóra de si, e andando rápido, désseum encontrão em certo homem que ia devagar, cabisbaixo.Nem lhe pediu desculpa; alargou o passo,vendo que a mulher tambem andava depressa.
E o homem empurrado, apenas sentiu o empurrão.Caminhava absorto, mas contente, espraiando a alma,desabafado de cuidados e fastios. Era o director debanco, o que acabava de fazer a visita de pesamesao Palha. Sentiu o empurrão, e não se zangou; concertouo sobretudo e a alma, e lá foi andando tranquillamente.
Convem dizer, para explicar a indifferença dohomem, que elle tivera, no espaço de uma horacommoções oppostas. Fora primeiro á casa de umministro de Estado, tratar do requerimento de umirmão. O ministro, que acabava de jantar, fumavacalado e pacifico. O director expoz atrapalhadamenteo negocio, tornando atraz, saltando adeante, ligandoe desligando as cousas. Mal sentado, para não perdera linha do respeito, trazia na boca um sorriso constantee venerador; e curvava-se, pedia desculpas.O ministro fez algumas perguntas; elle, animado,deu respostas longas, extremamente longas, e acabouentregando um memorial. Depois ergueu-se,agradeceu, apertou a mão ao ministro, este acompanhou-oaté á varanda. Ahi fez o director duascortezias,—uma em cheio, antes de descer a escada,—outraem vão, já embaixo, no jardim; em vezdo ministro, viu só a porta de vidro fosco, e navaranda, pendente do tecto, o lampião de gaz.Enterrou o chapéu, e sahiu. Saiu humilhado, vexadode si mesmo. Não era o negocio que o affligia,mas os comprimentos que fez, as desculpas quepediu, as attitudes subalternas, um rosario de actossem proveito. Foi assim que chegou á casa doPalha.
Em dez minutos, tinha a alma espanada, e restituidaa si mesma, taes foram as mesuras do donoda casa, osapoiados de cabeça, e um raio de sorrisoperenne, não contando offerecimentos de chá echarutos. O director fez-se então severo, superior,frio, poucas palavras; chegou a arregaçar comdesdem a venta esquerda, a proposito de uma ideiado Palha, que a recolheu logo, concordando que eraabsurda. Copiou do ministro o gesto lento. Saindo,não foram delle as cortezias, mas do dono da casa.
Estava outro, quando chegou á rua; dahi o andarsocegado e satisfeito, o espraiar da alma devolvidaa si propria, e a indifferença com que recebeuo embate do Rubião. Lá se ia a memoria dos seusrapapés; agora o que elle rumina saborosamentesão os rapapés de Christiano Palha.
Quando Rubião chegou á esquina do Cattete, acostureira conversava com um homem, que a esperara,e que lhe dou logo depois o braço; e viu-osir ambos, conjugalmente, para o lado da Gloria.Casados? amigos? Perderam-se na primeira dobrada rua, emquanto Rubião ficou parado, recordandoas palavras do cocheiro, a rotula, o moço de bigodes,a senhora de bonito corpo, a rua da Harmonia... Ruada Harmonia; ella dissera rua da Harmonia.
Deitou-se tarde. Parte do tempo esteve á janella,matutando, charuto acceso, sem acabar do explicaraquelle negocio. Dondon era por força a terceiranos amores; devia ser, tinha olhos sonsos, pensavaRubião.
—Amanhã vou lá, saio mais cedo, vou esperal-ana esquina; dou-lhe cem mil réis, duzentos, quinhentos;ella hade confessar-me tudo.
Quando cançou, olhou para o céo; lá estava oCruzeiro... Oh! se ella houvesse consentido em fitaro Cruzeiro! Outra teria sido a vida de ambos.A constellação pareceu confirmar este modo desentir, fulgurando extraordinariamente; e Rubiãoquedou-se a miral-a, a compôr mil cousas lindas enamoradas,—a viver do que podia ter sido. Quandoa alma se fartou de amores nunca desbrochados,accudiu á mente do nosso amigo que o Cruzeiro nãoé só uma constellação, é tambem uma ordem honorifica.D'aqui passou a outra série de pensamentos.Achou genial a ideia de fazer do Cruzeiro uma distincçãonacional e previlegiada. Já tinha visto avenera ao peito de alguns servidores publicos. Erabella, mas principalmente rara.
—Tanto melhor! disse elle em voz alta.
Era perto de duas horas quando sahiu da janella;fechou-a e foi metter-se na cama, dormiu logo;accordou ao som da voz do creado hespanhol, quelhe trazia um bilhete.
Rubião sentou-se na cama, estremunhado, nãoreparou na lettra do sobrescripto; abriu o bilhete,e leu:
«Ficamos hontem muito inquietos, depois que o
senhor sahiu. Christiano não vae lá agora, porque
accordou tarde, e tem de ir fallar ao inspector da
alfandega. Mande-nos dizer se passou melhor. Lembranças
de Maria Benedicta e da
Sua amiga e obrigada
Sophia.»
—Diga ao portador que espere.
Dahi a vinte minutos a resposta chegou á mãodo moleque que trouxera o bilhete; foi o proprioRubião que lh'a entregou, perguntando-lhecomo tinham passado as senhoras. Soube quebem; deu-lhe dez tostões, recommendando-lhe que,quando precisasse alguma cousa, viesse procural-o.O rapaz, espantado, arregalou os olhos e prometteutudo.
—Adeus! disse-lhe benevolamente o Rubião.
E ficou parado, emquanto o portador descia ospoucos degráus. Indo este a meio do jardim, ouviubradar o Rubião:
—Espera!
Voltou para acudir ao chamado; Rubião já tinhadescido os degráus; foram um ao outro, e pararam,calados. Correram dous minutos, sem queRubião abrisse a boca. Afinal, perguntou algumacousa, se as senhoras tinham passado bem.Era a mesma pergunta de ha pouco; o criado confirmoua resposta. Depois, Rubião deixou vagar osolhos pelo jardim. As rosas e as margaridas estavamlindas e frescas, alguns cravos desabrochavam, outrasflores e folhagens, begonias e trepadeiras, todo essepequeno mundo parecia estender os olhos invisiveisao Rubião, e bradar-lhe:
—Alma sem vigor, acaba de uma vez com o teudesejo; colhe-nos, manda-nos...
—Bem, disse finalmente Rubião; lembranças ássenhoras. Não se esqueça do que lhe disse; precisandode mim, venha cá. Guardou a carta?
—Está aqui, sim, senhor.
—É melhor mettel-a no bolso, mas olhe nãomachuque.
—Não machuco, não, senhor, retorquiu o criadoaccommodando a carta.
Sahiu o moleque; Rubião ficou passeando nojardim, com as mãos nos bolsos do chambre, e osolhos nas flores. Que tinha que mandasse algumas?Era um presente natural, e até de obrigação parapagar uma cortezia com outra. Fez mal; correuao portão, mas já o moleque ia longe; Rubiãoadvertiu que o luto excluia as lembranças alegres, eficou tranquillo.
Senão quando, ao recomeçar o passeio, viu umacarta ao pé de um canteiro. Inclinou-se, apanhou-a,leu o sobrescripto... A lettra era della, tão só della;comparou-a com a do bilhete que recebera; eraa mesma. O nome era o do diabo: Carlos Maria.
—Sim, foi isso, pensou elle ao cabo de algunsminutos, o portador da minha carta trouxe esta, edeixou-a cair.
E, mirando a carta, de um e outro lado, perguntava-lhepelo conteúdo. Oh! o conteúdo! Queiria alli escripto dentro daquelle papel homicida?Perversidade, luxuria, toda a linguagem do mal eda demencia, resumidas em duas ou tres linhas.Ergueu-a ante dos olhos, para ver se podia leralguma cousa; o papel era grosso; não se podia lernada. Ao lembrar-se que o portador, dando por faltada carta, voltaria a procural-a, metteu-a atrapalhadamenteno bolso, e correu para dentro.
Em casa, tirou-a e mirou-a outra vez; as mãoshesitavam, reproduzindo o estado da consciencia.Se abrisse a carta, saberia tudo. Lida e queimada,ninguem mais conheceria o texto, ao passo que elleteria acabado por uma vez com essa terrivel fascinaçãoque o fazia penar ao pé daquelle abysmode opprobios... Não sou eu que o digo, é elle; elle éque junta esse e outros nomes ruins, elle é quepára no meio da sala, com os olhos no tapete, emcuja trama figura um turco indolente, cachimbo naboca, olhando para o Bosphoro... Devia ser o Bosphoro.
—Infernal carta! rosnou surdamente, repetindouma phrase ouvida no theatro, algumas semanasantes; phrase esquecida, que, por uma associaçãode ideias, vinha agora exprimir a analogia moral doexpectaculo e do expectador.
Teve impetos de abril-a; era só um gesto, umacto; ninguem o via, os quadros da parede estavamquietos, indifferentes, o turco do tapete continuava afumar e a olhar para o Bosphoro. Contudo, sentia,escrupulos; a carta, posto que achada no jardim, nãolhe pertencia, mas ao outro. Era como se fosse umembrulho de dinheiro; não devolveria o dinheiro aodono? Despeitado, metteu-a outra vez no bolso. Entremandar a carta ao destinatario e entregal-a aSophia, adoptou afinal o segundo alvitre; tinha avantagem de poder lêr a verdade nas feições dapropria autora.
—Digo-lhe que achei uma carta, assim e assim,pensou Rubião; e antes de lhe dar a carta, vejo bemna cara della, se fica atterrada ou não. Talvez empallideça:então ameaço-a, fallo-lhe da rua da Harmonia;juro-lhe que estou disposto a gastar trezentos,oitocentos, mil contos, dous mil, trinta milcontos, se tanto fôr preciso para estrangular o infame...
Nenhum dos habituados da casa compareceu aoalmoço. Rubião esperou ainda alguns minutos, chegoua mandar um criado ao portão, a ver se vinhaalguém. Ninguem; teve de almoçar sosinho.
Em geral, não podia supportar as refeições solitarias;estava tão affeito á linguagem dos amigos,ás observações, ás graças, não menos que aos respeitose considerações, que comer só era o mesmoque não comer nada. Agora, porém, era como umSaul que precisasse de algum David, para expellir oespirito maligno que se mettera nelle. Já queria malao portador da carta, porque a deixara cair; ignorarera um beneficio. E depois, a consciencia vacillava,—iada entrega da carta á recusa e á guardaindefinida. Rubião tinha medo de saber algumacousa; ora queria, ora não queria lêr nada no rostode Sophia. O desejo de saber tudo era, em resumo,a esperança de descobrir que não havia nada.
David appareceu emfim, entre o queijo e o café,na pessoa do Dr. Camacho, que voltara de Vassouras,na vespera, á noite. Como o David da Escriptura,trazia um jumento carregado de pães, umcantaro de vinho e um cabrito. Deixára gravementeenfermo um deputado mineiro, que estavaem Vassouras e preparou a candidatura do Rubião,escrevendo ás influencias de Minas. Foi o que lhedisse aos primeiros golos de café.
—Candidato, eu?
—Pois então quem?
Camacho demonstrou que não podia haver melhor.Tinha serviços em Minas, não tinha?
—Alguns.
—Aqui os tem de grande relevancia. Mantendocommigo o orgão das ideias, tem recebido solidariamenteos golpes que me dão, além dos sacrificios quetodos fazemos pelo lado pecuniario. Sobre isto, nãome diga nada. Digo-lhe que heide fazer o que puder.Demais, o senhor é a melhor solução da divergencia.
—Divergencia?
—Sim, o Dr. Hermenegildo, de Cattas-Altas, eo coronel Romualdo; dizem que ambos, em caso devaga, querem apresentar-se; é dividir os votos.
—Seguramente; mas teimam?
—Creio que não teimarão, quando eu lhes mandard'aqui confirmação dos chefes, porque foi umadas cousas que me lançaram á cara, é que eu nãotinha poderes; confessei que, para aquelle caso imprevisto,não; mas que possuia a confiança dossuperiores, os quaes me approvariam. Creia queestá feito. Então que pensa? Pensa que trabalhoaqui sacrificando tempo e dinheiro, e algum talento,para não valer a um amigo, que tantas provas temdado de fidelidade aos principios? Oh! isso não. Hãode ouvir-me, e adoptar o que lhes proponho.
Rubião, commovido, fez ainda outras perguntasacerca da luta e da victoria, se eram precisas algumasdespezas já, ou carta de recommendação e pedido, ecomo é que se havia de ter noticias frequentes doenfermo, etc. Camacho respondia a tudo; masrecommendava-lhe cautella. Em politica, disse elle,uma cousa de nada desvia o curso da campanhae dá a victoria ao adversario. Comtudo, aindaque não sahisse vencedor, tinha Rubião a vantagemde ficar com o seu nome suffragado; e oprecedente contava-se por um serviço.
—Firmeza e paciencia, concluiu.
E logo em seguida:
—Eu proprio que sou, se não um exemplo depaciencia e firmeza? A minha provincia está entreguea um grupo de bandidos; não ha outro nome para agente dos Pinheiros; e alem disso (digo-lhe isto comdor e em particular) tenho amigos que me intrigam,uns ganhadores, que querem ver se o partido merepelle e se me tomam o logar... Não fallemos disso!Ah! meu caro Rubião, isto de politica pode sercomparado á paixão de Nosso Senhor Jesus Christo;não falta nada, nem o discipulo que nega, nem odiscipulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas,madeiro, e afinal morre-se na cruz das ideias, pregadopeles cravos da inveja, da calumnia e da ingratidão...
Esta phrase, cahida no calor da conversa, pareceu-lhedigna de um artigo; reteve-a de memoria;antes de dormir, escreveu-a em uma tira de papel.Mas, na occasião da conversa, emquanto a repetiaconsigo para fixal-a, Rubião dizia que se animasse,que elle era homem para grandes campanhas. E nãofugisse de caretas.
—De caretas? Seguramente que não. Nem depapões verdadeiros, se os ha. Cá os espero! Que seacautellem no dia em que subirmos! Hão de pagartudo. Ouça-me este conselho; em politica, não seperdoa nem se esquece nada. Quem fez uma, paga;creia que a vingança é um prazer, continuou sorrindo;ha muita delicia... Emfim, contados os malese os bens da politica, os bens ainda são superiores.Ha ingratos, mas os ingratos demittem-se, prendem-se,perseguem-se...
Rubião ouvia subjugado. Camacho impunha;faiscavam-lhe os olhos. Os anathemas brotavam-lhecomo da boca de Isaias; as palmas do triumpho verdejavam-lhenas mãos. Cada gesto parecia um principio.Quando fallava com os braços abertos, ferindoo ar, era como se desdobrasse um programma inteiro.Ia-se embriagando de esperanças, e tinha o vinhoalegre. De uma vez, parou deante de Rubião:
—Vamos lá, deputado; ensaie um discurso, pedindoo encerramento da discussão:Sr. presidente...Vamos, diga commigo:Sr. presidente, peço a V. Ex...
Rubião interrompeu-o, erguendo-se; teve uma especiede vertigem. Via-se na camara, entrando paraprestar juramento, todos os deputados de pé; e teveum calefrio. O passo era difficil. Contudo, atravessoua sala, subiu á mesa do presidencia, prestou o juramentode estylo... Talvez a voz lhe fraqueasse naoccasião...
Foi nesse estado que o veiu achar a noticia damorte do Freitas. Chorou uma lagryma ás escondidas;tomou a si custear as despezas do enterro, eacompanhou o defuncto, na tarde seguinte, ao cemiterio.A velha mãe do finado, quando o viu entrarna sala, quiz ajoelhar-se aos pés delle; Rubião abraçou-aa tempo de impedir-lhe o gesto. Esse acto donosso amigo fez grande impressão nos convidados.Um delles veiu apertar-lhe a mão; depois a umcanto, baixinho, contou-lhe a injustiça da demissãoque recebera, dias antes; demissão acintosa, porcausa de intrigas...
—Imagine V. Ex. que aquillo é (com perdão dapalavra) um covil de patifes...
Chegou a hora de sahir o enterro; as despedidasda mãe foram dolorosas; beijos, soluços, exclamações,tudo de mistura, e lancinante. As mulheres nãoconseguiram arrancal-a dalli; foram precisos doushomens e o emprego da força; ella gritava e teimavapor tornar ao cadaver: meu filho! meu pobrefilho!
—Um escandalo! insistia o demittido. O proprioministro dizem que não gostou do acto; mas V. Ex.sabe, para não desmoralisar o director...
—Pan... pan... pan... soavam os martellos surdamente,pregando o caixão.
Rubião accedeu ao pedido que lhe faziam de pegarem uma das argolas, e deixou o demittido. Fóra,alguma gente parada; os visinhos ás janellas, debruçavam-seuns sobre os outros, com os olhos cheiosdaquella curiosidade que a morte inspira aos vivos.Ao demais, havia ocoupé do Rubião, que se destacavadas caleças velhas. Já se fallava muito daquelleamigo do finado, e a presença confirmou a noticia. Odefuncto era agora apreciado com certa consideração.
No cemiterio, não se contentou Rubião com deitara pá de terra, acto em que foi primeiro, por solicitaçãode todos; esperou que os coveiros enchessema cova com as suas grandes pás do officio. Tinha osolhos humidos; acabou, saiu, ladeado pelos outros,e, á porta, com uma só chapelada para a direita epara a esquerda, saudou a todas as cabeças descobertase curvas. Ao entrar nocoupé, ainda ouviuestas palavras, a meia voz:
—Parece que é senador ou desembargador, oucousa assim...
Era noite entrada. Rubião vinha por alli abaixo,recordando o pobre diabo que enterrára, quando, narua de S. Christovão, cruzou com outrocoupé, quelevava duas ordenanças atrás. Era um ministro queia para o despacho imperial. Rubião pôz a cabeçade fóra, recolheu-a e ficou a ouvir os cavallos dasordenanças, tão eguaesinhos, tão distinctos, apezardo estrepito dos outros animaes. Era tal a tensão doespirito do nosso amigo, que ainda os ouvia, quandojá a distancia não permittia audiencia. Catrapuz...catrapuz... catrapuz...
Ao setimo dia da morte de D. Maria Augusta,rezou-se a missa de uso, em S. Francisco de Paula;Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastoupara precipitar a devolução da carta; tres dias depois,metteu-a no bolso e correu ao Flamengo. Eramduas horas da tarde. Maria Benedicta fôra visitaras amigas da visinhança, que a tinham acompanhadonos primeiros dias de afflicção; Sophia estavasó, vestida para sair.
—Mas, não importa, disse ella convidando-o asentar-se; fico ou saio mais tarde.
Rubião retorquiu que a demora era curta; vinhadar-lhe um papel.
—Em todo caso, sente-se; tambem se póde darum papel sentado.
Estava tão bonita, que elle hesitou em dizer-lhe aspalavras duras que trazia de cór. O luto ia-lhe muitobem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, via-se-lhemetade do pé, sapato raso, meia de sêda, cousas todasque pediam misericordia e perdão. Quanto á espadadaquella bainha,—assim chama á alma um velhoautor,—parecia não ter gume nem campanhas; erauma ingenua faca de marfim. Rubião esteve a piquede fraquear; a primeira palavra arrastou as outras.
—Que papel? perguntou Sophia.
—Um papel, que supponho grave, respondeuelle contendo-se;—não se recorda ou não sabe queperdeu uma carta?
—Não.
—Costuma escrever cartas?
—Tenho escripto algumas; mas, não me lembrase grave. Deixe ver.
Rubião tinha os olhos desvairados. Não dissenem fez nada. Levantou-se para sair, não saiu.Depois de alguns instantes de silencio e inquietação,fallou sem raiva:
—Não é segredo para a senhora que lhe querobem. A senhora sabe disto, e não me despede, nemme acceita, anima-me com os seus bonitos modos.Não me esqueci ainda de Santa Theresa, nem danossa viagem no trem de ferro, quando vinhamosos dous, com seu marido no meio. Lembra-se? Foia minha desgraça aquella viagem; desde aquelledia a senhora me prendeu. A senhora é má, temgenio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que nãogoste de mim; mas, podia desenganar-me logo...
—Cale-se, vem gente, interrompeu Sophia erguendo-setambem e olhando para o lado da porta.
Não vinha ninguem; entretanto, podiam ouvil-o,por que a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo.Cresceu ainda mais. Já não pleiteava esperanças;abria e despejava a alma.
—Não me importa que ouçam, bradou elle;podem ouvir-me; agora digo tudo, a senhora bota-mepara fóra e tudo acaba. Não, não se póde fazersoffrer assim um homemcomo eu.
—Cale-se, pelo amor de Deus!
—Qual Deus! Ouça-me o resto, porque eu estoudisposto a não guardar nada...
Desatinada, receiando deveras que algum criadoouvisse, Sophia levantou a mão e tapou-lhe a boca.Ao contacto daquella epiderme querida, Rubião perdeua voz. Sophia retirou a mão, e dispoz-se adeixar a sala; mas, chegando á porta, parou. Rubiãocaminhara até á janella, para convalecer da explosão.
Sophia, depois de estar alguns segundos á escuta,tornou á sala, e foi sentar-se com granderumor de saias, na ottomana de setim azul, comprade poucos dias. Rubião voltou-se, e deu comella, abanando reprehensivamente a cabeça. Antesque elle falasse, Sophia poz o dedo na boca, pedindo-lhesilencio; depois chamou-o com a mão; Rubião obedeceu.
—Sente-se naquella cadeira, disse ella; e continuou,depois de o ver sentado: Tenho razão parazangar-me com o senhor; não o faço, porque sei queé bom, e estou que é sincero; arrependa-se do queme disse, e tudo lhe será perdoado.
Acabando de fallar, Sophia bateu com o leque nolado direito do vestido para o abaixar e compôr;depois levantou os braços sacudindo as pulseiras dovidro preto; finalmente, pousou os braços sobre osjoelhos, e, abrindo e fechando as varetas do leque,aguardou a resposta. Ao contrario do que esperava,Rubião abanou a cabeça negativamente.
—Não tenho de que me arrepender, disse elle; eprefiro que me não perdoe. A senhora ficará cádentro, quer queira, quer não; podia mentir, masque é que rende a mentira? A senhora é que nãotem sido sincera commigo, porque me tem enganado...
Sophia retezou o busto.
—...Não se zangue; não desejo offendel-a;mas, deixe-me dizer que a senhora é que me temenganado, e muito, e sem compaixão. Que ame a seumarido, vá; perdoava-lhe; mas que...
—Mas que? repetiu ella espantada.
Rubião metteu a mão no bolso, tirou a carta, eentregou-lh'a. Sophia, ao ler o nome de Carlos Maria,ficou sem pinga de sangue; elle viu-lhe a pallidez.Dominando-se logo, perguntou o que era, quequeria dizer essa carta.
—A lettra é sua.
—É minha. Mas que diria eu aqui dentro?continuou tranquilla. Quem lhe deu isto?
Rubião quiz referir o achado; mas entendeu teralcançado o bastante; cortejou-a para sair.
—Perdão, disse ella, abra o senhor mesmo acarta.
—Não tenho mais nada que fazer aqui.
—Fique, abra a carta, aqui a tem; leia tudo,—diziaa moça pegando-lhe na manga; mas, Rubiãopuxou violentamente o braço, foi buscar o chapéo,e sahiu. Sophia, com medo dos criados, deixou-seficar na sala.
Tão nervosa esteve durante alguns instantes, quenão cuidou da carta. Afinal, virou-a de um ladopara outro, sem adivinhar o conteúdo; mas, pouco apouco, já senhora de si, lembrou-se que devia ser acircular da commissão das Alagoas. Rasgou a sobrecarta:era a circular. Como é que semelhante papelfora ter ás mãos delle? E d'onde lhe vinha a suspeita?De si mesmo ou de fóra? Correria algumboato? Foi ter com o criado que levara a circulara Carlos Maria, e perguntou-lhe se a entregára.Soube que não. Quando o criado chegou á rua dosInvalidos, não achou o papel no bolso, e, com medo,não dissera nada á ama.
Sophia tornou á sala, disposta a não sair. Recolheua carta e a sobrecarta, para mostral-asa Rubião, afim de que elle visse bem que não eranada; mas, provavelmente, supporia a substituiçãodo papel. Maldito homem! murmurou. E começoua andar á toa.
Uma revoada de memorias entrou na alma deSophia. A imagem de Carlos Maria veiu postar-seante ella, com os seus grandes olhos de espectroquerido e aborrecido. Sophia quiz arredal-o, masnão pôde; elle acompanhava-a de um lado paraoutro, sem perder o tom esbelto e masculo, nemo ar de riso sublime. Ás vezes, via-o inclinar-se,articulando as mesmas palavras de certa noite debaile, que lhe custaram a ella horas de insomnia,dias de esperança, até que se perderam nairrealidade. Nunca Sophia comprehendera o mallogrodaquella aventura. O homem parecia querer-lhedeveras, e ninguem o obrigava a declaral-o tãoatrevidamente, nem a passar-lhe pelas janellas,alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou aindaoutros encontros, palavras furtadas, olhos calidos ecompridos, e não chegava a entender que todaessa paixão acabasse em nada. Provavelmente, nãohaveria nenhuma; puro galanteio;—quando muito,um modo de apurar as suas forças attractivas... Naturezade pelintra, de cynico, de futil.
Que lhe importava o mysterio? Era um sujeitofutil. Cresceu-lhe o nojo e o desdem. Chegou arir-se delle; podia encaral-o sem remorsos. E foiandando por alli fóra, vingando-se do bobo,—chamava-lhebobo,—e fitando no ar os olhos deimmaculada. Em verdade, era occupar-se de maiscom tal assumpto; começou a maldizer do Rubião,que evocára semelhante homem do esquecimento,por causa daquella triste circular... Depois, tornouás primeiras lembranças, ás palavras de CarlosMaria. Se todos a achavam bella, porque não aacharia elle, que lh'o disse? Talvez o tivesse a seuspés, se não se houvesse mostrado tão agradecida,tão rasteira...
De repente, a criada, que estava na outra sala,ouvindo rumor de alguma cousa que se quebrava,correu á de visitas, e viu a ama, sozinha,de pé.
—Não é nada, disse-lhe esta.
—Pareceu-me que ouvi...
Foi aquelle boneco que cahiu; apanhe oscacos.
—O chinez! exclamou a creada.
De feito, era um mandarim de porcellana, pobrediabo que estava muito quieto, em cima de umaestante. Sophia achou-se com elle entre os dedos,sem saber como, nem desde quando; ao cuidarna sua voluntaria humilhação, teve um impulso—pareceque raiva de si mesma,—e deu como boneco em terra. Pobre mandarim! não lhevaleu ser de porcellana; não lhe valeu siquer serdado pelo Palha.
—Mas, minha ama, como é que o chinez...
—Vá-se embora!
Sophia recordou todo o seu proceder diante deCarlos Maria, as acquiescencias faceis, os perdõesantecipados, os olhos com que o buscava, os apertos demão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aospés. Depois, o sentimento foi mudando. Apezar detudo, era natural que elle gostasse d'ella, e a conformidademoral de ambos não traria o abandono deum. Talvez a culpa fosse outra. Excavou razõespossiveis, algum gesto duro e frio, alguma faltade attenção para com elle; lembrou-se que, uma vez,por medo de o receber sosinha, mandou dizer que nãoestava em casa. Sim, podia ser isso. Carlos Mariaera orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Soubeque era mentira... Essa era a culpa.
...ou, mais propriamente, capitulo em que o leitor,desorientado, não póde combinar as tristezas deSophia com a anecdota do cocheiro. E perguntaconfuso:—Então a entrevista da rua da Harmonia,Sophia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonorase delinquentes é tudo calumnia? Calumnia do leitore do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiunomes, não chegou sequer a contar uma anecdotaverdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa.Sim, desgraçado, adverte bem que era inverosimilque um homem, indo a uma aventura daquellas,fizesse parar o tilbury deante da casa pactuada.Seria pôr uma testemunha ao crime. Ha entre oceu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tuaphilosophia,—ruas transversaes, onde o tilburypodia ficar esperando.
—Bem; o cocheiro não soube compôr. Mas queinteresse tinha em inventar a anecdota?
Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo,ficou quasi duas horas, sem o despedir; viu-o sair,entrar no tilbury, descer logo e vir a pé, ordenando-lheque o acompanhasse. Concluiu que era optimofreguez; mas, ainda assim não se lembrou de inventar nada.Passou, porém, uma senhora com ummenino,—a da rua da Saude,—e Rubião quedou-sea olhar para ella com vistas de amor e melancolia.Aqui é que o cocheiro o teve por lascivo, além de prodigo,e encommendou-lhe as suas prendas. Se fallouem rua da Harmonia foi por suggestão do bairrod'onde vinham; e, se disse que trouxera um moçoda rua dos Invalidos, é que naturalmente transportarade lá algum, na vespera,—talvez o proprioCarlos Maria,—ou porque lá morasse,—ou porquelá tivesse a cocheira,—qualquer outra circumstanciaque lhe ajudou a invenção, como as reminiscenciasdo dia servem de materia aos sonhos da noite. Nemtodos os cocheiros são imaginativos. Já é muitoconcertar farrapos da realidade.
Resta só a coincidencia de morar na rua da Harmoniauma das costureiras do luto. Aqui, sim, pareceum proposito do acaso. Mas a culpa é da costureira;não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade,se quizesse deixar a agulha e o marido. Ao contrariodisso, ama-os sobre todas as casas deste mundo.Não era razão, para que eu cortasse o episodio, ouinterrompesse o livro.
Das reflexões de Sophia é que não ha que explicar.Todas tinham o pé na verdade. Era certo ecertissimo que Carlos Maria não correspondera ásprimeiras esperanças,—nem ás segundas e terceiras,—porqueas houve em quadras diversas,ainda que menos verdes e bastas. Quanto á causadisso, vimos que Sophia, á mingua de uma, attribuiu-lhesuccessivamente tres. Não chegou a pensarem alguns amores que elle porventura trouxessee lhe tornassem insipidos quaesquer outros. Seriauma quarta causa, e talvez a verdadeira.
Durante alguns mezes, Rubião deixou de ir aoFlamengo. Não foi resolução facil de cumprir. Custou-lhemuita hesitação, muito arrependimento;mais de uma vez chegou a sair com o proposito devisitar Sophia e pedir-lhe perdão. De que? Nãosabia; mas queria ser perdoado. Em todas as tentativasdesse genero, a ideia de Carlos Maria fazia-orecuar. De certo ponto em diante, foi o propriolapso de tempo que o tolheu; era exquisito apparecerlá um dia, como um triste filho prodigo, unicamentepara supplicar o calor dos bellos olhos dadona da casa. Ia ao armazem, fallar ao Palha; este,ao fim de algumas semanas, reprochou-lhe a ausencia;e, passados dous mezes, perguntou-lhe seera formal proposito.
—Tenho tido muito que fazer, acudiu Rubião;estas cousas politicas tomam todo o tempo a umapessoa. Vou lá domingo.
Sophia apparelhou-se para recebel-o. Espiaria aoccasião de lhe dizer o que era a carta, jurando portodas as cousas santas, para que elle visse que averdade não era contra ella. Planos perdidos; Rubiãonão compareceu. Veiu outro domingo, vieramoutros domingos... Não obstante, Sophia remetteu-lheum dia a subscripção para as Alagoas; elle assignoucinco contos de réis.
—É muito, disse-lhe o socio, no armazem,quando elle lhe foi levar o papel.
—Não dou menos.
—Mas olhe que póde dar muito, sem dar tanto.Parece-lhe então que esta subscripção é feita entremeia duzia de pessoas? Anda nas mãos de muitassenhoras e de alguns homens; está nos mostradoresdas lojas, na praça do Commercio, etc. Assignemenos.
—Como, se está escripto?
—Deste 5 póde-se fazer muito bem um 3. Trescontos já é uma boa assignatura. Ha maiores, massão de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões;o Bomfim, por exemplo, assignou dez contos.
Rubião não pode reter um risinho ironico; abanoua cabeça, e não sahiu dos cinco contos. Só emendaria,escrevendo o algarismo 1 atraz,—quinze contos,—maisque o Bomfim.
—Seguramente, que pode dar cinco, dez e quinzecontos, tornou o Palha; mas o seu capital precisacautellas, voce está entrando muito por elle... Repareque já lhe rende menos.
Palha era agora o depositario dos titulos de Rubião(acções, apolices, escripturas) que estavam fechadosna burra do armazem. Cobrava-lhe os juros,os dividendos e os alugueis de tres casas, que lhefizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e quelhe rendiam muito, Guardava tambem uma porçãode moedas de ouro, porque Rubião tinha a maníade as collecionar, para a contemplação. Conheciamais que o dono, a somma total dos bens, e assistiaaos rombos feitos na caravella, sem temporal, marleite. Tres contos bastavam, insistiu elle; e provoua sinceridade pelo facto de ser justamente maridoda fundadora da commissão. Mas o Rubião não desistiudos cinco; aproveitou a occasião para pedir-lhemais dez; precisava de dez contos. Palha coçoua cabeça.
—Você desculpe, disse-lhe ao cabo de algunsinstantes, mas para que é que os quer? Não estácerto que vae perdel-os, ou arriscal-os, ao menos?
Rubião riu da objecção.
—Se eu estivesse certo de que os perdia, nãovinha buscal-os. Póde ser arriscado, mas não é semarriscar que se ganha. Preciso delles para um negocio,—querodizer, tres negocios. Dous são emprestimosseguros, e não passam de um conto equinhentos. Os oito contos e quinhentos são parauma empreza. Por que abana a cabeça, senão sabede que se trata?
—Por isso mesmo. Se você me consultasse, seme dissesse que empreza e que pessoas eram, euveria logo se podia arriscar-se; e receio muito quenada preste, a não ser o dinheiro que se perder.Lembra-se das acções daquella Companhia Uniãodos Capitaes Honestos? Disse-lhe logo quo este tituloera emphatico, um modo de embair a gente, edar emprego a sujeitos necessitados. Você não quizcrêr, e caiu. As acções estão por baixo, e já este semestrenão ha dividendos.
—Pois venda justamente essas acções, ainda aresto de barato. Contento-me com o solido. Ou entãodê-me da caixa da nossa casa... Passo logo por aqui,se você quizer,—ou mande-me lá a Botafogo. Caucioneumas apolices, se lhe parecer melhor...
—Não, não faço nada; não dou os dez contos,atalhou fogosamente o Palha. Basta de ceder a tudo;o meu dever é resistir. Emprestimos seguros? Queemprestimos são esses? Não vê que lhe levam o dinheiro,e não lhe pagam as dividas? Alguns sujeitosvão ao ponto de jantar diariamente com o propriocredor, como um tal Carneiro que lá vi algumasvezes. Dos outros não sei se lhe devem tambem algumacousa; é possivel que sim. Vejo que édemais. Fallo-lhe por ser amigo; não dirá algumdia que não foi avisado em tempo. De que hadeviver, se estragar o que possue? A nossa casa pódecair.
—Não cae, acudiu o Rubião.
—Póde cair; tudo póde cair. Eu vi cair o banqueiroSouto, em 1864.
Rubião remoia os conselhos do socio, não porserem bons nem provaveis, mas por achar nellesuma intenção maviosa, revestida de fórma crúa.Agradeceu-os de coração, mas rejeitou-os; precisavados dez contos. Podia ter mais tento, dalli emdeante, e affirmava-lhe que seria menos facil. Deresto, possuia de sobra, tinha dinheiro para dar evender...
—Para vender só, emendou o Palha.
E, depois de um instante:
—Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dezcontos. E porque os não hade ir buscar lá á nossacasa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ouque lhe fizeram ellas? porque a zanga parece sercom ellas, visto que o vejo aqui, algumas vezes. Quefoi, para castigal-as? concluiu rindo.
Rubião desviou os olhos do socio, cuja falla lheparecia afiada de ironia,—como de pessoa quesoubesse tudo, e risse delle. Quando lh'os tornou,viu o mesmo semblante interrogativo, e respondeu:
—Não me fizeram nada; lá irei amanha á noite.
—Vá jantar.
—Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa;vou de noite.—E querendo rir: Não as castigue,que não me fizeram nada.
—Alguem o possue, reflictiu Palha logo queelle saiu; alguem, por inveja as nossas relações... Tambempóde ser que Sophia lhe fizesse algumapara arredal-o de casa...
Rubião assomou outra vez á porta; não tiveratempo de chegar á esquina. Voltava para dizer que,precisando do dinheiro cedo, viria buscal-o ao armazem;de noite iria então visital-os. Precisava dodinheiro até ás duas horas da tarde.
Nessa noite, Rubião sonhou com Sophia e MariaBenedicta. Viu-as n'um grande terreiro, apenasvestidas de saia, costas inteiramente despidas; o maridode Sophia, armado de um azorrague de cincopontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-asdespiedadamente. Ellas gritavam, pediammisericordia, torciam-se, alagadas em sangue, ascarnes cahiam-lhes aos bocados. Agora, porquerazão Sophia era a imperatriz Eugenia, e Maria Benedictauma aia sua, é o que não sei dizer com exactidão.«São sonhos, sonhos, Penseroso!» exclamavaum personagem do nosso Alvares de Azevedo.Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabandode ouvir uma falla tresloucada de Hamlet:«Desvario embora, lá tem seu methodo». Tambemha methodo aqui, nessa mistura de Sophia e Eugenia;e ainda ha methodo no que se lhe seguiu, eque parece mais extravagante.
Sim, Rubião, indignado, mandou logo cessar ocastigo, enforcar o Palha e recolher as victimas.Uma dellas, Sophia, acceitou um lugar na carruagemaberta que esperava pelo Rubião, e lá forama galope, ella garrida e sã, elle glorioso e dominador.Os cavallos, que eram dous á sahida, eramdahi a pouco, oito, quatro bellas parelhas. Ruas ejanellas cheias de gente, flores cahindo em cimadelles, acclamações... Rubião sentiu que era oimperador Luiz Napoleão; o cachorro ia no carroaos pés de Sophia...
Tudo acabou sem fim, nem fracasso, Rubiãoabriu os olhos; talvez alguma pulga o mordeu;qualquer cousa: «Sonhos, sonhos, Penseroso!»Ainda agora prefiro o dito de Polonius: «Desvarioembora, lá tem seu methodo!»
Rubião fez os dous emprestimos e o negocio. O negocioera uma Empreza Melhoradora dos Embarquese Desembarques no porto do Rio de Janeiro. Umdos emprestimos tinha por fim pagar certa contaatrazada de papel daAtalaia, divida urgente. A folhaestava ameaçada de parar.
—Perfeitamente, disse Camacho, quando Rubiãolhe foi levar o dinheiro á casa. Muito obrigado.Veja você como, por uma miseria desta ordem, podiaemmudecer o nosso orgão. São os espinhos naturaesda carreira. O povo não está educado; não reconhece,não apoia os que trabalham por elle, os que descemá arena todos os dias em defeza das liberdades constitutionaes.Imagine, que, de momento, não dispunhamosdeste dinheiro, tudo estava perdido, cada umia para os seus negocios, e as sãs ideias ficavam semo seu leal expositor.
—Nunca! protestou Rubião.
—Tem razão; redobraremos de esforços. AAtalaiaserá como o Antheu da fabula. De cada vez quecair, erguer-se-ha com mais vida.
Dito isto, Camacho mirou o maço de notas. Umconto e duzentos, não? perguntou; e metteu-o nobolso do fraque. Continuou a dizer que estavamseguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinhaalgumas reformas materiaes em vista; foi aindamais longe.
—Precisamos desenvolver o programma, adeantaras ideias, dar um empurrão aos correligionarios,atacal-os, se fôr preciso...
—Como?
—Ora, como? atacando. Atacar é um modo dedizer; corrigir. É evidente que o orgão do partidoestá afrouxando. Chamo orgão do partido, porque anossa folha é orgão das ideias do partido; comprehendea differença?
—Comprehendo.
—Vai afrouxando, continuou Camacho apertandoum charuto entre os dedos, antes de o accender; enós precisamos de accentuar os principios, mas francamente,nobremente, dizendo a verdade. Creia queos chefes precisam ouvil-a a seus proprios amigos eadherentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos,pugnei por ella, e a ideia fundamental daAtalaia foi a principio um terreno neutro. Mas conciliaçãonão é jogo de empulha. Para lhe dar umexemplo, na minha provincia a gente dos Pinheirostem o apoio do governo, unicamente para me deslocar;e os meus correligionarios da Corte, em vez dea combater, visto que o governo lhe dá força, quepensa que fazem? Dão tambem apoio aos Pinheiros.
—Têm ao menos alguma influencia os Pinheiros?
—Nenhuma, respondeu Camacho fechando violentamentea caixa de phosphoros que ia a abrir.Ha um réo de policia entre elles, e ha outro que atéfoi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade,na Faculdade do Recife, creio que em 1855, pormorte do padrinho que lhe deixou alguma cousa,mas tal é o escandalo da carreira desse homem que,logo depois de receber o diploma de bacharel, entrouna assembléa provincial. É uma besta; é tão bacharelcomo eu sou papa.
Entenderam-se sobre as modificações politicas dafolha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidaturadeste naufragara por causa justamente da opposiçãodos chefes. De alguns, emendou logo. Rubiãoconcordou; assim lh'o tinha dito o amigo em tempo,e a lembrança avivou o resentimento do desastre.Podia, devia estar na camara. Os taes é que o nãoquizeram; mas haviam de ver, pensava Rubiãotinham de amargar o mal feito. Deputado, senadorministro, vel-o-hiam tudo, com olhos tortos e espantados.A cabeça do nosso amigo, tanto que o outrolhe pôz a faisca, foi ardendo de si mesma, não porodio, nem inveja, mas de ambição ingenua, de cordialcerteza, visão antecipada e deslumbrante dascousas. Camacho estimou achal-o de accordo.
—A nossa gente é de egual opinião, disse elle.Creio que não faz mal uma pequena ameaça aosamigos.
Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertiao partido da conveniencia de não ceder ásperfidias do poder, apoiando em algumas provinciascerta gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:
«Os partidos devem ser unidos e disciplinados.Ha quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplinae união não podem ir ao ponto de rejeitar osbeneficios que caem das mãos dos adversarios.Risum teneatis! Quem póde proferir tal blasphemiasem que lhe tremam as carnes? Mas supponhamosque assim seja, que a opposição possa, umaou outra vez, fechar os olhos aos desmandos dogoverno, á postergação das leis, aos excessos da autoridade,á perversidade e aos sophismas.Quid inde?Taes casos,—aliás, raros,—só podiam ser admittidosquando favorecessem os elementos bons, não osmáos. Cada partido tem os seus discolos e sycophantas.É interesse dos nossos adversarios ver-nosafrouxar, a troco da animação dada á parte corruptado partido. Esta é a verdade; negal-o é provocar-nosá guerra intestina, isto é (horresco referens!), ádilaceração da alma nacional... Mas, não, as ideiasnão morrem; ellas são o labaro da justiça. Os vendilhõesserão expulsos do templo; ficarão os crentese os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos,locaes e passageiros a victoria indefectiveldos principios Tudo que não for isto ter-nos-hacontra si. «Alea jacta est.»
Rubião applaudiu o artigo; achava-o excellente.Talvez pouco energico.Vendilhões, por exemplo,era bem dito; mas ficava melhorvis vendilhões.
—Vis vendilhões? Ha só um inconveniente,ponderou Camacho. É a repetição dosvv. Vis ven...Vis vendilhões; não sente que o sem fica desagradavel?
—Mas lá em cima havés vis...
—Vae victis. Mas é uma phrase latina. Podemosarranjar outra cousa: vis mercadores.
—Vis mercadores é bom.
—Comtudo,mercadores não tem a força devendilhões.
—Então, porque não deixa vendilhões? Vis vendilhõesé forte; ninguem repara no som. Olhe, eununca dou por isso. Gósto de energia. Vis vendilhões.
—Vis vendilhões, vis vendilhões, repetiu Camacho,á meia voz. Já estou achando melhor. Visvendilhões. Acceito, concluiu emendando. E releu:«Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarãoos crentes e os puros, os que põem acima dos interessesmesquinhos, locaes e passageiros a victoriaindefectivel dos principios. Tudo que não fôr istoter-nos-ha contra si.Alea jacta est.»
—Muito bem! disse Rubião, sentindo-se algumtanto autor do artigo.
—Parece-lhe bem? perguntou Camacho, sorrindo.Ha pessoas que ainda me acham no estylo afrescura do meu tempo de estudante. Não sei, nãodigo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei decastigal-os; havemos de castigal-os.
Aqui é que eu quizera ter dado a este livro omethodo de tantos outros,—velhos todos,—emque a materia do capitulo era posta no summario:«De como aconteceu isto assim, e, mais assim».Ahi está Bernardim Ribeiro; ahi estão outros livrosgloriosos. Das linguas extranhas, sem querer subira Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fieldinge Smollet, muitos capitulos dos quaes só pelo summarioestão lidos. Pegai emTom Jones, livro IV,cap. I, lêde este titulo:Contendo cinco folhas depapel. É claro, é simples, não engana a ninguem;são cinco folhas, mais nada, quem não quer não lê, equem quer lê, para os ultimos é que o autor conclueobsequiosamente: «E agora, sem mais prefacio,vamos ao seguinte capitulo».
Se tal fosse o methodo deste livro, eis aqui umtitulo que explicaria tudo: «De como Rubião, satisfeitoda emenda feita no artigo, tantas phrasescompoz e ruminou, que acabou por escrever todos oslivros que lêra».
Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse.Naturalmente, quereria toda a analyse da operaçãomental do nosso homem, sem advertir que, paratanto, não chegariam as cinco folhas de papel deFielding. Ha um abysmo entre a primeira phrasede que Rubião era co-autor até a autoria de todas asobras lidas por elle; é certo que o que mais lhecustou foi ir da phrase ao primeiro livro;—desteem diante a carreira fez-se rapida. Não importa; aanalyse seria ainda assim longa e fastiosa. O melhorde tudo é deixar só isto; durante alguns minutos,Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.
Ao contrario, não sei se o capitulo que se segue poderiaestar todo no titulo.
Rubião foi mantendo o proposito de não tornara ver Sophia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-aum dia passar de carro, com uma das damas da commissãodas Alagoas; ella inclinou-se risonha, dizendo-lheadeus com a mão. Elle retribuiu o comprimento,tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço,mas não ficou parado como lhe aconteceria d'antes;apenas lançou um olhar ao carro que ia andando.Tambem elle foi andando,—e pensando no lanceda carta, não comprehendendo aquelle gesto de mão,sem odio nem vexame,—como se nada houvesseentre elles. Podia ser que o serviço da commissãoe a companheira que levava explicassem a benevolenciagraciosa de Sophia; mas Rubião não cogitoudesta hypothese.
—Estará assim tão falta de brio? perguntavaelle. Pois não se lembra da carta que achei, mandadapor ella ao tal gamenho da rua dos Invalidos? Émuito; é de mais. Parece um desafio, um modo dedizer que não faz caso, que escreverá todas as cartasque quizer. Que as escreva, mas gaste algum dinheiroem registral-as no correio; é barato...
Achou algum pico em si mesmo e riu-se. Isto,e um homem que passou rasgando-lhe uma cortezia,tiraram-lhe o amargor das saudades, e elle esqueceuo assumpto, para cuidar de outro, que o levava aoBanco do Brazil.
Ao entrar no Banco esbarrou com o socio, quesabia.
—Creio que vi agora D. Sophia, disse-lhe Rubião.
—Onde?
—Na rua dos Ourives; ia de carro, com outrasenhora, que não conheço. Como tem você passado?
—Viu-a, e não se lembrou de nada, observouPalha, sem responder á pergunta. Não se lembrouque ella faz annos, quarta-feira, depois de amanhã.Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto, seriaconvidal-o a aborrecer-se; mas uma chicara de chábebe-se depressa. Faz-me esse favor?
Rubião não respondeu logo.
—Vou até jantar, disse finalmente. Quarta-feira?Conte commigo. Tinha-me esquecido, confesso;mas ando com tanta cousa na cabeça... Esperepor mim daqui a meia hora, no armazem.
Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe douscontos de reis. Palha ja não resistia ao desmoronamentodo capital; e, se uma ou outra vez, diziaalguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe odinheiro com indifferença. Rubião não tornou acasa sem comprar um magnifico diamante, que naquarta-feira, enviou a Sophia, acompanhado de umbilhete de visita, e duas palavras de felicitação.
Sophia estava só, no quarto de vestir, calçando ossapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Erao terceiro presente do dia; a criada esperou que ellao abrisse para ver tambem o que era. Sophia ficoudeslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a ricajoia,—uma bella pedra, no centro de um collar.Esperava alguma cousa bonita; mas, depois dosultimos successos, mal podia crer que elle fosse tãogeneroso. Batia-lhe o coração.
—O portador está ahi?
—Já foi. Que cousa rica, minha ama!
Sophia fechou a caixa, e acabou de calçar-se.Deteve-se algum tempo, sentada, sosinha, recordandocousas idas, e levantou-se pensando:
—Aquelle homem adora-me.
Tratou de vestir-se; mas, ao passar por deante doespelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-sena contemplação de si mesma, das suas ricasformas, dos braços nus de cima a baixo, dos propriosolhos contempladores. Fazia vinte e nove annos, achavaque era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava.Cingido e apertado o collete, deante do espelho,accommodou os seios com amor, e deixou espraiar-seo collo magnifico. Lembrou-se então de ver como lheficava o diamante; tirou o collar e pol-o ao pescoço.Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita evice-versa, approximou-se, affastou-se, augmentou aluz do camarim; perfeito. Fechou a joia e guardou-a.
—Aquelle homem adora-me, repetiu.
—Provavelmente, elle lá estará, pensou Rubiãoindo jantar ao Flamengo; duvido que tenha dadomelhor presente que eu.
Carlos Maria lá estava, effectivamente, conversando,entre uma das commissarias das Alagoas,e Maria Benedicta. Poucos eram os convivas;houve proposito em escolher e limitar. Não estavaalli o major Sequeira, nem a filha, nem as senhorase os homens que Rubião conheceu naquelle outrojantar de Santa Thereza. Da commissão das Alagoasviam-se algumas damas; via-se mais o director dobanco,—o da visita ao ministro,—com a senhorae as filhas,—outro personagem bancario,—umcommerciante inglez, um deputado, um desembargador,um conselheiro, alguns capitalistas, e poucomais.
Posto que evidentemente gloriosa, Sophia esqueceupor um instante os outros, quando viuRubião entrar na sala e caminhar para ella. Oumudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passofirme, cabeça levantada, o avêsso, em summa, do antigogesto encolhido e diminuto. Sophia apertou-lhea mão com força e sussurrou um agradecimento.Á mesa fel-o sentar ao pé de si, tendo do outro ladoa presidente da commissão. Rubião olhava superiormentepara tudo. A qualidade dos convivas nãolhe produziu impressão, nem o ar ceremonioso, nemo luxo da mesa, nem o da farda dos creados, barbeadosde fresco, abotoados até á gravata branca, e trazendonos botões estas duas letras C.P. Nada disso odeslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sophia,embora lhe fosse agradavel, não o tonteava, comooutrora. E da parte della era mais apurada a attenção,e os olhos excepcionalmente meigos e serviçaes.Rubião procurou Carlos Maria; lá estava entre asmesmas moças da sala,—Maria Benedicta e a commissariadas Alagoas. Verificou que só se occupavacom ellas, não olhava para Sophia, nem esta paraelle.
—Talvez disfarcem, pensou.
Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavamum olhar,—mas o movimento geral dareunião podia illudil-o, e Rubião não fez maior cabedalda observação. Sophia dera-se pressa em tomar-lheo braço. De caminho, disse-lhe ella:
—Tenho esperado pelo senhor desde aquelle dia,e nunca mais veiu aqui. Era meu direito exigil-o,para explicar-me. Logo fallaremos.
Rubião foi dahi a pouco para o gabinete dosfumantes, onde se fallava de politica e voltarete.Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando osoutros sahiram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinadoem um sophá de couro, sem pensar. A imaginaçãoé que fazia o seu officio, um tanto pachorrenta,agora,—talvez porque elle tivesse comidomuito. Lá fóra iam entrando os convidados da noite;enchia-se a casa, crescia o borborinho da conversação,sem que o nosso amigo descesse dos seusbellos sonhos. O proprio som do piano, que fez calartodos os rumores, não o attrahiu á terra. Mas umfarfalhar de sedas, entrando no gabinete, fel-o erguer-sedo golpe, accordado.
—Ahi está, disse Sophia, recolhe-se aqui para fugirao aborrecimento; nem quer ouvir boa musica.Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor.
E sem mais demora, porque não podia perder umminuto, referiu-lhe o que sabemos da carta achadano jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de aabrir, pedira-lhe que elle mesmo a abrisse e lesse.Que melhor prova de innocencia? A palavra sahia-lherapida, seria, digna e commovida. Occasiãohouve em que os olhos se lhe tornaram humidos; ellaenxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhena mão, e viu ainda uma lagryma,—uma pequenalagryma,—escorregar até o canto da bocca. Jurouentão que sim, acreditava em tudo. Que idéaaquella de chorar? Sophia enxugou ainda os olhos,e estendeu-lhe a mão agradecida.
—Até já, disse ella.
O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circumstancia.Emquanto ouviam tocar, não viriamter com elles.
—Mas eu é que não posso estar ausente tantotempo, acudiu Sophia. Demais, tenho ordens quedar. Até já.
—Olhe, escute, insistiu Rubião.
Sophia parou.
—Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pelaultima vez...
—Pela ultima vez?
—Quem sabe? Pode ser que ultima. Importa-mepouco que esse homem viva ou não, mas possoachal-o aqui alguma vez, e não me sinto disposto abrigar.
—Hade encontral-o todos os dias. Christianoainda lhe não disse o que ha? Vae casar com MariaBenedicta.
Rubião deu um passo para traz.
—Casam-se, continuou ella. O facto é de admirar,porque surgiu quando menos contavamos com isto;—oueram muito fingidos,—ou foi cousa que lhes deude repente. Casam-se. Maria Benedicta contou-meuma historia, que me foi confirmada por outra pessoa;mas, afinal, a historia é sempre a mesma. Gostaramum do outro, e adeus. Casam-se brevemente. Quandoelle fallou a Christiano, Christiano respondeu quedependia de mim... Como se fosse mãe d'ella! Consentílogo, e desejo que sejam felizes. Elle parecebom rapaz; ella é excellente creatura; hão de serfelizes, por força. E bom negocio, sabe? Elle está deposse de todos os bens do pae e da mãe. Maria Benedictanão tem nada, em dinheiro; mas tem aeducação que lhe dei. Hade lembrar-se que, quandoveiu para minha companhia, era um bicho do matto;não sabia quasi nada; fui eu que a eduquei. Minhatia merecia tudo, e ella tambem. Pois, é verdade, casam-semuito breve. Não os viu hoje sempre juntos?Não ha ainda participação official; mas os intimosda familia podem saber. Casam-se, é verdade...
Para quem tinha tanta pressa, eis ahi um discursodemasiado comprido. Sophia deu por isso umpouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, quefosse para a sala. O piano acabara; ouvia-se umborborinho discreto de applauso e conversação.
Iam casar? Mas como é então que...? MariaBenedicta,—era Maria Benedicta que casava comCarlos Maria; mas então Carlos Maria... Comprehendiaagora; era tudo engano, confusão; o queparecia ser com uma pessoa era com outra, e ahiestá como a gente póde chegar á calumnia e ao crime.
Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala dejantar, onde os copeiros adereçavam a mesa da ceia.E continuou, andando ao comprido da sala: «—Oravejam! E o Palha queria justamente casar-mecom a prima, mal sabendo que o destino lhe guardavaoutro noivo. Não é feio rapaz; é muito maisbonito que ella. Ao pé de Sophia, Maria Benedictavale pouco ou nada; mas a sympathia éassim mesmo... Casam-se, e breve... Será de estrondoo casamento? Deve ser; o Palha vive agoraum pouco melhor...»—e Rubião lançava os olhosaos moveis, porcellanas, cristaes, reposteiros. «—Hadeser de estrondo. E depois o noivo é rico...» Rubiãopensou na carruagem e nos cavallos quelevaria; tinha visto uma parelha soberba, no EngenhoVelho, dias antes, que estava mesmo ao pintar.Ia fazer a encommenda de outra assim, fosse por quepreço fosse; tinha tambem de presentear a noiva.Ao pensar nella viu-a entrar na sala.
—Prima Sophia onde está? perguntou ella aoRubião.
—Não sei; esteve aqui ha pouco.
E, como a visse disposta a ir adeante, pediu-lheuma palavra, e que se não zangasse. Maria Benedictaesperou; elle, sem hesitação, deu-lhe os parabens.Sabia que ia casar... Maria Benedicta ficoumuito vermelha, e murmurou alguma cousa parecidacom um pedido de não divulgar nada. Não haviaentão nenhum creado alli; Rubião pegou-lhe namão e fechou-a entre as suas.
—Eu sou da casa, disse; a senhora merece serfeliz, e espero que seja.
Um pouco assustada, Maria Benedicta puxou amão e libertou-a; mas, para o não aborrecer, sorriu.Não era preciso tanto; elle estava encantado. Sabemosque a moça não era bonita. Pois estavalinda, á força de felicidade. A natureza pareciahaver posto nella as suas mais finas ideias. Sorrindoegualmente, Rubião fallou-lhe como se fosse seu pae:
—Foi sua prima que me disse; recommendou-mesegredo. Não direi nada antes do tempo. Masque tem que diga á senhora? A senhora é boa e merecetudo. Não é preciso esconder os olhos; casarnão é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria.
Maria Benedicta poz nelle os olhos radiantes.
—Isso! applaudiu Rubião. Que mal ha em confessar-sea um amigo? Deixe-me dizer-lhe a verdade;creio que a senhora será feliz, mas admittoque elle ainda será mais feliz. Não? Verá se nãofallo verdade; elle mesmo lhe hade dizer o quesentir, e, se fôr sincero, a senhora reconhecerá queeu estou apenas prophetisando. Bem sei que nãotem balança para medir os sentimentos; emfim, oque eu quero dizer é que a senhora é uma linda eboa creatura... Vá, vá-se embora; se não, fico dizendoverdades, e a senhora está corando muito...
De facto, Maria Benedicta corava de gosto, ouvindoa linguagem de Rubião. Em casa, achára acquiescencia,nada mais. O proprio Carlos Maria nãoera assim terno; gostava della com circumspecção.Fallava-lhe da felicidade conjugal, como de umataxa que ia receber do destino,—pagamento devido,integral e certo. Tambem não era preciso que lhefallasse de outro modo, para que ella o adorasse sobretodas as cousas deste mundo. Rubião repetiu a despedida,e ficou a olhar para ella, como para umafilha. Viu-a ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita,—tãodiversa do que a achára em outrostempos, e desapparecer por uma das portas. Nãopode reter esta palavra:
—Linda e boa creatura!
A historia do casamento de Maria Benedicta écurta; e, posto Sophia a ache vulgar, vale a penadizel-a. Fique desde já admittido que, senão fosse aepidemia das Alagoas, talvez não chegasse a havercasamento; donde se conclue que as catastrophessão uteis, e até necessarias. Sobejam exemplos; masbasta um contosinho que ouvi em creança, e queaqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez umachoupana que ardia na estrada; a dona,—umtriste molambo de mulher,—chorava o seu desastre,a poucos passos, sentada no chão. Senão quando,indo a passar um homem ebrio, viu o incendio, viua mulher, perguntou-lhe se a casa era della.
—É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eupossuia n'este mundo.
—Dá-me então licença que accenda alli o meucharuto?
O padre que me contou isto certamente emendouo texto original; não é preciso estar embriagadopara accender um charuto nas miserias alheias. Bompadre Chagas!—Chamava-se Chagas.—Padre maisque bom, que assim me incutiste por muitos annosessa ideia consoladora, de que ninguem, em seujuizo, faz render o mal dos outros; não contandoo respeito que aquelle bebado tinha ao principioda propriedade,—a ponto de não accender o charutosem pedir licença á dona das ruinas. Tudo ideiasconsoladoras. Bom padre Chagas!
Adeus, padre Chagas! Vou á historia do casamento.Que Maria Benedicta gostava de CarlosMaria, é cousa vista ou presentida desde aquelle baileda rua dos Arcos, em que elle e Sophia valsaramtanto. Vimol-a na manhã seguinte, prompta a ir paraa roça; a prima apaziguou-a com a promessa de quelhe estava arranjando um noivo. Maria Benedictacuidou que era o valsista da vespera, e ficou esperando.Não lhe confessou nada,—por vergonha, aprincipio,—e depois, por lhe não fazer perder oeffeito da novidade, quando Sophia houvesse de descobriro nome da pessoa. Se fallasse desde logo, podiaacontecer tambem que a outra affrouxasse na tarefa,e lá se perdia a causa. Não façamos caso disto;são pequenos calculos de moça.
Sobreveiu a epidemia das Alagoas. Sophia organisoua commissão, que trouxe novas relações áfamilia Palha. Incluida entre as senhoras que formavamuma das sub-commissões, Maria Benedictatrabalhou com todas, mas grangeou em especial aestima de uma dellas, D. Fernanda, esposa de umdeputado. D. Fernanda tinha pouco mais de trintaannos, era jovial, expansiva, corada e robusta; nasceraem Porto Alegre, casara com um bacharel dasAlagoas, deputado agora por outra provincia, e,segundo corria, prestes a ser ministro de Estado.A naturalidade do marido foi o pretexto para mettel-ana commissão; e bem acertado foi, porque ellapedia como quem manda, não tinha acanhamentonem admittia recusa. Carlos Maria, que era seuprimo, foi visital-a logo que ella chegou ao Rio deJaneiro. Achou-a mais formosa ainda que em 1865,ultimo anno em que a vira, e talvez fosse verdade;concluiu que o ar do sul era feito para enrijar aspessoas, duplicar-lhe as graças, e prometteu ir láacabar os seus dias.
—Vamos para lá, que lhe arranjarei casamento,disse ella. Conheço uma moça de Pelotas, que éumbijou, e só casa com moço da Côrte.
—Commigo, naturalmente?
—Da Côrte e de olhos grandes. Olhe que nãoestou brincando. É uma guasca de primeira ordem.Tenho aqui o retrato della.
D. Fernanda abriu o album e mostrou o retratoda pessoa.
—Não é feia, concordou elle.
—Só?
—Sim, é bonita.
—Onde é que você bota os seus chinellos velhos,primo?
Carlos Maria sorriu sem responder; não gostouda expressão. Quiz passar a outro assumpto, masD. Fernanda tornou ao casamento da amiga dePelotas. Mirava o retrato, coloria-o de palavra,dizendo como eram os olhos, os cabellos, a tez; edepois fez uma pequena biographia de Sonora.Tinha este bonito nome. O padre que a baptisou,hesitou em dar-lh'o, apezar do respeito e influenciado pae da menina, rico estancieiro; mas, afinalcedeu, considerando que as virtudes da pessoa podiamlevar o nome ao rol dos santos.
—Crê que ella vá ao rol dos santos? perguntouCarlos Maria.
—Se casar com você, creio.
—Não me explica nada; casando com o diabosuccederá a mesma cousa, e com mais certeza, porcausa do martyrio. Santa Sonora, não é feio nome,responde bem ao sentido. Santa Sonora... Em todocaso, prima...
—Você tem raça de judeu; cale-se, interrompeuella. Recusa então a minha guasca? continuou indopôr o album no seu logar.
—Não recuso; deixe-me ir indo com o meu celibato,que é meio caminho do ceu.
D. Fernanda soltou uma gargalhada.
—Deus de misericordia! Você acredita mesmoque vae para o ceu?
—Já cá estou, ha vinte minutos. Pois que éesta sala, tranquilla, fresca, tão longe da gente queanda lá fóra? Aqui conversamos os dous, sem ouvirblasphemias, sem aturar espiritos aleijados, tisicos,escrophulosos, insupportaveis, o proprio inferno, emsumma. Aqui é o ceu,—ou um pedaço do ceu;uma vez que nós cabemos nelle, vale pelo infinito.Conversamos de Santa Sonora, de S. Carlos Maria ede Santa Fernanda, que, para contrastar com S. Gonçalo,fez-se casamenteira das moças. Onde é que haoutro ceu como este?
—Em Pelotas.
—Pelotas fica tão longe! suspirou elle estendendoas pernas e pondo os olhos no lustre da sala.
—Está bom, é só a primeira investida; dareioutras, até você acabar de querer.
Carlos Maria sorriu e olhou para as borlas cahidasdo cordão de seda que ella trazia á cintura,atado por um laço frouxo; ou para ver as borlas,ou para notar a gentileza do corpo. Viu bem, aindauma vez, que a prima era uma bella creatura. Aplastica levou-lhe os olhos,—o respeito os desviou;mas, não foi só a amizade que o fez demorar aindaalli, e o trouxe novamente áquella casa. Carlos Mariaamava a conversação das mulheres, tanto quanto,em geral, aborrecia a dos homens. Achava os homensdeclamadores, grosseiros, cançativos, pesados,frivolos, chulos, triviaes. As mulheres, ao contrario,não eram grosseiras, nem declamadoras, nem pesadas.A vaidade nellas ficava bem, e alguns defeitosnão lhes iam mal; tinham, ao demais, a graçae a meiguice do sexo. Das mais insignificantes, pensavaelle, ha sempre alguma cousa que extrahir.Quando as achava insipidas ou estupidas, tinha parasi que eram homens mal acabados.
Entretanto, as relações de D. Fernanda e MariaBenedicta iam-se estreitando. Esta, além de acanhada,andava triste por aquelle tempo; foi justamentea disparidade de caracter e de situação queas prendeu uma á outra. D. Fernanda possuia, emlarga escala, a qualidade da sympathia; amava osfracos e os tristes, pela necessidade de os fazer ledose corajosos. Contavam-se della muitos actos de piedadee dedicação.
—A senhora que tem? perguntou ella um diaá amiguinha. Quasi nunca ri, anda sempre com osolhos espantados, pensando...
Maria Benedicta, respondeu que não tinha nada,que era o seu modo; e sorria dizendo isto, por simplescondescendencia. Fallou tambem na perda damãe, como uma das causas de suas melancolias.D. Fernanda entrou a leval-a a toda parte, a trazel-apara jantar, a dar-lhe logar no camarote, se ia aotheatro; e graças a isso, e ao seu genio galhofeiro,sacudiu da alma da moça os corvos aborrecidos quelá avoejavam. Costume e affeição depressa as fizeramintimas. Não obstante, Maria Benedicta continuou acalar o seu mysterio.
—Seja qual fôr o mysterio, pensou um diaD. Fernanda, acho que o melhor é casal-a com oCarlos Maria; a Sonora que espere.
—Você precisa casar, Maria Benedicta, disse-lhedalli a dous dias, da manhã, na chacara, em Matta-cavallos;Maria Benedicta tinha ido ao theatro comella, e passára lá a noite.—Não quero estremecimentos;precisa casar e hade casar... Desde antehontemque estou para lhe dizer isto, mas estas cousasfalladas em sala ou na rua, não tem força. Aquina chacara é differente. E se você tem animo detrepar commigo um pedaço do morro, então é queficaremos hem. Vamos?
—Está fazendo calor...
—É mais poetico, menina. Ah! carioca semsangue! Vocês só tem agua nas veias. Pois fiquemosaqui neste banco. Sente-se; assim, eu fico aquiao pé, armada, para tudo. Casa ou morre. Não mereplique. Você não é feliz,—continuou mudando otom; por mais que faça, eu vejo que você passa avida sem gosto. Venha cá, diga-me com franqueza,tem inclinação a alguem? Se tem, confesse, queeu mando procurar a pessoa.
—Não tenho.
—Não? Pois é justamente o que nos serve. Nãoprecisa pôr escriptos no coração; conheço um bominquilino.
Maria Benedicta voltou-se de todo para ella, comos labios entreabertos e os olhos escancarados. Pareciareceiar da proposta ou anciar por ella. D. Fernanda,não atinando com o verdadeiro estado daamiga, pegou-lhe na mão primeiro, e pediu que lhedissesse tudo. De força que amava a alguem, eraclaro, via-se-lhe nos olhos, cumpria confessal-o,instava, rogava,—intimaria, se preciso fosse. Amão de Maria Benedicta esfriara, os olhos cavavamo chão, e, por alguns instantes, nenhuma dellasdisse nada.
—Vamos, falle, repetiu D. Fernanda.
—Não tenho que dizer.
D. Fernanda fazia gestos de incredulidade; apertava-acada vez mais, passou-lhe a mão pela cintura,e ligou-a muito a si; disse-lhe baixinho, dentrodo ouvido, que era como se fosse sua propriamãe. E beijava-a na face, na orelha, na nuca, encostava-lhea cabeça ao hombro, acarinhava-a coma outra mão. Tudo, tudo, queria saber tudo. Seo namorado estava na lua, mandaria buscal-o á lua,—fosseonde fosse,—excepto no cemiterio; mas,se estivesse no cemiterio, dar-lhe-hia outro muitomelhor, que faria esquecer o primeiro em poucosdias. Maria Benedicta ouvia agitada, palpitante,não sabendo por onde escapasse,—prestes a fallar,e calando a tempo, como se defendesse o seu pudor.Não negava, não confessava,—mas, como tambemnão sorria, e tremia de commoção, era facil adivinharmeia verdade, ao menos.
—Mas então não sou sua amiga, não tem confiançaem mim? Faça de conta que sou suamãe.
Maria Benedicta pouco mais resistiu; gastára asforças e sentia a necessidade de revellar algumacousa. D. Fernanda escutou-a commovida. O solvinha já lambendo as cercanias do banco, não tardouque lhes trepasse aos sapatos, á barra dos vestidos eaos joelhos; mas nenhuma deu por elle. O amor asabsorvia; a exposição de uma tinha para a outra umenlevo raro. Era uma paixão não sabida, não compartida,não adivinhada; paixão que ia perdendo deindole e de especie para se converter em adoraçãopura. A principio, quando ella via a pessoa amada,passava por dous estados mui diversos,—um quenão podia definir, alvoroço, tonteira, pancadas nocoração, quasi um desmaio; o segundo era de contemplação.Agora era quasi que só este. Tinha choradomuito, comsigo, perdera noites e noites de saudades;pagou caro a ambição das suas esperanças.Mas não perderia nunca a certeza de que elle erasuperior a todos os demais homens, um ente divino,que, ainda não fazendo caso della, mereceria sempreser adorado.
—Bem, disse D. Fernanda, quando a amiga secalou de todo. Vamos ao essencial, que é não ficarpenando á tôa. Não, queridinha, isto de adorar a umhomem que não faz caso da gente, é poesia. Deixe-sede poesia. Olhe que só você perde no negocio, porque elle casa com outra, os annos passam, a paixãomonta na garupa delles, e um dia, quando vocêmenos pensar, accorda sem amor nem marido. Equem é esse barbaro?
—Isso não digo, respondeu Maria Benedicta, levantando-sedo banco.
—Pois não diga, acudiu D. Fernanda, pegando-lhenos pulsos e fazendo-a sentar nos seus joelhos.A questão principal é casar;—não podendo sercom esse, será com outro.
—Não, não caso.
—Só com elle?
—Nem sei se com elle, respondeu Maria Benedicta,depois de alguns instantes. Gósto delle, comogósto de Deus, que está no ceu.
—Virgem Santissima! Que blasphemia! Duasblasphemias, menina; a primeira é que não se deveamar a ninguem como a Deus,—a segunda é queum marido, ainda sendo máo, sempre é melhor queo melhor dos sonhos.
«Um marido, ainda máo, é sempre melhor que omelhor dos sonhos.»
A maxima não era idealista; Maria Benedictaprotestou contra ella. Pois não era melhor sonhar quechorar? Os sonhos acabam ou alteram-se, emquantoque os máos maridos podem viver muito.—«A senhorafalla assim, concluiu Maria Benedicta, porqueDeus lhe destinou um anjo... Olhe, lá vem elle.»
—Deixe estar que hade ter tambem o seu anjo;conheço um magnifico para você; todos os anjos meprocuram.
Theophilo, marido de D. Fernanda, que as vira adistancia, veiu ter com ellas; trazia na mão um diarioamarrotado. Não saudou a hospede; foi direitoá mulher.
—Você quer saber o que me fizeram, Nannan?disse elle com os dentes cerrados. Sahiu hoje o meudiscurso do dia 5. Veja esta phrase; eu tinha dito:Na duvida abstem-te, é o conselho do sabio. E puzeram:Na divida obstem-te... É insuportavel!Nota que tratava-se justamente de um credito doministerio da marinha, allegando-se no debate quemuitas despezas estavam feitas. De modo que podeparecer chulice da minha parte; é como se aconselhasseo calote. Em todo caso, é disparate.
—Mas você não leu as provas?
—Li, mas o autor é o menos apto para as lerbem.Na divida abstem-te, continuou elle com osolhos na folha. E bufando:—Isto só com...
Estava consternado. Era homem de talento, degravidade e de trabalho; mas, naquelle instante,todas as grandes obras, os mais temerosos problemas,as batalhas mais decisivas, as revoluções maisprofundas, o sol e a lua, e todas as constellações, etodas as alimarias, e todas as gerações humanas, valiammenos que a troca de umu por umi. MariaBenedicta olhava para elle sem entendel-o. Cuidavapadecer a maior tristura; mas alli estava outra tãogrande como a sua, e muito mais afflictiva. Assim,a melancolia roaz de uma pobre creatura era tantocomo um erro typographico. Theophilo, que só entãodeu por ella, estendeu-lhe a mão; estava fria. Ninguemfinge as mãos frias; devia padecer deveras.Instantes depois, atirou a folha ao chão, com umgesto violento, e foi-se embora.
—Mas, Theophilo, emenda-se amanhã, disse-lheD. Fernanda, levantando-se.
Theophilo, sem voltar atraz, deu de hombros, desesperado.A mulher correu a elle; a amiga seguiu-aespantada. Ficou só o banco, já agora livre dellas,recebendo em cheio os raios do sol, que não amanem faz discursos. D. Fernanda levou o marido paraum gabinete, e, á força de beijos, consolou-o daquellegolpe. Ao almoço, já elle sorria, ainda que deum sorriso pallido; a mulher, para desvial-o dapreoccupação, fallou do plano de casar Maria Benedicta,e havia de ser com um deputado, se existissena camara algum solteiro, qualquer que fosse aopinião. Podia ser governista, opposicionista, ambasas cousas, ou nada,—contanto que fosse marido.Sobre este thema fez algumas reflexões, vivas, lepidas,que encheram o tempo e destinavam-se amatar a lembrança da troca de lettras. Pia creatura!Theophilo, entendendo a mulher, ia-se fazendoalegre, e fallava tambem da conveniencia decasar Maria Benedicta.
—O peor, acudiu a mulher olhando para a amiga,é que ella ama a alguem, cujo nome não quer dizer.
—Nem é preciso, atalhou o marido enxugandoos beiços; vê-se bem que ella gósta de teu primo.
No domingo seguinte, D. Fernanda foi á egrejade Santo Antonio dos Pobres. Acabada a missa, viusurgir do movimento dos fieis que se comprimentavamentre si, ou saudavam o altar, nada menosque o primo, erecto, risonho, gravemente trajado,estendendo-lhe a mão.
—Veiu tambem á missa? perguntou espantada.
—Vim.
—Vem sempre?
—Nem sempre, muitas vezes.
—Francamente, não esperava tanta devoção emvocê. Os homens são, em geral, uns impios. Theophilonão pisa na egreja, a não ser para baptisar osfilhos. Você então é religioso?
—Não posso responder com certeza; mas tenhohorror á banalidade, que é dizer mal da religião. Ebasta; vim á missa, não vim confessar-me; agora vouconduzil-a á casa, e, se me offerecer almoço, almoçareicom vocês. Salvo se quizerem vir almoçar commigo;é nesta rua, como sabe.
—Iria eu só, se pudesse ser, para lhe dar umanoticia muito comprida.
—Vamos então devagar, disse Carlos Maria áporta da egreja, offerecendo-lhe o braço. E dous passosadeante:—Noticia importante?
—Importante e deliciosa.
—Querem ver que Deus, sempre misericordioso,vae levar para si o nosso querido Theophilo, deixandoaqui ao desamparo a mais gentil de todas asviuvas... Não precisa fazer essa cara, prima; deixeestar o braço. Vamos á noticia. Chegou a moça dePelotas, aposto?
—Não direi o que é, se você me não jurar ouvirseriamente.
—Seriamente.
D. Fernanda confessou-lhe que hesitava em casal-ocom a patricia de Pelotas; não queria remorsos;descobrira aqui alguem que tinha ao primo umimmenso amor. Carlos Maria sorriu, iniciou um gracejo,mas a noticia esporeou-lhe o espirito. Immensoamor? Immenso amor, paixão violenta, confirmou aprima, accrescentando que talvez a definição já nãocoubesse bem ao actual sentimento da pessoa, Agoraera uma adoração quieta e calada. Tinha choradopor elle noites e noites, emquanto as esperanças lheduraram... E D. Fernanda foi assim repetindo aconfidencia de Maria Benedicta. Restava só o nome;Carlos Maria quiz sabel-o, ella negou-lh'o. Nãopodia revellal-o. Para que dar-lhe o gosto de saberquem era que o adorava, se não corria ao encontro daalma della? Melhor era deixal-a no mysterio. Jánão chorava agora; modesta e desambiciosa, perderaas esperanças de ser amada, e, com o tempo ficouapenas uma devota, mas uma devota sem par, quenem sequer esperava ser ouvida ou agraciadaum dia por um olhar benevolo do seu deus querido.
—Prima, você...
—Eu que?...
Carlos Maria concluiu dizendo que a advogada eradigna da causa. Realmente, se essa moça o adoravaa tal ponto, era justo e natural que a prima se interessassepor ella com tanto calor. Mas porque nãodizer o nome?
—Agora não digo; pode ser que algum dia... Mas,você comprehende que me custaria muitocasal-o com a minha patricia, sabendo que outrapessoa o ama tanto. E dahi bem pode ser que estade cá não padeça muito, se o vir casado. Sim, senhor,parece absurdo, mas é preciso conhecel-a; digo que,uma vez que você seja feliz, é capaz de abençoar abella rival.
—Já não é romantismo, é mysticismo, redarguiuCarlos Maria depois de alguns passos, com os olhosno chão. Não está nas cordas do nosso tempo. Temalguma prova de semelhante estado da alma?
—Tenho... A sua casa é aquella, não? perguntouD. Fernanda parando.
—É.
—Bonito predio, e solido.
—Muito solido.
Uma, duas, tres, quatro... Sete janellas.O salao vae de ponta a ponta? Bem bom para umbaile.
E andando:
—Eu, se tivesse aqui uma casa maior que aminha, daria um grande baile, antes de voltar parao Rio Grande. Gosto de festas. Os meus dous filhosnão me dão grande trabalho. A proposito, ando comideia de metter o Lopo no collegio; onde achareium bom collegio?
Carlos Maria pensava na devota incognita. Estavalonge, muito longe do ensino e seus estabelecimentos.Que bom que era sentir-se um deus adorado, eadorado á maneira evangelica, mettida a devota noaposento, fechada a porta, em secreto, não nas synagogas,á vista de todos. «E teu pae que vê o quese passa em secreto te dará a paga.» (S. MATHEUS,VI, 6). Oh! elle daria a paga, se soubesse quem era.Casada, sería? Não, não podia ser, não iria confessal-oa ninguem; viuva ou solteira, antes solteira. Cheirava-lhea solteira. Em que aposento se fechavapara resar, para evocal-o, choral-o e abençoal-o?Já nem teimava pelo nome; mas o aposento, aomenos.
—Onde acharei um bom collegio? repetiu D. Fernanda.
—Collegio? Não sei; estou pensando na desconhecida.Comprehende bem que uma pessoa que meadora, em silencio, sem esperanças, é objecto dealguma attenção. Alta ou baixa?
—Maria Benedicta.
Carlos Maria estacou o passo.
—Aquella moça...? Não é possivel. Tenho-lhefallado muitas vezes, e nunca descobri nada. Achei-asempre fria. Hade ser engano. Ouviu-lhe o meunome?
—Não, por mais que lhe pedisse. Confessou omilagre, sem nomear o santo, mas que milagre!Gabe-se de ser adorado como ninguem... De quemé aquella casa?
—Você costuma exagerar as cousas, prima;póde não ser tanto. Adorado como ninguem? E deque modo soube que era eu?
—Theophilo foi o primeiro que descobriu; ella,dizendo-se-lhe isto, ficou como uma pitanga. Negou-oainda depois, commigo; e desde esse dia nãovoltou lá a casa.
Tal foi o inicio dos amores. Carlos Maria folgoude se ver assim amado em silencio, e toda a prevençãose converteu em sympathia. Começou avel-a, saboreou a confusão da moça, os medos, aalegria, a modestia, as attitudes quasi implorativas,um composto de actos e sentimentos que eram aapotheose do homem amado. Tal foi o inicio, tal odesfecho. Assim os vimos, naquella noite dos annosde D. Sophia, a quem elle dissera antes cousas tãodoces. São assim os homens; as aguas que passam,e os ventos que rugem não são outra cousa.
—Bem, vae casar, tanto melhor! pensou Rubião.
Entre aquella noite e o dia do casamento, Rubiãoapanhou no ar algumas olhadas de Sophia, suspeitasde tentação; Carlos Maria, se lhe correspondeu, foiantes por polidez que outra cousa. Rubião concluiuque o caso era fortuito; lembrava-se ainda da lagrimade Sophia, na noite dos annos, quando lhe explicoua historia da carta.
Oh! boa lagrima inesperada! Tu, que bastaste apersuadir um homem, podes não ser explicavel aoutros, e assim vae o mundo. Que importa que osolhos não fossem costumados ao choro, nem que anoite parecesse exaltar sentimentos mui diversos damelancolia? Rubião a viu cair; ainda agora a vê dememoria. Mas a confiança de Rubião não vinhasó da lagrima, vinha tambem da presente Sophia,que nunca fora tão solicita nem tão dada com elle.Parecia arrependida de todo o mal causado, prestesa sanal-o, ou por affeição tardia, ou pelo propriomalogro da primeira aventura. Ha delictos virtuaes,que dormem. Ha operas remissas na cabeça de ummaestro, que só esperam os primeiros compassos dainspiração.
—Ainda bem que se casa! repetiu o Rubião.
Não se demorou o casamento: tres semanas. Namanhã do dia aprazado, Carlos Maria abriu os olhoscom algum espanto. Era elle mesmo que ia casar?Não havia duvida; mirou-se ao espelho, era elle.Relembrou os ultimos dias, a marcha rapida dossuccessos, a realidade da affeição que tinha á noiva,e, emfim, a felicidade pura que lhe ia dar. Esta derradeiraideia enchia-o de grande e rara satisfação.Ia-as ruminando ainda, a cavallo, no passeio habitualda manhã; desta vez escolhera o bairro do EngenhoVelho.
Posto se achasse costumado aos olhos admirativos,via agora em toda a gente um aspectoparecido com a noticia de que elle ia casar. As casuarinasde uma chacara, quietas antes que elle passassepor ellas, disseram-lhe cousas mui particulares,que os levianos attribuiriam á aragem que passavatambem, mas que os sapientes reconheceriam sernada menos que a linguagem nupcial das casuarinas.Passaros saltavam de um lado para outro, pipilandoum madrigal. Um casal de borboletas,—que osjapões têm por symbolo da fidelidade, por observaremque, se pousam de flor em flor, andam quasi sempreaos pares,—um casal dellas acompanhou por muitotempo o passo do cavallo, indo pela cerca de umachacara que beirava o caminho, volteando aqui ealli, lepidas e amarellas. De envolta com isto, umar fresco, ceu azul, caras alegres de homens montadosem burros, pescoços estendidos pela janellafóra das diligencias, para vel-o e ao seu garbo denoivo. Certo, era difficil crer que todos aquellesgestos e attitudes da gente, dos bichos e das arvores,exprimissem outro sentimento que não fosse a homenagemnupcial da natureza.
As borboletas perderam-se em uma das moitasmais densas da cêrca. Seguiu-se outra chacara, despidade arvores, portão aberto, e ao fundo, fronteandocom o portão, uma casa velha, que encarquilhava osolhos sob a forma de cinco janellas de peitoril, cançadasde perder moradores. Tambem ellas tinhamvisto bodas e festins; o seculo ja as achou verdesde novidade e de esperança.
Não cuideis que esse aspecto contristou a alma docavalleiro. Ao contrario, elle possuia o dom particularde remoçar as ruinas e viver da vida primitivadas cousas. Gostou até de ver a casa velhusca, desbotada,em contraste com as borboletas tão vivas deha pouco. Parou o cavallo; evocou as mulheresque por alli entraram, outras galas, outros rostos,outras maneiras. Porventura as proprias sombrasdas pessoas felizes e extinctas vinham agora cumprimental-otambem, dizendo-lhe pela bocca invisiveltodos os nomes sublimes que pensavam delle.Chegou a ouvil-as e sorrir. Mas uma voz estridulaveiu mesclar-se ao concerto;—um papagaio, emgaiola pendente da parede externa da casa: «Papagaioreal, para Portugal; quem passa? Currupá,papá. Grrrr... Grrrrr...» As sombras fugiram, ocavallo foi andando. Carlos Maria aborrecia o papagaio,como aborrecia o macaco, duas contrafacçõesda pessoa humana, dizia elle.
—A felicidade queeu lhe der será assim tambeminterrompida? reflexionou andando.
Cambaxirras voaram de um para outro lado darua, e pousaram cantando a sua falla propria; foiuma reparação. Essa lingua sem palavras era intelligivel,dizia uma porção de cousas claras e bellas.Carlos Maria chegou a ver naquillo um symbolo desi mesmo. Quando a mulher, aturdida dos papagaiosdo mundo, viesse caindo de fastio, elle a faria ergueraos trillos da passarada divina, que trazia em si,ideias de ouro, ditas por uma voz de ouro. Oh! comoa tornaria feliz! Já a antevia ajoelhada, com osbraços postos nos seus joelhos, a cabeça nas mãos eos olhos nelle, gratos, devotos, amorosos, toda implorativa,toda nada.
Ora bem, aquelle quadro, na mesma hora em queapparecia aos olhos da imaginação do noivo, reproduzia-seno espirito da noiva, tal qual. MariaBenedicta, posta á janella, fitando as ondas que sequebravam ao longe e na praia, via-se a si mesma,ajoelhada aos pés do marido, quieta, contricta,como á mesa da communhão para receber ahostia da felicidade. E dizia comsigo: «Oh! comoelle me fará feliz!» Phrase e pensamento eramoutros, mas a attitude e a hora eram as mesmas.
Casaram-se; tres mezes depois foram para a Europa.Ao despedir-se delles, D. Fernanda estava tãoalegre como se viesse recebel-os de volta; não chorava.O prazer de os ver felizes era maior que o desgostoda separação.
—Você vae contente? perguntou a Maria Benedicta,pela ultima vez, junto á amurada do paquete.
—Oh! muito!
A alma de D. Fernanda debruçou-se-lhe dos olhos,fresca, ingenua,cantando um trecho italiano,—porquea suberba guasca preferia a musica italiana,—talvezesta aria daLucia: O' bell'alma innamorata.Ou este pedaço doBarbeiro:
Ecco ridente in cielo Già spunta la bella aurora.
Sophia não foi a bordo, adoeceu e mandou o marido.Não vão crer que era pezar nem dor; poroccasião do casamento, houve-se com grande discrição,cuidou do enxoval da noiva e despediu-se dellacom muitos beijos chorados. Mas ir a bordo pareceu-lhevergonha. Adoeceu; e, para não desmentirdo pretexto, deixou-se estar no quarto. Pegoude um romance recente; fora-lhe dado pelo Rubião.Outras cousas alli lhe lembravam o mesmo homem,teteias de toda a sorte, sem contar joias guardadas.Finalmente, uma singular palavra que lheouvira, na noite do casamento da prima, até essaveiu alli para o inventario das recordações do nossoamigo.
—A senhora é já a rainha de todas, disse-lheelle em voz baixa; espere que ainda a farei imperatriz.
Sophia não pode entender esta phrase enigmatica.Quiz suppor que era uma alliciação de grandezapara tornal-a sua amante; mas a vaidade que essaideia trazia fel-a excluir desde logo. Rubião, postonão fosse agora o mesmo homem encolhido e timidode outros tempos, não se mostrava tão cheio desi que lhe pudesse attribuir tão alta presumpção.Mas que era então a phrase? Talvez um modo figuradode dizer que a amaria ainda mais. Sophiaacreditava possivel tudo. Não lhe faltavam galanteios;chegou a ouvir aquella declaração de CarlosMaria, provavelmente ouvira outras, a que deu somentea attenção da vaidade. E todas passaram;Rubião é que persistia. Tinha pausas, filhas desuspeitas; mas as suspeitas iam como vinham.
«Il mérite d'être aimé», leu Sophia na paginaaberta do romance, quando ia continuar a leitura;fechou o livro, fechou os olhos, e perdeu-se em simesma. A escrava que entrou d'ahi a pouco, trazendo-lheum caldo, suppoz que a senhora dormiae retirou-se pé ante pé.
Entretanto, Rubião e Palha desciam do paquetepara a lancha e tornavam ao cáes Pharoux. Vinhamcuidosos e calados. Palha foi o primeiro que abriu abocca:
—Ando ha tempos para dizer-lhe uma cousaimportante, Rubião.
Rubião accordou. Era a primeira vez que ia a umpaquete. Voltava com a alma cheia dos rumores debordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e sahiam,nacionaes, estrangeiros, estes de varia casta, francezes,inglezes, allemães, argentinos, italianos, umaconfusão de linguas, um capharnaum de chapéos, demalas, cordoalha, sophás, binoculos a tiracollo, homensque desciam ou subiam por escadas para dentrodo navio, mulheres chorosas, outras curiosas, outrascheias de riso, e muitas que traziam de terra floresou frutas,—tudo aspectos novos. Ao longe, a barrapor onde tinha de ir o paquete. Para lá da barra, omar immenso, o céo fechado e a solidão. Rubião renovouos sonhos do mundo antigo, creou uma Atlantida,sem nada saber da tradicção. Não tendo noçõesde geographia, formava uma idéa confusa dosoutros paizes, e a imaginação rodeava-os de umnimbo mysterioso. Como não lhe custava viajarassim, navegou de cór algum tempo, n'aquelle vaporalto e comprido, sem enjôo, sem vagas, sem ventos,sem nuvens.
—A mim? perguntou Rubião depois de algunssegundos.
—A você, confirmou o Palha. Devia tel-a ditoha mais tempo, mas estas historias de casamento,de commissão das Alagoas, etc., atrapalharam-me,e não tive occasião; agora, porém, antes do almoço... Vocêalmoça commigo.
—Sim, mas que é?
—Uma cousa importante.
Dizendo isto, tirou um cigarro, abriu-o, desfiou ofumo com os dedos, enrolou a palha outra vez, eriscou um phosphoro, mas o vento apagou o phosphoro.Então pediu ao Rubião que lhe fizesse o favorde segurar o chapéo, para poder accender outro.Rubião obedeceu impaciente. Bem póde ser que osocio, esticando a espera, quizesse justamente fazer-lhecrer que se tratava de um terremoto; a realidadeviria a ser um beneficio. Puxadas duas fumaças:
—Estou com meu plano de liquidar o negocio;fallaram-me ahi para uma casa bancaria, logar dedirector, e creio que acceito.
Rubião respirou.
—Pois sim; liquidar já?
—Não, lá para o fim do anno que vem.
—E é preciso liquidar?
—Cá para mim, é. Se a historia do banco nãofosse segura, não me animaria a perder o certo peloduvidoso; mas é segurissima.
—Então no fim do anno que vem soltamos oslaços que nos prendem...
Palha tossiu.
—Não, antes, no fim deste anno.
Rubião não entendeu; mas o socio explicou-lheque era util desligarem já a sociedade, afim de queelle sósinho liquidasse a casa. O banco podia organizar-semais cedo ou mais tarde; e para que sujeitaro outro ás exigencias da occasião? Demais, oDr. Camacho affirmava que, em breve, Rubião estariana camara, e que a queda do Itaborahy eracerta.
—Seja o que fôr, concluiu; é sempre melhordesligarmos a sociedade com tempo. Você não vivedo commercio; entrou com o capital necessario aonegocio,—como podia dal-o a outro ou guardal-o.
—Pois sim, não tenho duvida, concordou o Rubião.
E depois de alguns instantes:
—Mas diga-me uma cousa, essa proposta trazalgum motivo occulto? é rompimento de pessoas,de amizade... Seja franco, diga tudo...
—Que caraminhola é essa? redarguiu o Palha.Separação de amizade, de pessoas... Mas você estátonto. Isto é do balanço do mar. Pois eu, que tenhotrabalhado tanto por você, eu que o faço amigo dosmeus amigos, que o trato como um parente, comoum irmão, havia de brigar á toa? Aquelle mesmo casamentode Maria Benedicta com o Carlos Mariadevia ser com você, bem sabe, se não fosse a suarecusa. A gente póde romper um laço sem romperos outros. O contrario seria desproposito. Entãotodos os amigos de sociedade ou de familia são sociosde commercio? E os que não forem commerciantes?
Rubião achou excellente a razão, e quiz abraçar oPalha. Este apertou-lhe a mão satisfeitissimo; iavêr-se livre de um socio, cuja prodigalidade crescentepodia trazer-lhe algum perigo. A casa estava solida;era facil entregar ao Rubião a parte que lhe pertencesse,menos as dividas pessoaes e anteriores. Restavamainda algumas daquellas que o Palha confessouá mulher, na noite de Santa Thereza, cap. L. Poucotinha pago; geralmente era o Rubião que abanavaas orelhas ao assumpto. Um dia, o Palha, querendodar-lhe á força algum dinheiro, repetiu o velho proverbio: «Pagao que deves, vê o que te fica». Maso Rubião, gracejando:
—Pois não pagues, e vê se te não fica aindamais.
—É boa! redarguiu o Palha rindo e guardandoo dinheiro no bolso.
Não havia banco, nem logar de director, nemliquidação; mas, como justificaria o Palha a propostade separação, dizendo a pura verdade? Dahi a invenção,tanto mais prompta, quanto o Palha tinhaamor aos bancos, e morria por um. A carreira daquellehomem era cada vez mais prospera e vistosa.O negocio corria-lhe largo; um dos motivos da separaçãoera justamente não ter que dividir com outroos lucros futuros. Palha, além do mais, possuiaacções de toda a parte, apolices de ouro do emprestimoItaborahy, e fizera uns dous fornecimentospara a guerra, de sociedade com um poderoso, nosquaes ganhou muito. Já trazia apalavrado um architectopara lhe construir um palacete. Vagamente pensava em baronia.
—Quem diria que a gente do Palha nos tratariadeste modo? Já não valemos nada. Excusa de osdefender...
—Não defendo, estou explicando; ha de terhavido confusão.
—Fazer annos, casar a prima, e nem um tristeconvite ao major, ao grande major, ao impagavelmajor, ao velho amigo major. Eram os nomes queme davam; eu era impagavel, amigo velho, grandee outros nomes. Agora, nada, nem um triste convite,um recado de boca, ao menos, por um moleque:«Nhanhã faz annos, ou casa a prima, diz que a casaesta ás suas ordens, e que vão com luxo.» Nãoiriamos; luxo não é para nós. Mas era alguma cousa,era recado, um moleque, ao impagavel major...
—Papae!
Rubião, vendo a intervenção de D. Tonica, animou-sea defender longamente a familia Palha. Eraem casa da major, não já na rua Dous de Dezembro,mas na dos Barbonos, modesto sobradinho. Rubiãopassava, elle estava á janella, e chamou-o. D. Tonicanão teve tempo de sair da sala, para dar, ao menos,uma vista d'olhos ao espelho; mal pôde passar amão pelo cabello, compôr o laço de fita ao pescoço edescer o vestido para cobrir os sapatos, que nãoeram novos.
—Digo-lhe que póde ter havido confusão, insistiuRubião; tudo anda por lá muito atrapalhado comesta commissão das Alagoas.
—Lembra bem, interrompeu o major Siqueira;porque não metteram minha filha na commissão dasAlagoas? Qual! Ha já muito que reparo nisto; antigamentenão se fazia festa sem nós. Nós éramos a almade tudo. De certo tempo para cá começou a mudança;entraram a receber-nos friamente, e o marido, sepode esquivar-se, não me falla na rua. Isto começouha tempos; mas antes disso sem nós é que não sefazia nada. Que está o senhor a fallar de confusão?Pois se na vespera dos annos della, já desconfiandoque não nos convidariam, fui ter com elle ao armazem.Poucas palavras, por mais que lhe fallasseem D. Sophia; disfarçava. Afinal disse-lhe assim:«Hontem, lá em casa, eu e Tonica estivemos discutindosobre a data dos annos de D. Sophia; elladizia que tinha passado, eu disse que não, que era hojeou amanhã.» Não me respondeu, fingiu que estavaabsorvido em uma conta, chamou o guarda-livros, epediu explicações. Eu entendi o bicho, e repeti ahistoria; fez a mesma cousa. Sahi. Ora o Palha,um pé-rapado! Já o envergonho. Antigamente:major, um brinde. Eu fazia muitos brindes, tinhacerto desembaraço. Jogavamos o voltarete. Agoraestá nas grandezas; anda com gente fina. Ah! vaidadesdeste mundo! Pois não vi outro dia a mulherdelle, n'umcoupé, com outra? A Sophia decoupé!Fingiu que me não via, mas arranjou os olhos demodo que percebesse se eu a via, se a admirava.Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite,quando come se lambusa.
—Perdão, mas os trabalhos da commissão exigemcerto apparato.
—Sim, acudiu Siqueira, é por isso que minhafilha não entrou na commissão; é para não estragaras carruagens...
—Demais, ocoupé podia ser da outra senhora,que ia com ella.
O major deu dous passos, com as mãos atraz, eparou deante de Rubião.
—Da outra... ou do padre Mendes. Como vaeo padre? Boa vida, naturalmente.
—Mas, papae, póde não haver nada, interrompeuD. Tonica. Ella sempre me trata bem, e quandoestive doente no mez passado, mandou saber pelomoleque, duas vezes...
—Pelo moleque! bradou o pae. Pelo moleque!Grande favor! «Moleque, vae alli á casa daquellereformado e pergunta lhe se a filha tem passado melhor;não vou, porque estou lustrando as unhas!»Grande favor! Tu não lustras as unhas! tu trabalhas!tu és digna filha minha! pobre, mas honesta!
Aqui o major chorou, mas suspendeu de repenteas lagrimas. A filha, commovida, sentiu-se tambemvexada. Certo, a casa dizia a pobreza da familia,poucas cadeiras, uma meza redonda velha, um canapégasto; nas paredes duas lithographias encaixilhadasem pinho pintado de preto, um era o retrato domajor em 1857, a outra representava oVeronez emVeneza, comprado na rua do Senhor dos Passos.Mas o trabalho da filha transparecia em tudo; osmoveis reluziam de asseio, a meza tinha um pannode crivo, feito por ella, o canapé uma almofada. Eera falso que D. Tonica não lustrasse as unhas; nãoteria o pó nem a camurça, mas acudia-lhes com umretalho de panno todas as manhãs.
Rubião tratou-os com sympathia. Não continuoua defender a gente Palha, para não desesperar omajor, e fallou do exercito. Pouco depois, despediu-se,promettendo, sem convite, que lá iria jantar «umdia destes».
—Jantar de pobre, acudiu o major; se puderavisar, avise.
—Não quero banquetes; virei quando me der nacabeça.
Despediu-se. D. Tonica, depois de ir até o patamar,sem chegar á frente por causa dos sapatos, foi á janellapara vel-o sair.
Logo que Rubião dobrou a esquina da rua dasMangueiras, D. Tonica entrou e foi ao pae, que seestendera no canapé, para reler o velhoSaint-Clairdas ilhas ou os desterrados da ilha da Barra. Foio primeiro romance que conheceu; o exemplar tinhamais de vinte annos; era toda a bibliotheca do pae eda filha. Siqueira abriu o primeiro volume, e deitouos olhos ao começo do cap. II, que já trazia de cór.Achava-lhe agora um sabor particular, por motivodos seus recentes desgostos: «Enchei bem os vossoscopos, exclamou Saint-Clair, e bebamos de uma vez;eis o brinde que vos proponho. Á saude dos bons evalentes opprimidos, e ao castigo dos seus oppressores.Todos acompanharam Saint-Clair, e foi deroda a saude.»
—Sabe de uma cousa, papae? Papae compraamanhã latas de conserva,petit-pois, peixe, etc. eficam guardadas. No dia em que elle apparecer parajantar, põe-se no fogo, é só aquecer, e daremos umjantarzinho melhor.
—Mas eu só tenho o dinheiro do teu vestido.
—O meu vestido? Compra-se no mez que vem,ou no outro. Eu espero.
—Mas não ficou ajustado?
—Desajusta-se; eu espero.
—E se não houver outro do mesmo preço?
—Hade haver; eu espero, papae.
Ainda não disse,—porque os capitulos atropellam-sedebaixo da penna,—mas aqui está um paradizer que, por aquelle tempo, as relações de Rubiãotinham crescido em numero. Camacho puzera-o emcontacto com muitos homens politicos, a commissãodas Alagoas com varias senhoras, os bancos e companhiascom pessoas do commercio e da praça, ostheatros com alguns frequentadores e a rua do Ouvidorcom toda a gente. Já então era um nomerepetido. Conhecia-se o homem. Quando appareciamas barbas e o par de bigodes longos, uma sobre-casacabem justa, um peito largo, bengala de unicornio,e um andar firme e senhor, dizia-se logo queera o Rubião,—um ricaço de Minas.
Tinham-lhe feito uma lenda. Diziam-n'o discipulode um grande philosopho, que lhe legára immensosbens,—um, tres, cinco mil contos. Extranhavamalguns que elle não fallasse nunca dephilosophia, mas a lenda explicava esse silencio peloproprio methodo philosophico do mestre, que consistiaem ensinar sómente aos homens de boa vontade.Onde estavam esses discipulos? Iam á casa delle,todos os dias,—alguns duas vezes, de manhã e detarde; e assim ficavam definidos os comensaes.Não seriam discipulos, mas eram de boa vontade.Roiam fome, á espera, e ouviam calados e risonhosos discursos do amphytrião. Entre os antigos e osnovos, houve tal ou qual rivalidade, que os primeirosaccentuaram bem, mostrando maior intimidade,dando ordens aos criados, pedindo charutos, indo aointerior, assobiando, etc. Mas o costume os fez supportaveisentre si, e todos acabaram na doce ecommum confissão das qualidades do dono da casa.Ao cabo de algum tempo, tambem os novos lhedeviam dinheiro, ou em especie,—ou em fiança noalfaiate, ou endosso de lettras, que elle pagava ásescondidas, para não vexar os devedores.
Quincas Borba andava ao collo de todos. Davamestalinhos, para vel-o saltar, alguns chegavam a beijar-lhea testa; um delles, mais habil, achou modo deo ter á mesa, ao jantar ou almoço, sobre as pernas,para lhe dar migalhas de pão.
—Ah! isso não! protestou Rubião á primeiravez.
—Que tem? retorquiu o comensal. Não ha pessoasextranhas.
Rubião reflectiu um instante.
—Verdade é que está ahi dentro um grande homem,disse elle.
—O philosopho, o outro Quincas Borba, continuouo conviva, circulando o olhar pelos novatos,para mostrar a intimidade das relações entre elle eRubião; mas, não logrou sosinho a vantagem, porque os outros amigos da mesma éra, repetiram, emcoro:
—É verdade, o philosopho.
E Rubião explicou aos novatos a allusão ao philosopho,e a razão do nome do cão, que todos lheattribuiam. Quincas Borba (o defuncto) foi descriptoe narrado como um dos maiores homens dotempo,—superior aos seus patricios. Grande philosopho,grande alma, grande amigo. E no fim, depoisde algum silencio, batendo com os dedos na bordada mesa, Rubião exclamou:
—Eu o faria ministro de Estado!
Um dos convivas exclamou, sem convicção, porsimples officio:
—Oh! sem duvida!
Nenhum daquelles homens sabia, entretanto, osacrificio que lhes fazia o Rubião. Recusava jantares,passeios, interrompia conversações apraziveis,só para correr a casa e jantar com elles. Um diaachou meio de conciliar tudo. Não estando elle emcasa ás seis horas em ponto, os criados deviam pôro jantar para os amigos. Houve protestos; não,senhor, esperariam até sete ou oito horas. Um jantarsem elle não tinha graça.
—Mas é que posso não vir, explicou Rubião.
Assim se cumpriu. Os convivas ajustaram bemos relogios pelos da casa de Botafogo. Davam seishoras, todos á mesa. Nos dous primeiros dias houvetal ou qual hesitação; mas os criados tinham ordensseveras. Ás vezes, Rubião chegava pouco depois.Eram então risos, ditos, intrigas alegres. Um queriaesperar, mas os outros... Os outros desmentiam oo primeiro; ao contrario, foi este que os arrastou,tal fome trazia,—a ponto que, se alguma cousarestava, eram os pratos. E Rubião ria com todos.
Fazer um capitulo só para dizer que, a principio,os convivas, ausente o Rubião, fumavam os proprioscharutos, depois do jantar,—parecerá frivolo aosfrivolos; mas os considerados dirão que algum interessehaverá nesta circumstancia em apparenciaminima.
De facto, uma noite, um dos mais antigos lembrou-sede ir ao gabinete de Rubião; lá fôra algumasvezes, alli se guardavam as caixas de charutos,não quatro nem cinco, mas vinte e trinta de variasfabricas e tamanhos, muitas abertas. Um criado(o hespanhol) accendeu o gaz. Os outros convivasseguiram o primeiro, escolheram charutos e os queainda não conheciam o gabinete admiraram os moveisbem feitos e bem dispostos. A secretária captouas admirações geraes; era de ebano, um primor detalha, obra severa e forte. Uma novidade os esperava:dous bustos de marmore, postos sobre ella, os dousNapoleões, o primeiro e o terceiro.
—Quando veiu isto?
—Hoje ao meio dia, respondeu o criado.
Dous bustos magnificos. Ao pé do olhar aquilinodo tio, perdia-se no vago o olhar scismatico do sobrinho.Contou o criado que o amo, apenas recebidose collocados os bustos, deixara-se estar grande espaçoem admiração, tão deslembrado do mais, que ellepode miral-os tambem, sem admiral-os.—No medicen nada estos dos pícaros, concluiu o criado fazendoum gesto largo e nobre.
Rubião protegia largamente as lettras. Livrosque lhe eram dedicados, entravam para o prelocom a garantia de duzentos e trezentos exemplares.Tinha diplomas e diplomas de sociedades litterarias,coreographicas, pias, e era juntamente sociode uma Congregação Catholica e de um GremioProtestante, não se tendo lembrado de um quando lhefallaram do outro; o que fazia era pagar regularmenteas mensalidades de ambos. Assignavajornaes sem os ler. Um dia, ao pagar o semestre deum, que lhe haviam mandado, é que soube, pelo cobrador,que era do partido do governo; mandou ocobrador ao diabo.
O cobrador não foi ao diabo; recebeu o preço dosemestre, e, como possuia a observação natural doscobradores, resmungou na rua:
—Ora aqui está um homem que detesta a folhae paga. Quantos a adoram e não pagam!
Mas—ó lance da fortuna! ó equidade da natureza!—osdesperdicios do nosso amigo, se não tinhamremedio, tinham compensação. Já o tempo não passavapor elle como por um vadio sem ideias. Rubião,á falta de ideias, tinha agora imaginação. Outr'oravivia mais dos outros que de si, não achava equilibriointerior, e o ocio esticava as horas, que nãoacabavam mais. Tudo ia mudando; agora a imaginação,que, a relampagos, lhe apparecia ultimamente,tendia a pousar um pouco. Sentado na loja do Bernardo,gastava toda uma manhã, sem que o tempolhe trouxesse fadiga, nem a estreiteza da rua doOuvidor lhe tapasse o espaço. Repetiam-se as visõesdeliciosas, como a das bodas (Cap. LXXXI) em termosa que a grandeza não tirava a graça. Houve quem ovisse, mais de uma vez, saltar da cadeira e ir até áporta ver bem pelas costas alguma pessoa que passava.Conhecel-a-hia? Ou seria alguem que, casualmente,tinha as feições da creatura imaginaria queelle estivera mirando? São perguntas de mais paraum só capitulo; basta dizer que uma dessas vezesnem passou ninguem, elle proprio reconheceu a illusão,voltou para dentro, comprou uma teteia debronze para dar á filha do Camacho, que fazia annos,e ia casar em breve, e saiu.
E Sophia? interroga impaciente a leitora, talqual Orgon:Et Tartuffe? Ai, amiga minha, a respostaé naturalmente a mesma,—tambem ella comiabem, dormia largo e fofo,—cousas que, aliás, nãoimpedem que uma pessoa ame, quando quer amar.Se esta ultima reflexão é o motivo secreto da vossapergunta, deixai que vos diga que sois muito indiscreta,e que eu não me quero senão com dissimulados.
Repito, comia bem, dormia largo e fofo. Chegáraao fim da commissão das Alagoas, com elogios daimprensa; aAtalaia chamou-lhe «o anjo da consolação».E não se pense que este nome a alegrou, postoque a lisongeasse; ao contrario, resumindo em Sophiatoda a acção da caridade, podia mortificar asnovas amigas, e fazer-lhe perder em um dia o trabalhode longos mezes. Assim se explica o artigoque a mesma folha trouxe no numero seguinte, nomeando,particularisando e glorificando as outrascommissarias—-«estrellas de primeira grandeza».
Nem todas as relações subsistiram, mas a maiorparte dellas estavam atadas, e não faltam á nossadona o talento de as tornar definitivas. O marido éque peccava por turbulento, excessivo, derramado,dando bem a ver que o cumulavam de favores, querecebia finezas inesperadas e quasi immerecidas.Sophia, para emendal-o, vexava-o com censuras econselhos, rindo:
—«Você esteve hoje insupportavel; parecia umcriado».
—«Christiano, fique mais senhor de si, quandotivermos gente de fóra, não se ponha com os olhosfóra da cara, saltando de um lado para outro, assimcom ar de criança que recebe doce...»
Elle negava, explicava ou justificava-se; afinal,concluia que sim, que era preciso não parecer estarabaixo dos obsequios; cortezia, affabilidade, maisnada...
Justo, mas não vás cahir no extremo opposto,acudiu Sophia; não vás ficar casmurro...
Palha era então as duas cousas; casmurro, a principio,frio, quasi desdenhoso, fallando pouco, apenasrespondendo. Mas, ou a reflexão, ou o impulso inconsciente,restituia ao nosso homem a animaçãohabitual, e com ella, segundo o momento, a demasiae o estrepito. Sophia é que, em verdade, corrigiatudo. Observava, imitava. Necessidade e vocaçãofizeram-lhe adquirir, aos poucos, o que não trouxerado nascimento nem da fortuna. Ao demais, estavanaquella edade média em que as mulheresinspiram egual confiança ás sinhásinhas de vinte eás sinhás de quarenta. Algumas morriam por ella;muitas a cumulavam de louvores.
Foi assim que a nossa amiga, pouco a pouco,espanou a atmosphera. Cortou as relações antigas,familiares, algumas tão intimas que difficilmente sepoderiam dissolver; mas a arte de receber semcalor, ouvir sem interese e despedir-se sem saudade,não era das suas menores prendas; e uma por uma,se foram indo as pobres creaturas modestas, semmaneiras, nem vestidos, amizades de pequena monta,de pagodes caseiros, de habitos singelos e sem elevação.Com os homens fazia exactamente o que omajor contara, quando elles a viam passar de carruagem,—queera sua,—entre parenthesis. A differençaé que já nem os espreitava para saber se aviam. Acabara a lua de mel da grandeza; agora torciaos olhos duramente para outro lado, conjurando, deum gesto definitivo, o perigo de alguma hesitação.Punha assim os velhos amigos na obrigação de lhenão tirarem o chapéo. Como eram poucos, foibreve a empreza.
Rubião ainda quiz valer ao major, mas o ar defastio com que Sophia o interrompeu foi tal, que onosso amigo preferiu perguntar-lhe se, não chovendona seguinte manhã, iriam sempre passear á Tijuca.
—Já fallei a Christiano; disse-me que tem umnegocio, que fique para domingo que vem.
Rubião, depois de um instante:
Vamos nós dous. Sahimos cedo, passeamos,almoçamos lá; ás tres ou quatro horas estamos devolta...
Sophia olhou para elle, com tamanha vontade deacceitar o convite, que Rubião não esperou respostaverbal.
—Está assentado, vamos, disse elle.
—Não.
—Como não?
E repetiu a pergunta, porque Sophia não lhe quizexplicar a negativa, aliás, tão obvia. Obrigada afazel-o, ponderou que o marido ficaria com inveja, eera capaz de adiar o negocio só para ir tambem. Nãoqueria atrapalhar os negocios delle, e podiam esperaroito dias. O olhar de Sophia acompanhava essa explicação,como um clarim acompanharia um padre-nosso.Vontade tinha, oh! se tinha vontade de ir namanhã seguinte, com Rubião, estrada acima, bemposta no cavallo, não scismando á toa, nem poetica,mas valente, fogo na cara, toda deste mundo, galopando,trotando, parando. Lá no alto, desmontariaalgum tempo; tudo só, a cidade ao longe e o ceu porcima. Encostada ao cavallo, penteando-lhe as crinascom os dedos, ouviria Rubião louvar-lhe a affoutezae o garbo... Chegou a sentir um beijo na nuca...
Pois que se trata de cavallos, não fica mal dizerque a imaginação de Sophia era agora um corselbrioso e petulante, capaz de galgar morros e desbaratarmattos. Outra seria a comparação, se a occasiãofosse differente; mas corsel é o que vae melhor.Traz a ideia do impeto, do sangue, da disparada, aomesmo tempo que a da serenidade com que tornaao caminho recto, e por fim á cavallariça.
—Está dito, vamos amanhã, repetiu Rubião,que espreitava o rosto acceso de Sophia.
Mas o corsel viera fatigado da carreira, e deixou-seestar somnolento na cavallariça. Sophia erajá outra; passara a vertigem da empreza, o ardorsonhado, o gosto de subir com elle a estrada daTijuca. Dizendo-lhe Rubião que fallaria ao maridopara que a deixasse ir ao passeio, redarguiu semalma:
—Está tonto! Fica para o domingo que vem!
E fixou os olhos no trabalho de linha que fazia,—frioleiraé o nome,—emquanto Rubião voltavaos seus para um trechosinho de jardim mofino, ao péda saleta de trabalho onde estavam. Sophia, sentadano angulo da janella, ia meneando os dedos.Rubião viu em duas rosas vulgares uma festa imperial,e esqueceu a sala, a mulher e a si. Não se pódedizer, ao certo, que tempo estiveram assim calados,alheios e remotos um do outro. Foi uma criadaque os accordou, trazendo-lhes café. Bebido o café,Rubião concertou as barbas, tirou o relogio e despediu-se.Sophia, que espreitava a sabida, ficou satisfeita,mas encobriu o gosto com o espanto.
—Já!
—Preciso de fallar a um sujeito antes das quatrohoras, explicou Rubião. Estamos entendidos; passeiode amanhã gorado. Vou mandar desavisar oscavallos. Mas será certo no domingo que vem?
—Certo, certo, não posso affirmar; mas resolvendo-seem tempo o Christiano, creio que sim.Sabe que meu marido é o homem dos impedimentos.
Sophia acompanhou-o até á porta, estendeu-lhe amão indifferente, respondeu sorrindo alguma cousachocha, tornou á salinha em que estivera,—aomesmo angulo,—da mesma janella. Não continuoulogo o trabalho, poz uma perna sobre outra, fazendodescer, por habito, a saia do vestido, e lançouuma olhada ao jardim, onde as duas rosas tinhamdado ao nosso amigo uma visão imperial. Sophianão viu mais que duas flores mudas. Fitou-as, nãoobstante, algum tempo; em seguida, pegou da frioleira,trabalhou um pouco, deteve-se outro pouco,deixando as mãos no regaço; e voltou á obra, outravez, para tornar a deixal-a. De repente, levantou-see atirou as linhas e anavette á cestinha de junco,onde guardava os seus pretextos de trabalho. A cestaera ainda uma lembrança de Rubião!
—Que homem aborrecido!
Dalli foi encostar-se á janella, que dava para ojardim mofino, onde iam murchando as duas rosasvulgares. Rosas, quando recentes, importam-se poucoou nada com as coleras dos outros; mas, se definham,tudo lhes serve para vexar a alma humana.Quero crer que este costume nasce da brevidadeda vida. «Para as rosas, escreveu Fontenelle, o jardineiroé eterno.» E que melhor maneira de ferir oeterno que mofar das suas iras? Eu passo, tu ficas;mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi adonas e a donzellas, fui lettra de amor, ornei a botoeirados homens, ou expiro no proprio arbusto, etodas as mãos e todos os olhos me trataram e meviram com admiração e affecto. Tu não, ó eterno;tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu affliges-te!a tua eternidade não vale um só dos meus minutos.
Assim, quando Sophia chegou á janella que davapara o jardim, ambas as rosas riram-se a petalasdespregadas. Uma dellas disse que era bem feito!bem feito! bem feito!
—Tens razão em te zangares, formosa creatura,acrescentou, mas hade ser comtigo, não com elle.Elle que vale? Um triste homem sem encantos,póde ser que bom amigo, e talvez generoso, mas repugnante,não? E tu, requestada de outros, que demoniote leva a dar ouvidos a esse intruso da vida?Humilha-te, ó suberba creatura, porque és tu mesmaa causa do teu mal. Tu juras esquecel-o, e não o esqueces.E é preciso esquecel-o? Não te basta fital-o,escutal-o, para desprezal-o? Esse homem não dizcousa nenhuma, ó singular creatura, e tu...
—Não é tanto assim, interrompeu a outra rosa,com a voz ironica e descançada; elle diz algumacousa, e dil-a desde muito, sem desapprendel-a,nem trocal-a; é firme, esquece a dor, crê na esperança.Toda a sua vida amorosa é como o passeioá Tijuca, de que vocês fallavam ha pouco:«Fica para o domingo que vem!» Eia, piedade aomenos; sê piedosa, ó bonissima Sophia! Se hasdeamar a alguem, fóra do matrimonio, ama-o a elle,que te ama e é discreto. Anda, arrepende-te do gestode ha pouco. Que mal te fez elle, e que culpa lhecabe se és bonita? E quando haja culpa, a cesta éque a não tem, só porque elle a comprou, e menosainda as linhas e anavette que tu mesma mandastecomprar pela criada. Tu és má, Sophia, ésinjusta...
Sophia deixou-se estar ouvindo, ouvindo... Interrogououtras plantas, e não lhe disseram cousa diferente.Ha desses acertos maravilhosos. Quem conheceo solo e o sub-solo da vida, sabe muito bem que umtrecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva,são ricos de ideias ou de sentimentos, quandonós tambem o somos, e que as reflexões de parceriaentre os homens e as cousas compõem um dos maisinteressantes phenomenos da terra. A expressão:«Conversar com os seus botões», parecendo simplesmetaphora, é phrase de sentido real e directo. Osbotões operam synchronicamente comnosco; formamuma especie de senado, commodo e barato, que votasempre as nossas moções.
Fez-se o passeio á Tijuca, sem outro incidentemais que uma queda do cavallo, ao descerem. Nãofoi Rubião que cahiu, nem o Palha, mas a senhoradeste, que vinha pensando em não sei quê, e chicoteouo animal com raiva; elle espantou-se e deitou-aem terra. Sophia cahiu com graça. Estava singularmenteesbelta, vestida de amazona, corpinho tentadorde justeza. Othello exclamaria, se a visse:«Oh! minha bella guerreira!» Rubião limitara-sea isto, ao começar o passeio: «A senhora é umanjo!».
—Fiquei com o joelho dorido, disse ella entrandoem casa e coxeando.
—Deixa ver.
No quarto de vestir, Sophia levantou o pé sobreum banquinho e mostrou ao marido o joelho pisado;inchára um pouco, muito pouco, mas tocando-lhe,fazia-a gemer. Palha, não querendo machucal-a, chegou-lhea pontinha dos beiços apenas.
—Fiquei descomposta quando cahi?
—Não. Pois com um vestido tão comprido... Malse pôde ver o bico do pé. Não houve nada, acredita.
—Jura que não?
—Que desconfiada que você é, Sophia! Juro portudo o que ha mais sagrado, pela luz que me allumia,por Deus Nosso Senhor. Estás satisfeita?
Sophia ia cobrindo o joelho.
—Deixa ver outra vez. Creio que não será nadade maior; bota um pouco de qualquer cousa. Mandaperguntar á botica.
—Está bom, deixa-me ir despir, disse ella forcejandopor descer o vestido.
Mas o Palha baixara os olhos do joelho até aoresto da perna, onde pegava com o cano da bota. Defeito, era um bello trecho da natureza. A meia deseda dava ideia clara da perfeição do contorno. Palha,por graça, ia perguntando á mulher se se machucáraaqui, e mais aqui, e mais aqui, indicando oslogares com a mão que ia descendo. Se apparecesseum pedacinho desta obra-prima, o céo e as arvoresficariam assombrados, concluiu elle em quanto amulher descia o vestido e tirava o pé do banco.
—Póde ser, mas não havia só o céo e as arvores,disse ella; havia tambem os olhos do Rubião.
—Ora, o Rubião! É verdade; elle nunca maisteve aquellas ideias de Santa Thereza?
—Nunca; mas, emfim, não me agradaria... Jurade verdade, Christiano?
—O que você quer é que eu vá subindo de sagradoem sagrado, até á cousa mais sagrada. Jureipor Deus; não bastou. Juro por você; está satisfeita?
Pieguices de lascivo. Sahiu finalmente do quartoda mulher e foi para o seu. Aquelle pudor medrosoe incredulo de Sophia fazia-lhe bem. Mostrava queella era sua, totalmente sua; mas, por isso mesmoque elle a possuia, considerava que era de grandesenhor não se affligir com a vista casual e instantaneade um pedaço occulto do seu reino. E lastimavaque o casual tivesse parado na ponta da bota. Eraapenas a fronteira; as primeiras villas do territorio,antes da cidade machucada pela queda, dariam ideiade uma civilisação sublime e perfeita. E ensaboando-se,esfregando a cara, o collo e a cabeça na vastabacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se,Palha imaginava o pasmo e a inveja daunica testemunha do desastre, se este fosse menosincompleto.
Foi por esse tempo que Rubião poz em espanto atodos os seus amigos. Na terça-feira seguinte ao domingodo passeio (era então Janeiro de 1870) avisoua um barbeiro e cabelleireiro da rua do Ouvidor queo mandasse barbear a casa, no outro dia, ás novehoras da manhã. Lá foi um official francez,—chamadoLucien, creio eu,—que entrou para o gabinetede Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.
—Uhm!... rosnou Quincas Borba, de cimados joelhos do Rubião.
Lucien parou á porta do gabinete, e comprimemtouo dono da casa; este, porem, não viu a cortezia,como não ouvira o signal do Quincas Borba. Estavaem uma longa cadeira de extensão, ermo do espirito,que rompera o tecto e se perdera no ar. A quantasleguas iria? Nem condor nem aguia o poderia dizer.Em marcha para a lua,—não via cá em baixo maisque as felicidades perennes, chovidas sobre elle,desde o berço, onde o embalaram fadas, até á praiade Botafogo, aonde ellas o trouxeram, por um chãode rosas e bogaris. Nenhum revez, nenhum mallogro,nenhuma pobreza;—vida placida, cosida degoso, com rendas de superfluo. Em marcha para alua!
Lucien relanceou os olhos pelo gabinete, ondefazia principal figura a secretária, e sobre ella os dousbustos de Napoleão e Luiz Napoleão. Relativamentea este ultimo, havia ainda, pendentes da parede, umagravura ou lithographia representando aBatalhade Solferino, e um retrato da imperatriz Eugenia.
Rubião tinha nos pés um par de chinellas dedamasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro comborla de seda preta. Na bocca, um riso azul claro.
—Monsieur...
—Uhm! repetiu Quincas Borba, de pé nos joelhos do senhor.
Rubião voltou a si e deu com o barbeiro. Conhecia-opor tel-o visto ultimamente na loja; ergueu-seda cadeira, Quincas Borba latia, como a defendel-ocontra o intruso.
—Socega! cala a boca! disse-lhe Rubião; e ocachorro foi, de orelha baixa, metter-se por traz dacesta de papeis. Durante esse tempo, Lucien desembrulhavaos seus apparelhos.
—Monsieur veut se faire raser, n'est-ce pas?Pourquoi donc a-t-il laisser croître cette belle barbe?Apparemment que c'est un voeu d'amour? J'enconnais qui ont fait de pareils sacrifices; j'ai mêmeété confident de quelques personnes aimables...
—Justamente! interrompeu Rubião.
Não entendera nada; posto soubesse algum francez,mal o comprehendia lido—como sabemos,—enão o entendia fallado. Mas, phenomeno curioso,não respondeu por impostura; ouviu as palavras,como se fossem comprimento ou acclamação; e,ainda mais curioso phenomeno, respondendo-lhe emportuguez, cuidava fallar francez.
—Justamente! repetiu. Quero restituir a caraao typo anterior; é aquelle.
E, como apontasse para o busto de Napoleão III,respondeu-lhe o barbeiro pela nossa lingua:
—Ah! o imperador! Bonito busto, em verdade.Obra fina. O senhor comprou isto aqui ou mandouvir de Paris? São magnificos. Lá está o primeiro, ogrande; este era um genio. Se não fosse a traição,oh! os traidores, vê o senhor? os traidores sãopeiores que as bombas de Orsini.
—Orsini! um coitado!
—Pagou caro.
—Pagou o que devia. Mas não ha bombas nemOrsini contra o destino de um grande homem, continuouRubião. Quando a fortuna de uma nação põena cabeça de um grande homem a coroa imperial,não ha maldades que valham... Orsini! um bobo!
Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitarabaixo as barbas do Rubião, para lhe deixar somentea pera e os bigodes de Napoleão III; encarecia-lheo trabalho; affirmava que era difficil comporexactamente uma cousa como a outra, E á medidaque lhe cortava as barbas, ia-as gabando.—Quelindos fios! Era um grande e honesto sacrificio quefazia, em verdade...
—Seu barbeiro, você é pernostico, interrompeuRubião. Já lhe disse o que quero; ponha-me a caracomo estava. Alli tem o busto para guial-o.
—Sim, senhor, cumprirei as suas ordens, e veráque semelhança vae sair.
E zás, zás, deu os ultimos golpes ás barbas deRubião, e começou a rapar-lhe as faces e os queixos.Durou longo tempo a operação; o barbeiro ia tranquillamenterapando, comparando, dividindo os olhosentre o busto e o homem. Ás vezes, para melhorcotejal-os, recuava dous passos, olhava-os alternadamente,inclinava-se, pedia ao homem que se virassede um lado ou de outro, e ia ver o lado correspondente do busto.
—Vae bem? perguntava Rubião.
Lucien pedia-lhe com um gesto que se calasse, eproseguia. Recortou a pera, deixou os bigodes, eescanhoou á vontade, lentamente, amigamente,aborrecidamente, adivinhando com os dedos algumapontinha imperceptivel de cabello no queixo ou naface, para não o consentir, nem por suspeita. Ásvezes Rubião, cançado de estar a olhar para o tecto,emquanto o outro lhe aperfeiçoava os queixos, pediapara descançar. Descançando, apalpava o rosto esentia pelo tacto a mudança.
—Os bigodes é que não estão muito compridos,observava.
—Falta arranjar-lhe as guias; aqui trago osferrinhos para encurval-os bem sobre o labio, e depoisfaremos as guias. Ah! eu prefiro compor deztrabalhos originaes a uma só copia.
Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodese a pera fossem bem retocados. Emfim, prompto.Rubião deu um salto, correu ao espelho, no quarto,que ficava ao pé; era o outro, eram ambos, era ellemesmo, em summa.
—Justamente! exclamou tornando ao gabinete,onde o barbeiro, tendo arrecadado os apparelhos,fazia festas ao Quincas Borba.
E indo á secretária, abriu uma gaveta, tirou umanota de vinte mil réis, e deu-lh'a.
—Não tenho troco, disse o outro.
—Não precisa dar troco, acudiu Rubião com umgesto soberano; tire o que houver de pagar á casa,e o resto é seu.
Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, eviu passar muitas cousas sumptuosas. Estava emBiarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne,parece. Governou um grande Estado, ouviu ministrose embaixadores, dansou, jantou,—e assim outrasacções narradas em correspondencias de jornaes,que elle lera e lhe ficaram de memoria. Nemos ganidos de Quincas Borba logravam espertal-o.Estava longe e alto. Compiègne era no caminho dalua. Em marcha para a lua!
Quando desceu da lua, ouviu os ganidos do cachorroe sentiu frio nos queixos. Correu ao espelho e verificouque a differença entre a cara barbada e a caralisa era grande mas que, assim lisa, não lhe afiava,mal. Os comensaes chegaram á mesma conclusão.
—Está perfeitamente bem! Ha muito que deviater feito isso. Não é que as barbas grandes lhe tirassema nobreza do rosto; mas, assim como estáagora, tem o que tinha, e mais um tom moderno...
—Moderno, repetiu o amphytrião.
Fóra, egual espanto. Todos achavam sinceramenteque este outro aspecto lhe ia melhor que o anterior.Uma só pessoa, o Dr. Camacho, posto julgasse queos bigodes e a pera ficavam muito bem no amigo,ponderou que era de bom aviso não alterar o rosto,verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constanciadevia reproduzir.
—Não é por lhe fallar de mim, concluiu; mas,nunca me hade ver a cara de outro modo. É umanecessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificadaaos principios,—porque eu nunca tenteiconciliar principios, mas homens,—minha vida, digo,é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.
Rubião ouvia com seriedade, e acenava de cabeçaque sim, que devia ser assim por força. Sentia-se entãoimperador dos francezes, incognito, de passeio;descendo á rua, voltou ao que era. Dante, que viutantas cousas extraordinarias, affirma ter assistido noinferno ao castigo de um espirito florentino, que umaserpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidosficaram, que afinal já se não podia distinguirbem se era um ente unico, se dous. Rubiãoera ainda dous. Não se misturavam nelle a propriapessoa com o imperador dos francezes. Revesavam-se;chegavam a esquecer-se um do outro. Quando erasó Rubião, não passava do homem do costume.Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se,um sem outro, ambos integraes.
—Que mudança é essa? perguntou Sophia,quando elle lhe appareceu no fim da semana.
—Vim saber do seu joelho; está bom?
—Obrigada.
Eram duas horas da tarde. Sophia acabava devestir-se para sair, quando a criada lhe fora dizerque estava alli Rubião,—tão mudado de cara queparecia outro. Desceu a vel-o curiosa; achara-o nasala, de pé, lendo os cartões de visita.
—Mas que mudança é essa? repetiu ella.Rubião, sem nenhuma ideia imperial, respondeuque suppunha ficarem-lhe melhor os bigodes e a pera.
—Ou estou mais feio? concluiu.
—Está melhor, muito melhor.
E Sophia disse comsigo que talvez fosse ella acausa da mudança. Sentou-se no sophá, e começoua enfiar os dedos nas luvas.
—Vae sahir?
—Vou, mas o carro ainda não veiu.
Cahiu-lhe uma das luvas. Rubião inclinou-se paraapanhal-a, ella fez a mesma cousa, ambos pegaramna luva, e teimando em levantal-a, succedeu queas caras encontraram-se no ar, e bateram uma naoutra. Pangloss, se tem assistido ao episodio, emendariaa sua theoria dos narizes, que, segundo elle,foram feitos para uso dos oculos, quando a verdadeé que foram destinados a impedir o encontrocasual e involuntario das bocas de um e de outrosexo. Assim succedeu aqui. O nariz della bateu nodelle, e as boccas ficaram intactas para rir, comoriram.
—Machuquei-a?
—Não! eu é que lhe pergunto...
E riram outra vez. Sophia calçou a luva, Rubiãofitou-lhe um pé que se mexia disfarçadamente, atéque o criado veiu dizer que a carruagem chegára.Ergueram-se, e ainda uma vez riram.
Teso, descoberto, o lacaio abriu a portinhola docoupé, quando Sophia assomou á porta. Rubião offereceua mão para ajudal-a a entrar, ella acceitou oobsequio e entrou.
—Agora, até...
Não pôde acabar a phrase; Rubião entrára apósella e sentára-se-lhe ao lado; o lacaio fechou aportinhola, trepou á almofada, e o carro partiu.
Tão rápido foi tudo, que Sophia perdeu a voz e omovimento; mas, ao cabo de alguns segundos:
—Que é isto?... Senhor Rubião, mande parar ocarro.
—Parar? Mas a senhora não me disse que iasair e esperava por elle?
—Não ia sair com o senhor... Não vê que...Mande parar...
Desatinada, quiz ordenar ao cocheiro que parasse;mas a ideia de um possivel escandalo fel-a deter-sea meio caminho. Ocoupé entrara na rua Bella daPrinceza. Sophia novamente pediu a Rubião queadvertisse na inconveniencia de irem assim, á vistade Deus e de todo mundo, Rubião respeitou o escrupulo,e propoz que descessem as cortinas.
—Eu acho que não faz mal que nos vejam, explicouRubião; mas, fechando as cortinas, ninguemnos vê. Se quer?
Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de ume outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se dedentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse,de fóra ninguem os via. Sós, completamentesós, como naquelle dia em que ás mesmas duashoras da tarde, em casa d'ella, Rubião lhe lançou emrosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça, estavalivre; aqui dentro do carro fechado, não podiacalcular as consequencias.
Rubião, entretanto, accommodára as pernas e nãodizia nada.
Sophia encolhera-se muito ao canto. Podia serextranheza da situação, podia ser medo; mas eraprincipalmente repugnancia. Nunca esse homem lhefez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menosdura, se querem, mas que se reduzia á incompatibilidade,—comodirei que não aggrave os ouvidos?—áincompatibilidade da epiderme. Ondeiam os sonhos de ha poucos dias? Ao simples convitede um passeio, a sós, á Tijuca, subiu com elle amontanha, a galope, desmontou, ouviu palavras deadoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iamessas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes,as mãos amigas e longas, os pés inquietos, aspalavras meigas e os ouvidos cheios de misericordia?Tudo esqueceu, tudo desappareceu, agora que ambosse achavam deveras sós, insulados pelo carro epelo escandalo.
E os cavallos continuavam a andar, sacudindo aspatas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras darua Bella da Princeza. Que faria ella chegando aoCattete? iria á cidade com elle? Pensou em seguirpara a casa de alguma amiga deixal-o-hia dentro,diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudoao marido. No meio daquella agonia, atravessaram-lheo cerebro algumas memorias banaes, ou extranhasá situação, como a noticia de um roubo dejoias lida de manhã nos jornaes, a ventania da vespera,um chapéo. Afinal fixou-se em um só cuidado.Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que elle continuavaa olhar para a frente, calado, com o castão da bengalano queixo. Não lhe ficava mal a attitude, tranquilla,séria, quasi indifferente; mas então para quese metteu no carro? Sophia quiz romper o silencio;por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quasique a irritou a quietação do homem, cuja acção sópodia ser explicada pela paixão antiga e violenta.Depois, imaginou que elle proprio estaria arrependido,e disse-lh'o em bons termos.
—Não vejo que me possa arrepender de cousanenhuma, acudiu elle, voltando-se. Quando a senhoradisse que era máu irmos assim, á vista dopublico, abaixei as cortinas. Não concordei, masobedeci.
—Chegamos ao Cattete, atalhou ella; quer queo leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade.
—Podemos andar á tôa.
—Como?
—Á tôa, os cavallos vão andando e nós vamosconversando, sem que nos ouçam nem adivinhem...
—Pelo amor de Deus! não me falle assim, deixe-me,saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e osenhor toma conta d'elle. Que é que quer dizer?Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos parao lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixal-oa porta de casa...
—Mas eu sahi ha pouco de casa, vou para acidade. Que mal ha em levar-me até lá? Se é paraque não nos vejam, como foi com as cortinas, apeio-me,em qualquer logar,—na praia de Santa Luzia,por exemplo,—do lado do mar...
—O melhor é descer aqui mesmo.
—Mas porque não iremos até a cidade?
—Não, não póde ser. Peço-lhe por tudo que lhefor mais sagrado! Não faça escandalo; vamos, diga-meo que é preciso para obter uma cousa tão simples?Quer que me ajoelhe aqui mesmo?
Apezar da estreiteza do espaço, ia dobrando osjoelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazel-a sentar-seoutra vez.
—Não é preciso que se ajoelhe, disse com brandura.
—Obrigada; peço-lhe então por Deus, por suamãe, que está no ceu...
—Deve estar no ceu, confirmou Rubião. Erauma santa senhora! As mães são sempre boas; masdaquella, ninguem que a conheceu poderá dizer outracousa senão que era uma santa. E prendada, comopoucas. Que dona de casa! Hospedes, para ella,tanto fazia cinco como cincoenta, era a mesma cousa,cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Osescravos davam-lhe o nome deSinhá Mãe, porqueera, realmente, mãe para todos. Deve estar nocéu!
—Bem, bem, atalhou Sophia. Pois faça-me istopor amor de sua mãe; faz?
—Isto que?
—Apeiar-se aqui mesmo?
—E ir a pé para a cidade? Não posso. É scismasua; ninguem nos vê. E depois estes seus cavallossão magnificos. Já reparou como atiram as patas,lentamente, plás... plás... plás... plás...
Cançada de pedir, Sophia calou-se, cruzou osbraços e coseu-se ainda mais, se era possivel, aocantinho do carro.
—Agora me lembro, pensou ella; mando parar áporta do armazem do Christiano; digo-lhe o modo porque este homem se introduziu nocoupé, os pedidosque lhe fiz o as respostas que me deu. Antes issoque fazel-o apear mysteriosamente em qualquer rua.
Entretanto, Rubião estava quieto. De vez emquando volvia no dedo o annel de brilhante,—umsolitario explendido. Não olhava para ella, não lhedizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos.Sophia começava a não entender que razãoo teria levado a entrar no carro. Necessidade detransporte não podia ser. Vaidade, tambem não;fechára as cortinas, á sua primeira queixa de publicidade.Nenhuma palavra amorosa,—uma allusãoremota que fosse, a medo, cheia de veneração esupplica. Era um inexplicavel, um monstro.
—Sophia... disse de repente Rubião; e continuoucom pausa:—Sophia, os dias passam, masnenhum homem esquece a mulher que verdadeiramentegostou delle, ou então não merece o nomede homem. Os nossos amores não serão esquecidosnunca,—por mim, está claro, e estou certo quenem por ti. Tudo me déste, Sophia; a tua propriavida correu perigo. Verdade é que eu te vingaria,minha bella. Se a vingança póde alegrar os mortos,terias o maior prazer possivel. Felizmente, o meudestino protegeu-nos, e pudemos amar sem peias nemsangue...
A moça olhava espantada.
—Não te espantes, continuou elle; não nos vamosseparar; não, não te fallo de separação. Nãome digas que morrerias; sei que havias de chorarmuitas lagrymas. Eu não,—que não vim ao mundopara chorar,—mas nem por isso a minha dor seriamenor; ao contrario, as dores guardadas no coraçãodoem mais que as outras. Lagrymas são boas porquea pessoa desabafa. Querida amiga, fallo-teassim, porque é preciso termos cautella; a nossainsaciavel paixão póde esquecer esta necessidade.Temos facilitado muito, Sophia; como nascemos umpara o outro, parece-nos que estamos casados, efacilitamos. Ouve, querida, ouve, alma da minhaalma... A vida é bella! a vida é grande! a vida ésublime! Comtigo, porém, que nome haverá que lhepossa dar? Lembras-te da nossa primeira entrevista?
Rubião disse esta ultima palavra, querendo pegar-lhena mão. Sophia recuou a tempo; estava desorientada,não entendia e tinha medo. A voz dellecrescia, o cocheiro podia ouvir alguma cousa... Eaqui uma ideia terrivel a abalou: talvez o intentode Rubião fosse justamente fazer-se ouvir, paraobrigal-a pelo terror,—ou então para que a abocanhassem.Teve impeto de atirar-se a elle, gritarque lhe acudissem, e salvar-se pelo escandalo.
Elle, baixinho, depois de certa pausa:
—A mim lembra-me, como se fosse hontem. Tuchegaste de carro, não era este; era um carro depraça, uma caleça. Desceste medrosa, com o veupela cara; tremias como varas verdes... Mas osmeus braços te ampararam... O sol daquelle diadevia ter parado, como quando obedeceu a Josué...E comtudo, minha flor, aquellas horas foram compridascomo diabo, não sei porque; a rigor, deviamser curtas. Era talvez porque a nossa paixão nãoacabava mais,não acabou, nem hade acabar nunca...Em compensação, não vimos mais o sol; ia cahindopara o outro lado das montanhas, quando a minhaSophia, ainda medrosa, sahiu para a rua, e pegou deoutra caleça. Outra ou a mesma? Creio que foi amesma. Não imaginas como fiquei; parecia tonto,beijei tudo em que havias tocado; cheguei a beijara soleira da porta. Creio que já te contei isto. A soleirada porta. E estive quasi, quasi a ir de rastos,beijar os degráos da escada... Não o fiz, recolhi-me,fechei-me para que se não perdesse o teu cheiro;violeta, se bem me recordo...
Não, não era possivel que o intuito de Rubiãofosse fazer crer ao cocheiro uma aventura mentirosa.A voz era tão sumida que Sophia mal podiaescutal-a; mas, se lhe custava a entender as palavras,não chegava a comprehender o sentido dellas.A que vinha aquella historia não succedida? Quemquer que a ouvisse, acceitaria tudo por verdade,tal era a nota sincera, a meiguice dos termos e averosimilhança dos pormenores. E elle continuoususpirando as bellas reminiscencias...
—Mas que caçoada é essa? atalhou finalmenteSophia.
Não lhe respondeu o nosso amigo;—tinha aimagem deante dos olhos, não ouviu a pergunta, efoi andando. Citou-lhe um concerto de Gottschalk.O divino pianista melodiava ao piano; elles ouviam,mas o demonio da musica levou os olhos de umpara outro, e ambos esqueceram o resto. Quando amusica cessou, as palmas romperam, e elles accordaram.Ai tristes! accordaram com o olhar do Palhaem cima delles, um olho de onça brava. Nessa noitecuidou que elle a matasse.
—Senhor Rubião...
—Napoleão, não; chama-me Luiz. Sou o teuLuiz, não é verdade, galante creatura? Teu, teu... Chama-meteu;—o teu Luiz, o teu querido Luiz.Ai, se tu soubesses o gosto que me dás quando teouço essas duas palavras: «Meu Luiz!» Tu és aminha Sophia,—a doce, a mimosa Sophia da minhaalma. Não percamos estes momentos; vamos dizernomes ternos; mas, baixo, baixinho, para que osmalandros da almofada do carro não escutem. Paraque hade haver cocheiros neste mundo? Se o carroandasse por si, a gente fallava á vontade, e iria aofim da terra...
Já então iam costeando o Passeio Publico; Sophianão deu por isso. Olhava fixamente para Rubião;não podia ser calculo de perverso, nem lhe attribuiamofa... Delirio, sim, é o que era; tinha a sinceridadeda palavra, como pessoa que vê ou viu realmenteas cousas que relata.
—É preciso pol-o fóra daqui, pensou a moça.E, apparelhando-se de coragem:—Onde estaremosnós? perguntou-lhe. É occasião de separar-nos.Veja do lado de lá; onde estamos? Parece que é oconvento; estamos no largo da Ajuda. Diga ao cocheiroque páre; ou, se quer, pode apear-se no largoda Carioca. Meu marido...
—Vou nomeal-o embaixador, disse Rubião. Ousenador, se quizer. Senador é melhor; ficam osdous aqui. Embaixador que fosse, não consentiriaque tu o acompanhasses, e as más linguas... Tusabes a opposição que soffro, as calumnias... Ah!ruim gente! Convento da Ajuda, disseste? Que tenstu com elle? Queres ser freira?
—Não; digo que já passamos o convento daAjuda. Vou deixal-o no largo da Carioca, Ou vamosaté o armazem de meu marido?
Sophia tornou a apegar-se ao segundo alvitre;não se faria suspeita ao cocheiro, provaria melhora sua innocencia ao Palha, narrando-lhe tudo, desdea entrada inesperada no carro até o delirio. E quedelirio era esse? Sophia pensou que o motivo podiaser ella propria, e esta ideia fel-a sorrir de piedade.
—Para que? disse Rubião. Vou apeiar-me aquimesmo, é mais seguro. Para que hade elle desconfiarde nós e maltratar-te? Posso castigal-o, mas sempreme ficaria o remorso do mal que elle te causaria.Não, linda flor amiga; o vento que se atrevesse atocar em tua pessoa, acredita que eu mandaria pôrfora do espaço, como um vento indigno. Tu aindanão conheces bem o meu poder, Sophia; anda, confessa.
Como Sophia não confessasse nada, Rubião chamou-lhede bonita, e offereceu-lhe o solitario quetinha no dedo; ella, porém, comquanto amasse asjoias e tivesse a intuição dos solitarios, recusou medrosamentea offerta.
—Comprehendo o escrupulo, disse elle; masnão perdes por isso, porque hasde receber outra pedraainda mais bella, e pela mão de teu marido. Far-te-heiduqueza. Ouviste? O titulo é dado a elle,mas tu é que és a causa. Duque... Duque de que?Vou ver um titulo bonito; ou então escolhe tumesma, porque é para ti, não é para elle, é para ti,minha mimosa. Não é preciso escolher já, vae paracasa e pensa. Não te vexes; manda-me dizer o queachares mais bonito, e faço lavrar immediatamenteo decreto. Tambem podes fazer outra cousa: escolhe,e diz-me no nosso primeiro encontro, no logardo costume. Quero ser o primeiro que te chame duqueza.Querida duqueza... O decreto virá depois.Duqueza da minha alma!
—Sim, sim, disse ella desvairamente, mas avisemoso cocheiro que nos leve até a casa de Christiano.
—Não, apeio-me aqui... Pára! pára!
Rubião ergueu as cortinas, e o lacaio veiu abrira portinhola. Sophia, para tirar toda a suspeita aeste, pediu novamente ao Rubião que fosse comella á casa do marido; disse-lhe que este precisavafallar-lhe, com urgencia. Rubião olhou um poucoespantado para ella, para o lacaio e para a rua; erespondeu que não, que iria depois.
Apenas separados, deu-se em ambos um contraste.
Rubião, na rua, voltou a cabeça para todos oslados, a realidade apossava-se delle e o delirioesvaia-se. Andava, estacava deante de uma loja,atravessava a rua, detinha um conhecido, pedia-lhenoticias e opiniões; exforço inconsciente para sacudirde si a personalidade emprestada.
Ao contrario, Sophia, passado o susto e o espanto,mergulhou no devaneio; todas as referenciase historias mentirosas de Rubião como quelhe davam saudades,—saudades de que?—-«saudadesdo ceu», que é o que dizia o padre Bernardesdo sentimento de um bom christão. Nomesdiversos relampejavam no azul daquella possibilidade.Quanto pormenor interessante! Sophiareconstruiu a caleça velha, onde entrou rapida,donde desceu tremula, para esgueirar-se pelo corredordentro, subir a escada, e achar um homem,—quelhe disse os mimos mais appetitosos destemundo, e os repetiu agora, ao pé della, no carro,mas não era, não podia ser o Rubião. Quem seria?Nomes diversos relampejavam no azul daquellapossibilidade.
Espalhou-se a nova da mania de Rubião. Alguns,não o encontrando nas horas do delirio, faziam experiencias,a ver se era verdadeiro o boato; encaminhavama conversação para os negocios de Françae do imperador. Rubião resvalava ao abysmo, e convencia-os.
Passaram-se alguns mezes, veiu a guerra franco-prussiana,e as crises de Rubião tornaram-se maisintensas e menos espaçadas. Quando as malas daEuropa chegavam cedo, Rubião sahia de Botafogo,antes do almoço, e corria a esperar os jornaes; compravaaCorrespondencia de Portugal, e ia lel-a noCarceler. Quaesquer que fossem as noticias, dava-lheso sentido da victoria. Fazia a conta dos mortose feridos, e achava sempre um grande saldo a seufavor. A quéda de Napoleão III foi para elle a capturado rei Guilherme, a revolução de 4 de Setembroum banquete de bonapartistas.
Em casa, os amigos do jantar não se mettiam adissuadil-o. Tambem não confirmavam nada, porvergonha uns dos outros; sorriam e desconversavam.Todos, entretanto, tinham as suas patentes militares,o marechal Torres, o marechal Pio, o marechalRibeiro, e acudiam pelo titulo. Rubião via-os fardados;ordenava um reconhecimento, um ataque, enão era necessario que elles sahissem a obedecer; ocerebro do amphytrião cumpria tudo. Quando Rubiãodeixava o campo de batalha para tornar á mesa,esta era outra. Já sem prataria, quasi sem porcellananem crystaes, ainda assim apparecia aosolhos de Rubião régiamente esplendida. Pobres gallinhasmagras eram graduadas em faisões; picadostriviaes, assados de má morte traziam o sabor das maisfinas iguarias do céo e da terra. Os comensaes faziamalgum reparo, entre si,—ou ao cosinheiro,—masLucullo ceiava sempre com Lucullo. Toda a maiscasa, gasta pelo tempo e pela incuria, tapetes desbotados,mobilias truncadas e descompostas, cortinasenxovalhadas, nada tinha o seu actual aspecto, masoutro, lustroso e magnifico. E a linguagem era tambemdiversa, rotunda e copiosa, e assim os pensamentos,alguns extraordinarios, como os do finadoamigo Quincas Borba,—theorias que elle não entendera,quando lh'as ouvira outr'ora, em Barbacena,e que ora repetia com lucidez, com alma,—ás vezes,empregando as mesmas phrases do philosopho. Comoexplicar essa repetição do obscuro, esse conhecimentodo inextricavel, quando os pensamentos e as palavraspareciam ter ido com os ventos de outros dias? Eporque todas essas reminiscencias desappareciamcom a volta da razão?
A compaixão de Sophia,—explicado o mal doRubião pelo amor que elle lhe tinha,—era umsentimento medio, não sympathia pura nem egoismoferrenho, mas participando de ambos. Uma vez queevitasse alguma situação identica á docoupé, tudoia bem. Nas horas em que Rubião estava lucido,escutava-o e fallava-lhe com interesse,—até porquea doença, dando-lhe audacia nos momentos de crise,dobrava-lhe a timidez nas horas normaes. Não sorria,como o Palha, quando Rubião subia ao throno oucommandava um exercito. Crendo-se autora do mal,perdoava-lh'o; a idéa de ter sido amada até á loucura,sagrava-lhe o homem.
—Porque não o tratam? perguntou uma noiteD. Fernanda, que alli o conhecera no anno anterior;póde ser que se cure.
—Parece que não é cousa grave, acudiu o Palha;tem desses accessos, mas assim mansos, como viu,ideias de grandeza, que passam logo; e repare que,fóra daquillo, conversa perfeitamente. Comtudo,póde ser... Que acha V. Ex.?
Theophilo, o marido de D. Fernanda, respondeuque sim, que era possivel.
—Que fazia elle, ou que faz agora? continuou odeputado.
—Nada, nem agora nem antes. Era rico,—masgastador. Conhecemol-o quando veiu de Minas, efomos, por assim dizer, o seu guia no Rio de Janeiro,aonde não voltara desde longos annos. Bom homem.Sempre com luxo, lembra-se? Mas, não ha riquezainexgotavel, quando se entra pelo capital; foi o queelle fez. Hoje creio que tenha pouco...
—Podia salvar-lhe esse pouco, fazendo-se nomearcurador, em quanto elle se trata. Não sou medico,mas póde ser que esse seu amigo fique bom.
—Não digo que não. Realmente, é pena... Dá-secom todos e presta seus serviços. Sabe que estevepara ser nosso parente? Pois não! quis casar comMaria Benedicta.
—A proposito de Maria Benedicta, interrompeuD. Fernanda, ia-me esquecendo que trago uma cartadella para mostrar á senhora; recebi-a hontem. Jáha de saber que, em breve, estão de volta? Estáaqui.
Entregou a carta a Sophia, que a abriu sem enthusiasmo,e a leu com tedio. Era mais que umavulgar carta transatlantica, era um deposito moral,uma confissão intima e completa de pessoa feliz eagradecida. Contava os mais recentes episodios daviagem, desordenadamente, porque os viajanteseram sobrepostos a tudo, e as mais bellas obras dohomem ou da natureza valiam menos que os olhosque as miravam. Ás vezes, um incidente de hospedariaou de rua comia mais papel e trazia mais interesseque outros, pela razão de pôr em relevo asqualidades do marido. Maria Benedicta amava tantoou ainda mais que no primeiro dia. No fim, a medo,empost-scriptum, pedindo que o não dissesse aninguem, confessava que era mãe.
Sophia dobrou o papel, não já com tedio, senãocom despeito, e por dous motivos que se contradizem;mas a contradicção é deste mundo. Cotejadaaquella carta com as que recebera de MariaBenedicta, dir-se-hia que ella era apenas uma conhecida,sem outro laço de sangue ou de affecto;e, comtudo, não quereria ser confidente d'aquellafelicidade cochichada do outro lado do oceano, cheiade minucias, de adjectivos, de exclamações, do nomede Carlos Maria, dos olhos de Carlos Maria, dos ditosde Carlos Maria, finalmente do filho de Carlos Maria.Parecia acinte, e quasi fazia crer na complicidadede D. Fernanda.
Habil, sabendo domar-se a tempo, Sophia dissimulouo despeito, e restituiu sorrindo a carta daprima. Quiz dizer que, pelo texto, a felicidade deMaria Benedicta devia estar intacta como a levaradaqui, mas a voz não lhe passou da garganta. D. Fernandaé que se incumbiu da conclusão:
—Vê-se bem que é feliz!
—Parece que sim.
Se a manhã seguinte não fosse chuvosa, outraseria a disposição de Sophia. O sol nem sempre éofficial de boas ideias; mas, ao menos, permittesahir, e a troca do expectaculo muda as sensações.Quando Sophia acordou já a chuva cahia grossae continua, e o céo e o mar era tudo um, tão baixasestavam as nuvens, tão espessa era a cerração.
Tedio por dentro e por fóra. Nada em que espraiassea vista e descançasse a alma. Sophia metteua alma em um caixão de cedro, encerrou a esteno caixão de chumbo do dia, e deixou-se estar sinceramentedefuncta. Não sabia que os defunctos pensam,que um enxame de noções novas vem substituiras velhas, e que elles saem criticando o mundocomo os expectadores saem do theatro criticando apeça e os actores. A defuncta sentiu que algumasnoções e sensações continuavam a vida. Vinham demistura, mas tinham um ponto de partida commum,—acarta da vespera e as recordações que lhetrouxe de Carlos Maria.
Em verdade, cuidára ter arredado para longe essafigura aborrecida, e eil-a que reapparecia, que sorria,que a fitava, que lhe sussurrava ao ouvido as mesmaspalavras do vadio egoista e enfatuado, que a convidouum dia á valsa do adulterio e a deixou sosinhano meio do salão. Á volta dessa vinham outras;Maria Benedicta, por exemplo, um caco de gente, queella foi buscar á roça para lhe dar lustre de cidade,e que esqueceu todos os beneficios para só se lembrardas suas ambições. E D. Fernanda tambem,madrinha dos seus amores, que de caso pensado,trouxera na vespera a carta de Maria Benedicta comopost-scriptum confidencial. Não advertiu que oprazer da amiga bastava a explicar o esquecimentoda parte reservada da carta; menos aindaindagou se a natureza moral de D. Fernanda comportavaessa supposição. Vieram assim outras ideiase imagens, e tornaram as primeiras, e todas se iamligando e desligando. Entre ellas, appareceu umalembrança da vespera. O marido de D. Fernanda,envolvera Sophia em um grande olhar de admiração.Ella, em verdade, estava nos seus melhores dias; ovestido sublinhava admiravelmente a gentileza dobusto, o estreito da cintura e o relevo delicado dascadeiras;—erafoulard, côr de palha.
—Côr depalha, accentuou Sophia rindo, quandoD. Fernanda o elogiou, pouco depois de entrar;côr depalha, como uma lembrança deste senhor.
Não é facil dissimular o prazer da lisonja; omarido sorriu cheio de vaidade, procurando lernos olhos dos outros o effeito daquella prova minuciosade amor. Theophilo elogiou tambem o vestido,mas era difficil miral-o sem mirar tambem o corpoda dona; d'alli os olhos compridos que lhe deitou,sem concupiscencia, é certo, e quasi sem reincidencia.Pois essa lembrança da vespera, um gesto sem convite,uma admiração sem desejo, veiu metter-se depermeio agora, quando Sophia cuidava na maldadeda outra.
Carlos Maria, Theophilo... Outros nomes relampejavamno céo daquella possibilidade, como ficouexpresso no cap. CLIV. E vieram todos agora, porquea chuva continuava a cair e o céo e o mar estavamainda unidos pela mesma cerração. Vieram todosesses nomes, com os proprios sujeitos correspondentes,e até vieram sujeitos sem nomes,—os adventiciose ignorados,—que uma só vez passarampor ella, cantaram o hymno da admiração e receberamo obolo da boa vontade. Porque não reteve algum detantos, para ouvil-o cantar e enriquecel-o?Não é que os obolos enriqueçam a ninguem, mas haoutras moedas de maior valia. Porque não reteve umde tantos nomes elegantes, e até egregios? Essa perguntasem palavras correu-lhe assim pelas veias,pelos nervos, pelo cerebro, sem outra resposta maisque a agitação e a curiosidade.
Nisto, a chuva cessou um pouco, e um raio de sollogrou romper o nevoeiro,—um desses raios humidosque parecem vir de olhos que choraram. Sophiacuidou que ainda podia sair; estava inquieta por vêr,por andar, por sacudir aquelle torpor, e esperou queo sol varresse a chuva e tomasse conta do ceu e daterra; mas o grande astro percebeu que a intençãodella era constituil-o lanterna de Diogenes, e disseao raio humido: «Volta, volta ao meu seio, raiocasto e virtuoso; não vás tu conduzil-a aonde o seudesejo a quer levar. Que ame, se lhe parece; queresponda aos bilhetes namorados,—se os recebe enão queima,—não lhe sirvas tu de archote, luz domeu seio, filho das minhas entranhas, raio, irmãodos meus raios...»
E o raio obedeceu, recolhendo-se ao foco central,um pouco espantado do temor do sol, que tem vistotantas cousas ordinarias e extraordinarias. Entãoo veu de nuvens fez-se outra vez espesso, e mais escuro,e a chuva tornou a cahir em grandes bategas.
Sophia resignou-se á reclusão. Já agora tinha aalma tão confusa e diffusa como o expectaculo exterior.Todas as imagens e nomes perdiam-se nomesmo desejo de amar. É justo dizer que ella,quando regressava desses estados de conscienciavagos e obscuros, tentava fugir-lhes e guiava o espiritopara diverso assumpto; mas succedia-lhecomo aos que têm somno e forcejam por velar:os olhos fecham-se de cada vez que espertam, etornam a espertar para se fecharem outra vez. Afinal,deixou a vista da chuva e do nevoeiro; estava cançada,e para repousar, foi abrir as folhas do ultimonumero daRevista dos Dous Mundos. Um dia, nomelhor dos trabalhos da commissão das Alagôas,perguntára-lhe uma das elegantes do tempo, casadacom um senador:
Está lendo o romance de Feuillet, naRevistados Dous Mundos?
—Estou, acudiu Sophia; é muito interessante,Não estava lendo, nem conhecia aRevista; mas,no dia seguinte, pediu ao marido que a assignasse;leu o romance, leu os que sahiram depois, e fallavade todos os que lêra ou ia lendo. Abertas as folhasdaquelle numero, e acabada uma novella, Sophiarecolheu-se ao quarto e atirou-se á cama. Passáramal a noute, não lhe custou pegar no somno,—profundo,largo e sem sonhos,—excepto para o fim,em que teve um pesadelo. Estava deante da mesmaparede de cerração daquelle dia, mas no mar, áproa de uma lancha, deitada de bruços, escrevendocom o dedo na agua um nome—Carlos Maria.E as lettras ficavam gravadas, e para maior nitidez,tinham os sulcos de espuma. Até aqui nada havia queatordoasse, a não ser o mysterio; mas é sabido queos mysterios dos sonhos parecem factos naturaes.Eis que a parede da cerração se rasga, e nada menosque o proprio dono do nome apparece aos olhos deSophia, caminha para ella, toma-a nos braços ediz-lhe muitas palavras de ternura, analogas ásque ella, alguns mezes antes, ouvira ao Rubião.E não a afligiram, como as d'este; ao contrario,escutou-as com prazer, meia cahida paratrás, como se desmaiasse. Já não era lancha, mascarruagem, onde ella se ia com o primo, mãos presas,namorada de uma linguagem de ouro e sandalo.Tambem aqui não ha que atterre. O terror veiuquando a carruagem parou, muitos vultos mascaradosa cercaram, mataram o cocheiro, arrancaramas portinholas, apunhalaram Carlos Maria e deitaramo cadaver ao chão. Depois, um delles, que pareciaser o cabo de todos, tomou o lugar do defuncto,tirou a mascara e disse a Sophia que se não assustasse,que elle a amava cem mil vezes mais queo outro. Logo em seguida, pegou-lhe nos pulsos edeu-lhe um beijo, mas um beijo humido de sangue,cheirando a sangue. Sophia soltou um grito de horrore acordou. Tinha ao pé do leito o marido.
—Que foi? perguntou elle.
—Ah! respirou Sophia. Gritei, não gritei?
Palha não respondeu nada; olhava á tôa, pensavaem negocios. Então um receio assaltou a mulher, sehaveria effectivamente fallado, murmurado algumapalavra, um nome qualquer,—o mesmo que escreverana agua. E logo, espreguiçando os braçospara o ar, fel-os cahir sobre os hombros do marido,cruzou as pontas dos dedos na nuca, e murmuroumeia alegre, meia triste:
—Sonhei que estavam matando você.
Palha ficou enternecido. Havel-a feito padecer porelle, ainda que em sonhos, encheu-o de piedade, masde uma piedade gostosa, um sentimento particular,intimo, profundo,—que o faria desejar outros pesadelos,para que o assasinassem aos olhos della, epara que ella gritasse augustiada, convulsa, cheia dedor e de pavor.
No dia seguinte, o sol appareceu claro e quente, oceu limpido, e o ar fresco. Sophia metteu-se no carroe saiu a visitas e a passeio para desforrar-se da reclusão.Já o proprio dia lhe fez bem. Vestiu-se cantarolando.O trato das senhoras que a receberam em suacasa,—e das que achou na rua do Ouvidor, a agitaçãoexterna, as noticias da sociedade, a boa feiçãode tanta gente fina e amiga, bastaram a espancar-lheda alma os cuidados da vespera.
Assim, pois, o que parecia vontade imperiosareduzia-se a velleidade pura, e, com algumas horasde intervallo, todos os maos pensamentos se recolheramás suas alcovas. Se me perguntardes poralgum remorso de Sophia, não sei que vos diga. Hauma escala de resentimento e de reprovação. Nãoé só nas acções que a consciencia passa gradualmenteda novidade ao costume, e do temor á indifferença.Os simples peccados de pensamento sãosujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidarnas cousas affeiçoa tanto a ellas,—que, afinal, oespirito não as estranha, nem as repelle. E nestescasos ha sempre um refugio moral na isenção exterior,que é, por outros termos mais explicativos, ocorpo sem macula.
Um só incidente affligiu Sophia naquelle dia puroe brilhante,—foi um encontro com Rubião. Tinhaentrado em uma livraria da rua do Ouvidor paracomprar um romance; em quanto esperava otroco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou orosto o percorreu com os olhos os livros da prateleira,—unslivros de anatomia e de estatistica;—recebeuo dinheiro, guardou-o, e, de cabeça baixa,rapida como uma flexa, saiu á rua, e enfiou paracima. O sangue só lhe socegou, quando a rua dosOurives ficou para traz. Não podia adivinhar que Rubiãoa não tinha visto, sequer; nem podia saber que,não a vendo embora, não sahisse logo, não a conhecesse,não corresse a aggarral-a, a dizer-lhe algumdesvario.
Dias depois, indo a entrar em casa de D. Fernanda,deu com elle no saguão. Cuidou que subisse,e dispoz-se a subir tambem, ainda que receiosa;mas Rubião descia, apertaram-se as mãos familiarmente,e despediram-se até á tarde.
—Elle vem aqui muitas vezes? perguntou Sophiaa D. Fernanda, depois de lhe contar o encontrodo saguão.
—Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; massó da segunda vez appareceu delirando. Das outrasé como viu agora, socegado, e até conversador.Ha nelle sempre alguma cousa que mostra nãoestar completamente bem. Não reparou nos olhos,um pouco vagos? É isso; no mais, conversa bem.Creia, D. Sophia; aquelle homem pode sarar. Porquenão faz com que seu marido tome isto a peito?
—Christiano tem projecto de o mandar examinare tratar; mas, deixe estar que eu o apresso.
—Sim, falle-lhe. Elle parece ser muito amigoda senhora e do Sr. Palha.
—Ter-lhe-ha dito alguma inconveniencia nodelirio, a meu respeito? pensou Sophia. Convirárevellar-lhe a verdade?
Concluiu que não; o proprio mal do Rubião explicariaas inconveniencias. Prometteu que apressariao marido, e, nessa mesma tarde expoz o negocioao Palha, approvando a ideia de tentar a cura.«Era uma grandeamolação,» redarguiu este.E perguntou que interesse tinha D. Fernandaem tornar áquelle negocio. Que o tratasse ellamesma! Era uma atrapalhação ter de cuidardo outro, de o acompanhar, e, provavelmente,de recolher e gerir algum resto de dinheiro queainda houvesse, fazendo-se curador, como disserao Dr. Theophilo. Um aborrecimento de todos osdiabos.
—Já ando com grande carga sobre mim, Sophia.E depois como hade ser? Havemos de trazel-opara casa? Parece que não. Mettel-o onde? Emalguma casa de saude... Sim, mas se não puderemacceital-o? Não heide mandal-o para a Praia Vermelha... Eas responsabilidades? Você prometteuque me falaria?
—Prometti, e affirmei que você faria isto, respondeuSophia sorrindo. Talvez não custe tantocomo parece.
Sophia insistiu ainda, A compaixão de D. Fernandatinha-a impressionado muito; achou-lhe umquê distincto e nobre, e advertiu que se a outra,sem relações estreitas nem antigas com Rubião,assim se mostrava interessada, era de bom tom nãoser menos generosa.
Tudo se fez socegadamente. Palha alugou umacasinha na rua do Principe, cerca do mar, ondemetteu o nosso Rubião, alguns trastes e o cachorroamigo. Rubião acceitou a mudança sem desgosto,e, desde que lhe tornou o delirio, com enthusiasmo.Estava nos seus paços de S. Cloud.
Não succedeu assim aos amigos da casa, que receberama noticia da mudança como um decreto deexilio. Tudo na antiga habitação fazia parte delles,o jardim, a grade, os canteiros, os degraus de pedra,a enseada. Traziam tudo de cór. Era entrar, penduraro chapeu, e ir esperar na sala. Tinham perdidoa noção da casa alheia e do obsequio recebido.Depois, a visinhança. Cada um daquelles amigos doRubião estava affeito a ver as pessoas do logar, ascaras da manhã e as da tarde, alguns chegavam acomprimental-as, como aos seus proprios visinhos.Paciencia! iriam agora para Babylonia, como os desterradosde Sião. Onde quer que estivesse o Euphrates,achariam salgueiros em que pendurassem asharpas saudosas,—ou mais propriamente, cabidesem que puzessem os chapéos. A differença entre ellese os prophetas é que, ao cabo de uma semana, pegariamoutra vez dos instrumentos, e os tangeriamcom a mesma graça e força; cantariam os velhoshymnos, tão novos como no primeiro dia, e Babelacabaria por ser a mesma Sião, perdida e resgatada.
—O nosso amigo precisa de repouso por algumtempo, disse-lhes o Palha, em Botafogo, na vesperada mudança. Hão de ter reparado que não anda bom;tem suas horas de esquecimento, de transtorno, deconfusão, vae tratar-se, por emquanto é preciso quedescance. Arranjai-lhe uma casa pequena, mas pódeser que, ainda assim, passe para um estabelecimentode saude.
Ouviram attonitos. Um delles, o Pio, voltando asi mais depressa que os outros, respondeu que hamais tempo se devia ter feito aquillo; mas, parafazel-o, era preciso ter influencia decisiva no animode Rubião.
—Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras,que era indispensavel consultar um medico, porme parecer que tinha alguma cousa no estomago... Eraum modo de desviar o sentido, comprehende?Mas elle respondia sempre que não tinha nada, diggeriabem...—«Mas come menos, dizia-lhe eu;ha dias em que não come quasi nada; está maismagro, um pouco amarello...» Comprehende quenão podia dizer-lhe a verdade. Cheguei a fallar a ummedico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião nãoo quiz receber.
Os outros quatro iam confirmando de cabeçatoda aquella invenção; era o mais que se lhes podiapedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento dogolpe. Acabaram perguntando o numero da novacasa, para irem saber delle. Pobre amigo! Quandose arrancaram dalli, e se despediram uns dos outros,deu-se um phenomeno com que não contavam; é queelles mesmos mal podiam separar-se. Não que osligasse amizade nem estima; o proprio interesse osfazia antipathicos. Mas o costume de se verem todosos dias, ao almoço e ao jantar,—á mesma mesa,como que os tinha fundido uns nos outros; a necessidadeos fez supportaveis, o tempo os tornoumutuamente precisos. Em resumo, eram os olhos decada um que iam padecer com a ausencia das carasde uso, do gesto, das soiças, dos bigodes, da calva,dos sestros particulares, do modo de comer, defallar e de estar dos companheiros. Era mais queseparação, era desarticulação.
Rubião notou que elles não o acompanharamá casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veiu, e aausencia encheu de tristeza o nosso amigo,—duranteas primeiras semanas. Era a familia que oabandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizeraalgum mal, por obra ou por palavra, e não achounada.
—Conversei com o homem; achei-lhe ideias delirantes.Comquanto não seja alienista, acho quepóde ficar bom... Mas quer saber uma descobertainteressante?
—Crê que fique bom? disse D. Fernanda, semattender á pergunta do Dr. Falcão.
Era deputado o Dr. Falcão, deputado e medico,amigo da casa, varão sabedor, sceptico e frio.D. Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar oRubião, pouco depois que este se transportou paraa casa da rua do Principe.
—Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmentetratado. Póde ser que a doença não tenhaantecedentes na familia. Mande ver um especialista.Mas não quer saber a minha interessantedescoberta?
—Qual é?
—Talvez tenha parte na molestia uma pessoasua conhecida, respondeu elle sorrindo.
—Quem?
—D. Sophia.
—Como assim?
—Elle fallou-me della com enthusiasmo, disse-meque era a mais esplendida mulher do mundo, eque a nomeára duqueza, por não poder nomeal-aimperatriz; mas que não brincassem com elle, queera capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casarcom ella. Conclui que terá tido paixão pela moça;mas pode ser alguma cousa mais. Falla della comtal intimidade, Sophia para aqui, Sophia para alli... Desculpe-me,mas eu creio que os dois se amaram...
—Oh! não!
—D. Fernanda, creio que se amaram. Queadmira? Eu mal a conheço; a senhora parece quenão a conhece ha muito tempo, nem viveu na intimidadedella. Póde ser que se tivessem amado, eque alguma paixão violenta... Supponhamos que ellao mandasse pôr fóra de casa... É verdade que tema mania das grandezas; mas tudo se póde juntar...
D. Fernanda não olhava para elle, vexada de lheouvir aquella supposição; evitava discutil-a pelomelindre do assumpto. Achava a suspeita sem fundamento,absurda, inverosimil; não chegaria a crernaquelle amor espurio, ainda que o ouvisse ao proprioRubião. Um desvairado, em summa. Quando onão fosse, é ainda provavel que lhe não desse fé.Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sophiahouvesse amado aquelle homem, não por elle, maspor ella, tão correcta e pura. Era impossivel. Quizdefendel-a; mas, apezar da intimidade do Dr. Falcão,recuou segunda vez do assumpto, e repetiu apergunta de ha pouco:
—Parece-lhe então que elle pode ficar bom?
—Póde, mas não basta o meu exame. A senhorasabe que, nestas cousas, é melhor um especialista.
Pouco depois, saindo á rua, Falcão sorria da resistenciade D. Fernanda em acceitar a sua hypothese. «Comcerteza, houve alguma cousa, diziaelle comsigo; boa cara, e, si não é um petimetre,é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza...»E repetia algumas phrases de Rubião, evocava ogesto e a modulação terna da voz com que fallavade Sophia, e cada vez mais se lhe ia aggravando asuspeita, «Com certeza...» Era já impossivel quese não tivessem amado; a opposição de D. Fernandaparecia-lhe ingenua,—se não era antes um recursopara desconversar e não tocar na materia. Havia deser isso...
Neste ponto, sem querer, o deputado estacou.Uma suspeita nova assaltara-lhe o espirito. Apozalguns instantes rapidos, abanou a cabeça voluntariamente,como a desmentir-se, como a achar-seabsurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa,e a que occupa deveras o interior do homem, nãofaz caso da cabeça nem dos seus gestos. «Quemsabe se D. Fernanda não suspirou tambem porelle? Essa dedicação não seria um prolongamentode amor, etc.?» E assim foram nascendo perguntas,que achavam no intimo do Dr. Falcão respostaaffirmativa. Resistiu ainda, era amigo da casa,tinha respeito a D. Fernanda, conhecia-a honesta;mas,—ia pensando,—bem podia ser que um sentimentoocculto, recatado,—quem sabe até se provocadopela mesma paixão da outra...? Ha dessas tentações.O contagio da lepra corrompe o mais purosangue; um triste bacillo destróe o mais robustoorganismo.
Pouco a pouco, as velleidades de resistencia foramcedendo á noção da possibilidade, da probabilidadee da certeza. Em verdade, tinha noticia de algumasobras de caridade de D. Fernanda; masaquelle caso era novo. Essa dedicação especial a umhomem que não era familiar da casa, nem velhoamigo, nem parente, adherente, collega do marido,qualquer cousa que o fizesse participe da vida domestica,pelas relações, pelo sangue ou pelo costumenão era explicavel sem algum motivo secreto. Amor,seguramente; curiosidade de mulher honesta, quepóde descambar no vicio e no remorso. Aquella teriarecuado a tempo; ficou-lhe a sympathia morbida... Ed'ahi, quem sabe?
E d'ahi, quem sabe? repetiu o Dr. Falcão na manhãseguinte. A noite não apagara a desconfiança dohomem. E d'ahi quem sabe? Sim, não seria só sympathiamorbida. Sem conhecer Shakespeare, elleemendou Hamlet: «Ha entre o céo e a terra, Horacio,muitas cousas mais do que sonha a vossa vãphilanthropia». Alli andou dedo de amor. E nãochasqueava nem lastimava nada. Já disse que erasceptico; mas, como era tambem discreto, não transmittiua ninguem a sua conclusão.
A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeuas preoccupações de D. Fernanda, relativamentea Rubião. Esta foi a bordo recebel-os, conduziu-osá Tijuca, onde um velho amigo da familia de CarlosMaria alugára e trastejára uma casa, por ordemdelle. Sophia não foi a bordo; mandou ocoupéesperal-os no caes Pharoux, mas D. Fernanda já allitinha uma caleça, que os levou, e mais a ella e ao Palha.De tarde, Sophia foi visitar os recem-chegados.
D. Fernanda não cabia era si de contente. Ascartas de Maria Benedicta os davam por felizes; ellanão poude ler desde logo nos olhos e nas maneirasdo casal a confirmação do escripto. Pareciam satisfeitos.Maria Benedicta não reteve as lagrimas,quando abraçou a amiga, nem esta as suas, e ambasse apertaram como duas irmãs de sangue. No diaseguinte, quando puderam fallar a sós, D. Fernandaperguntou a Maria Benedicta se ella e o maridoeram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãose fitou-a longamente sem achar palavra. Não logroumais que repetir a pergunta:
—Vocês são felizes?
—Somos, respondia Maria Benedicta.
—Não sabe que bem me faz a sua resposta. Nãoé só porque eu teria remorsos, se vocês não tivessem afelicidade que eu imaginei dar-lhes, mas tambem porque é bem bom ver os outros felizes. Elle gosta devocê como no primeiro dia?
—Creio que mais, porque eu o adoro.
D. Fernanda não entendeu esta palavra.Creioque mais, por que eu o adoro! Era verdade, a conclusãonão parecia estar nas premissas; mas era ocaso de emendar outra vez Hamlet: «Ha entre o céoe a terra, Horacio, muitas cousas mais do que sonhaa vossa vãdialectica». Pobre D. Fernanda! Nãoconhecia o poeta, e provavelmente não se conheciaa si, que era ainda o meio mais seguro de decifrara palavra obscura de Maria Benedicta. Esta começoua contar-lhe a viagem, a desfiar as suas impressões ereminiscencias; e, como o marido viesse ter comellas, pouco depois, recorria á memoria delle parapreencher as lacunas.
—Como foi, Carlos Maria?
Carlos Maria lembrava, explicava, ou rectificava,mas sem interesse, quasi impaciente. Adivinhára queMaria Benedicta acabava de confiar á outra as suasventuras, e mal podia encobrir o effeito desagradavelque isto lhe trazia. Para que dizer que era felizcom elle, se não podia ser outra cousa? E porquedivulgar os seus carinhos e palavras, as suas misericordiasde deus grande e amigo?
A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendenciasua. Maria Benedicta queria ter aqui o filho; omarido cedeu,—a custo, mas cedeu. A custo, porque? É difficil explical-o, não menos que entendel-o.Relativamente á maternidade, Carlos Maria tinhaideias pessoaes e singulares, reconditas, não confiadasa ninguem. Achava impudica a natureza em fazer dagestação humana um phenomeno publico, franco ásvistas, crescente até ao aleijão, suggestivo até ao desrespeito.D'ahi vinha o desejo da solidão, do mysterioe da ausencia. Viveria de boamente os ultimos temposno interior de uma casa unica, posta no alto deum morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasseum dia com o filho nos braços e a divindade nos olhos.
Não fez sobre isto nenhuma proposta á mulher.Teria de discutir, e elle não gostava de discutir; preferiaceder. Maria Benedicta tinha naturalmente osentimento contrario: considerava-se a si mesma umtemplo divino e recatado, em que vivia um deus,filho de outro deus. A gestação ia cheia de tedios,de dores, de incommodos que ella occultava o maisque podia ao marido; mas tudo isso dava maior preçoá creaturinha futura. Acolhia o mal com resignação,—senão é que o agasalhava com alegria,—umavez que era a condição da vinda do fructo. Faziacordialmente o officio da especie. E repetia sem palavrasa resposta de Maria de Nazareth: «Eu soua serva do Senhor; faça-se em mim a sua vontade».
—Você que tem? perguntou Maria Benedictaao marido, logo que ficaram sós.
—Eu? Nada. Porque?
—Parecia estar aborrecido.
—Não, não estava aborrecido.
—Estava, sim, insistiu ella.
Carlos Maria sorriu, sem responder. Maria Benedictajá lhe conhecia esse sorriso especial, inexpressivo,sem ternura nem censura, superficial epallido. Não teimou em querer saber, mordeu osbeiços e retirou-se.
No quarto, durante algum tempo, não cuidoude outra cousa que não fosse aquelle sorriso descoradoe mudo, signal de algum aborrecimento, cujaculpa não podia ser senão ella. E percorria toda aconversação, todos os gestos que fizera, e não achavanada que explicasse a frieza, ou o que quer que erade Carlos Maria. Talvez ella se mostrasse excessivanas palavras; era seu costume, se estava contente, pôro coração nas mãos e distribui-lo a amigos e a extranhos.Carlos Maria reprovava essa generosidade,porque dava um ar de sorte grande ao seu estadomoral e domestico, e porque lhe parecia banal e inferior.Maria Benedicta recordava-se que, em Paris,na colonia brazileira, sentira mais de uma vez esseeffeito de suas expansões, e reprimira-se. Mas D.Fernanda estaria no mesmo caso? Não era a autorada felicidade de ambos? Rejeitou essa hypothese, etratou de ver outra. Não a achando,—voltou á primeira,e, segundo lhe succedia sempre, deu razão aomarido. Em verdade, por mais intima e grata quefosse, não devia contar á boa amiga as minuciasda vida; era leviandade sua...
Nauseas vieram interrompel-a neste ponto das reflexões.A natureza lembrava-lhe uma razão deEstado—a razão da especie,—mais instante esuperior aos tedios do marido. Ella cedeu á necessidade;mas, poucos minutos depois, estava ao pé deCarlos Maria, contornando-lhe o pescoço com obraço direito. Elle, sentado, lia uma revista ingleza;pegou-lhe na mão, pendente sobre o peito, e acaboua pagina.
—Você me perdoa? perguntou a mulher, quandoo viu fechar o folheto. Daqui em diante vou sermenos tagarella.
Carlos Maria pegou-lhe nas duas mãos, sorrindoe respondeu com a cabeça que sim. Foi como selançasse uma onda de luz sobre ella; a alegria penetrou-lhea alma. Dir-se-hia que o proprio fetorepercutiu a sensação e abençoou o pae.
—Perfeitamente! Assim é que eu os quero ver!bradou uma voz do lado da varanda.
Maria Benedicta affastou-se rapidamente do marido.A varanda, que communicava para a sala, portres portas, tinha uma destas aberta. Dalli viera avoz; dalli espiava e ria a cabeça de Rubião. Era aprimeira vez que o viam. Carlos Maria, sem se levantar,olhava para elle, serio, esperando. E a cabeçaria, com os seus fartos bigodes de ponta deagulha, mirando um e outro, e repetindo:
—Perfeitamente! assim é que eu os quero ver!
Rubião entrou, estendeu-lhes a mão, que ellesacceitaram sem carinho, disse muitas phrases deadmiração e louvor a Maria Benedicta, ella tão galante,elle tão galhardo; notou que ambos tivessem onome de Maria, especie de predestinação, e acabounoticiando a quéda do ministerio.
—Caiu o ministerio? perguntou involuntariamenteCarlos Maria.
—Não se falla em outra cousa na cidade. Vouabancar-me, sem pedir licença, já que não me offerecemcadeira, continuou elle, sentando-se, tirando abengala que trazia debaixo do braço e firmando asmãos sobre ella. Pois é verdade, o ministerio pediudemissão. Vou organisar outro. Ha de entrar o Palha,o nosso Palha,—seu primo Palha,—e o senhortambem, se lhe dá gosto, será ministro. Precisode um bom gabinete, todo gente amiga e forte,capaz de dar a vida por mim. Hei de chamar oMorny, o Pio, o Camacho, o Rouher, o major Sequeira.A senhora lembra-se do major? Creio quefica com a guerra; não conheço homem mais aptopara os negocios militares.
Maria Benecdicta, aborrecida e impaciente, andavapela sala, á espera que o marido mandasse algumacousa; este disse-lhe com os olhos que se fosse embora;ella não aguardou outro gesto, pediu licençaao hospede e retirou-se. Rubião, depois que ellasahiu, elogiou-a novamente,—uma flor, disse elle;e emendou-se rindo: duas flores, creio que ha alliduas flores. Nosso Senhor as abençoe! Carlos Mariaestendeu-lhe a mão em ar de despedida.
—Meu caro senhor...
—Posso incluil-o no ministerio? perguntou Rubião.
Não ouvindo resposta, entendeu que sim e prometteu-lheuma boa pasta. O major iria para aguerra, e o Camacho para a justiça. Não os conheciaacaso? «Dous grandes homens, Camacho aindamaior que o outro.» E obedecendo a Carlos Maria,que ia andando na direcção da porta, Rubião retirava-sesem se sentir; mas não sahiu tão prompto.Na varanda, antes de descer os degráos, referiuvários factos da guerra. Por exemplo, tinha restituidoa Allemanha aos allemães; era bonito epolitico. Já havia dado Veneza aos italianos. Nãoprecisava mais territorio; as provincias do Rheno,sim, mas havia tempo de as ir buscar.
—Meu caro senhor... insistiu Carlos Mariaestendendo-lhe a mão.
Despediu-o e fechou a porta; Rubião proferiuainda algumas palavras e desceu os degráos. MariaBenedicta, que os espreitava do fundo, veiu ter como marido, reteve-o pela mão, e ficou a ver o Rubiãoque atravessava o jardim. Não ia direito, nemappressado, nem calado; detinha-se, gesticulava,apanhava um galho secco, vendo mil cousas no ar,mais galantes que a dona da casa, mais galhardasque o dono. Da vidraça miravam o nosso amigo,e, em certo lance grotesco, Maria Benedicta nãopôde suster o riso; Carlos Maria, porém, olhavaplacido.
—Mas se a quéda do ministerio é verdadeiradisse ella, sabe você quem está ministro?
—Quem? perguntou Carlos Maria com os olhos.
—Seu primo Theophilo. A prima contou-me queelle andava com suas esperanças, e foi por isso queficou este anno na Corte. Desconfiou, ou já se falavana sahida do ministerio; talvez desconfiasse. Nãome lembra bem o que ella me disse; mas pareceque entra.
—Pode ser.
—Olha, lá sahiu Rubião; mas não, parou, estáolhando para cima, espera talvez a diligencia ou ocarro. Elle tinha carro. Lá vae andando...
—Com quê, o Theophilo está ministro! exclamouCarlos Maria.
E, depois de um instante:
—Creio que dará um bom ministro. Você queriaver-me tambem ministro?
—Se você gostasse, que remedio?
—De maneira que, por teu voto, não o era? perguntouCarlos Maria.
—Que heide responder? pensou ella, escrutandoo rosto do marido.
Elle, rindo:
—Confessa que me adorarias, ainda que eu fosseuma simples ordenança de ministro.
—Justamente! exclamou a moça, lançando-lheos braços aos hombros.
Carlos Maria affagou-lhe os cabellos, e murmurouserio:—Bernadotte foi rei, e Bonaparte imperador.Você queria ser a rainha-mãe da Suecia?
Maria Benedicta não entendeu a pergunta nemelle a explicou. Para explical-a seria mister dizerque possivelmente trazia ella no seio um Bernadotte;mas esta supposição significava um desejo, e o desejouma confissão de inferioridade. Carlos Maria espalmououtra vez as mãos sobre a cabeça da mulher,com um gesto que parecia dizer: "Maria, tu escolhestea melhor parte..." E ella pareceu entendero sentido d'aquelle gesto.
—Sim! sim!
O marido sorriu e tornou á revista ingleza. Ella,encostada á poltrona, passava-lhe os dedos peloscabellos, muito ao de leve e caladinha para nãoperturbal-o. Elle ia lendo, lendo, lendo. MariaBenedicta foi attenuando a caricia, retirando osdedos aos poucos, até que sahiu da sala, onde CarlosMaria continuou a ler um estudo de Sir CharlesLittle, M. P., sobre a famosa estatueta de Narciso,do Museu de Napoles.
Quando Rubião foi á casa de D. Fernanda, á tardinha,ouviu do criado que não podia subir. A senhoraestava incommodada; o senhor estava comella; parece que esperavam o medico. O nosso amigonão teimou, e sahiu.
Era o contrario; era o senhor que estava doente,e a senhora que o acompanhava; mas o criado nãopodia trocar o recado que lhe deram. Outro criadodesconfiou, é certo, que o doente fosse elle e nãoella, porque o vira entrar abatido. Em cima, noquarto delles, havia algum rumor de vozes, oraalto, ora baixo, com intervallos de silencio. Umacriadinha, que subira pé ante pé, desceu dizendoque ouvira lastimar-se o amo; provavelmente asenhora estava perdida. Em baixo, um palavrearsurdo, ouvidos compridos, conjecturas; notavam quede cima não pedissem agua, qualquer remedio, umcaldo, ao menos. A meza posta, o criado engravatado,o cozinheiro orgulhoso e ancioso... Justamente, umdos melhores jantares!
Que era? Theophilo tinha ainda o gesto abatidocom que entrou; estava sentado em um canapé,sem collete, olhos fixos. Ao pé delle, sentada tambem,segurando-lhe uma das mãos, D. Fernandapedia-lhe que socegasse, que não valia a pena. Einclinava-se para ver-lhe o rosto, chamava-o para si,queria que elle encostasse a cabeça ao hombrodella...
—Deixa, deixei, murmurava o marido.
—Não vale a pena, Theophilo! Pois agora umministerio...? Valerá tanto um cargo de pouco tempo,cheio de desgostos, insultos, trabalhos, para que?Não é melhor a vida tranquilla? Vá que haja injustiça;creio que sim, você tem serviços; mas serátamanha perda assim? Anda, querido, socega; vamos jantar.
Theophilo mordia os beiços, puxando uma dassoiças. Não ouvira nada do que a mulher dissera,nem exhortações nem consolações. Ouvia as conversasda noite anterior e daquella manhã, as combinaçõespoliticas, os nomes lembrados, os recusados eos acceitos. Nenhuma combinação o incluiu, postoque elle fallasse com muita gente ácerca do verdadeiroaspecto da situação. Era ouvido com attençãopor uns, com impaciencia por outros. Uma vez, osoculos do organisador pareceram interrogal-o,—masfoi rapido o gesto e illusorio. Theophilo recompunhaagora a agitação de tantas horas e logares,—lembravaos que o olhavam de esguelha, os que sorriam,os que trariam a mesma cara que elle. Parao fim já não fallava; as ultimas esperanças estalavam-lhenos olhos como lamparina de madrugada.Ouvira os nomes dos ministros, fora obrigado aachal-os bons; mas que força não lhe era precisapara articular alguma palavra! Receiava que lhedescobrissem o abatimento ou despeito, e todos osseus esforços concluiam por accentual-os ainda mais.Empallidecia, tremiam lhe os dedos.
—Anda, vamos jantar, repetiu D. Fernanda.
Theophilo deu um golpe no joelho, com a mãoaberta, e levantou-se, dizendo palavras soltas e raivosas,andando de um lado para outro, batendo opé, ameaçando. D. Fernanda não pôde vencer a violenciadaquelle novo accesso, esperou que fosse curto,e foi curto; Theophilo chegou-se a uma poltrona, sacudiua cabeça e cahiu outra vez prostrado. D. Fernandapegou de uma cadeira e sentou-se ao pé delle.Os olhos com que lhe fallou não tinham a doçura captivae dependente de Maria Benedicta, para quem omarido era tudo debaixo do sol. Não era bem a esposaque fallava, mas uma creatura humana que via padeceroutra.
—Tens razão, Theophilo; mas é preciso serhomem. És moço e forte, tens ainda futuro, etalvez grande futuro. Quem sabe se, entrando agorano ministerio, não perderias mais tarde? Entrarásem outro. Ás vezes, o que parece desgraça é felicidade.
Theophilo apertou-lhe a mão agradecido.
—É perfidia, é intriga, murmurava elle, olhandopara ella; eu conheço toda essa canalha. Si eu contassea você tudo, tudo... Mas para que? Prefiroesquecer... Não é por causa de uma miseravel pastaque estou aborrecido, continuou elle depois de algunsinstantes. Pastas não valem nada. Quem sabetrabalhar e tem talento póde zombar das pastas, emostrar que é superior a ellas. A maior parte dessagente, Nanan, não me chega aos calcanhares. Dissoestou certo e elles tambem. Sucia de intrigantes!Onde acharão mais sinceridade, mais fidelidade,mais ardor para a luta? Quem trabalhou mais naimprensa, no tempo do ostracismo? Desculpam-se;dizem que os gabinetes já vem organisados deS. Christovão... Ah! eu quizera fallar ao Imperador!
—Theophilo!
—Eu diria ao Imperador: «Senhor, Vossa Magestadenão sabe o que é essa politica de corredores,esses arranjos de camarilha. Vossa Magestade querque os melhores trabalhem nos seus conselhos, masos mediocres é que se arranjam... O merecimentofica para o lado.» É o que lhe heide dizer um dia;póde ser até que amanhã...
Calou-se. Depois de longa pausa, ergueu-se e foiao gabinete de trabalho, que ficava ao pé do quarto;a mulher acompanhou-o.
Era já escuro, accendeu o bico de gaz, e circuloupelo gabinete os olhos velados de melancholia.Havia alli quatro largas estantes cheias de livros,de relatorios, de orçamentos, de balanços do Thesouro.A secretária estava em ordem. Tres armariosaltos, sem portas, guardavam os manuscriptos, notas,lembranças calculos, apontamentos, tudo empilhadoe rotulado methodicamente;—creditos extraordinarios,—creditossupplementares,—creditos deguerra—creditos de marinha,—emprestimo de 1868,—estradasde ferro,—divida interna,—exercicio de61—62,—de 62—63,—de 63—64, etc. Era allique trabalhava de manhã e de noite, som mando, calculando,recolhendo os elementos dos seus discursose pareceres porque era membro de tres commissõesparlamentares, e trabalhava geralmente por si epelos seis collegas; estes ouviam e assignavam.Um delles, quando os pareceres eram extensos, assignava-os sem ouvir.
—Homem, você é mestre e basta, dizia-lhe, dêcá a penna.
Tudo alli respirava attenção, cuidado, trabalhoassiduo, meticuloso e util. Da parede, em ganchos,pendiam os jornaes da semana, que eramdepois tirados, guardados e finalmente encadernadossemestralmente, para consultas. Os discursos do deputado,impressos e brochados em-4° enfileiravam-seem uma estante. Nenhum quadro ou busto, adereço,nada para recrear, nada para admirar;—tudosecco, exacto, administrativo.
—De que vale tudo isto? perguntou Theophiloá mulher, após alguns instantes de contemplaçãotriste. Horas cançadas, longas horas da noite até madrugada,ás vezes... Não se dirá que este gabineteé de homem vadio; aqui trabalha-se. Você é testemunhaque eu trabalho. Tudo para que?
—Consola-te trabalhando, murmurou ella.
Elle, acerbo:
—Ruim consolação! Não, não, acabo com isto,passo a ignorar tudo. Olha, na camara, todos meconsultam, até os ministros—porque sabem queeu applico-me deveras ás cousas da administração.Que premio? Vir para cá, em maio, applaudir osnovos senhores?
—Pois não applaudas nada, disse-lhe mansamentea mulher. Queres fazer-me um obsequio? Vamos áEuropa, em março ou abril, e voltemos d'aqui a umanno. Pede licença á camara, d'onde quer que estejamos,—deVarsovia, por exemplo; tenho muitavontade de ir a Varsovia, continuou sorrindo e fechando-lhegraciosamente a cara entre as mãos. Digaque sim; responda que é para eu escrever hoje mesmopara o Rio Grande, o vapor sae amanhã. Está dito;vamos a Varsovia?
—Não brinques, Nanan, que isto não é objecto debrincadeira.
—Falo seriamente. Já ha muito tempo que andopara propor a você uma viagem, a ver se descançadesta papelada infernal. É demais, Theophilo!Você mal se pode arranjar depois para uma visita.Passeio, é raro. Quasi não conversa. Os nossos filhosmal veem seu pae, porque aqui não se entra quandovocê trabalha... É preciso descançar; peço-lhe umanno de repouso. Olhe que é serio. Vamos para aEuropa em março.
—Não pode ser, balbuciou elle.
—Porque não?
Não podia ser. Era convidal-o a sahir da propriapelle. Politica valia tudo. Que tambem houvessepolitica lá fora, sim; mas que tinha elle com ella?Theophilo não sabia nada do que ia por fora, exceptoa nossa divida em Londres, e meia duzia de economistas.Comtudo, agradeceu á mulher a intençãoda proposta:
—Tu és bôa.
E um sentimento vago de esperança restituia ávoz do deputado a brandura que perdera naquellagrande crise moral. Os papeis sopravam-lhe animo.Toda aquella massa de estudos apparecia-lhe comoa terra adubada e semeada aos olhos do lavrador.Não tardaria a grelar; o trabalho teria a recompensa;um dia mais tarde ou mais cedo, o grelo brotariae a arvore daria fructos. Era justamente oque a mulher havia dito por outras palavras directase proprias; mas só agora é que elle via a possibilidadeda colheita. Lembrou-se das explosões decolera, de indignação, de desespero, das queixas deha pouco, ficou vexado. Quiz rir, e fel-o mal. Aojantar e ao café entreteve-se com os filhos, quenaquella noite recolheram-se mais tarde. Nuno, quejá andava no collegio, onde ouvira falar da mudançade gabinete, disse ao pae que queria ser ministro.
Theophilo ficou serio.
—Meu filho, disse elle, escolhe outra cousa,menos ministro.
—Diz que é bonito, papae; diz que anda de carrocom soldado atraz.
—Pois eu te dou um carro.
—Papae já foi ministro?
Theophilo tentou sorrir e olhou para a mulher, queaproveitou a occasião para mandar deitar os filhos.
—Já, já fui ministro, respondeu o pae beijando atesta ao Nuno; mas não quero mais, é muito feio, dátrabalho. Tu has de ser capellão.
—Que é capellão?
—Capellão é cama, respondeu D. Fernanda; vaedormir, Nuno.
Ao almoço, no dia seguinte, Theophilo recebeuuma carta por uma ordenança.
—Ordenança?
—Sim, senhor, diz que vem da parte do Sr. presidentedo conselho.
Theophilo abriu a carta, com a mão tremula. Quepodia ser? Tinha lido nos jornaes a relação dos novosministros; o gabinete estava completo. Não haviadivergencia de nomes. Que podia ser? D. Fernanda,defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto otexto da carta. Via uma claridade; percebeu que aboca soffreava um sorriso de satisfação,—de esperança,ao menos.
—Diga que espere, ordenou Theophilo ao creado.
Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com aresposta. Sentou-se á mesa, calado, dando tempo aque o creado entregasse a carta á ordenança. Destavez, como estava prevenido, ouviu as patas do cavallo,e logo depois a galope, rua fóra e sentiu-se bem.
—Lê, disse elle.
D. Fernanda leu a carta do presidente do conselho;era um pedido para ir falar-lhe ás duas horas datarde.
—Mas então o ministerio...?
—Está completo, deu-se pressa em dizer o deputado;os ministros estão nomeados.
Não acreditava de todo o que dizia. Imaginavaalguma vaga da ultima hora, e a necessidade urgentede a preencher.
—Hade ser alguma conferencia politica, ou talvezqueira conversar sobre o orçamento,—ou incubir-mealgum estudo.
Dizendo isto, para illudir a mulher, sentiu aprobabilidade das hypotheses, e outra vez se abateu;mas, tres minutos depois, as borboletas daesperança volteavam deante delle, não duas, nemquatro, mas um turbilhão, que cegava o ar.
D. Fernanda esperou, cheia de ancias, como seo ministerio fosse para ella, e lhe viesse dar qualquergosto, que não fosso amargo o complicado. Uma vez,porém, que satisfizesse o marido, tudo iria pelomelhor. Theophilo tornou ás cinco horas e meia.Pelo aspecto reconheceu que vinha satisfeito. Correua apertar-lhe as mãos.
—Que ha?
—Pobre Nanan! Ahi vamos com a trouxa ás costas.O marquez pediu-me instantemente que acceitas-seuma presidencia de primeira ordem. Não podendometter-me no gabinete, onde tinha logar marcado,desejava, queria e pedia que eu partilhasse a responsabilidadepolitica e administrativa do governo, assumindouma presidencia. Não podia, em nenhumcaso, dispensar o meu prestigio (são palavras delle),e espera que na camara acceite o logar de chefe demaioria. Que dizes?
—Que arranjemos a trouxa, respondeu D. Fernanda.
—Achas que podia recusar?
—Não.
—Não podia. Você sabe, não se podem negarserviços destes a um governo amigo; ou então deixa-sea politica. Tratou-me muito bem o marquez; eu jásabia que era homem superior; mas que risonho eaffavel! não imaginas. Quer tambem que compareçaa uma reunião intima, os ministros e alguns amigos,poucos, meia duzia. Confiou-me já o programma dogabinete, em reserva...
—Quando sahimos?
—Não sei; heide estar com elle amanhã, á noite.A reunião é amanhã ás oito horas... Mas não te pareceque fiz bem, acceitando?
—De certo.
—Sim; se recusasse censurar-me-hiam, e comrazão. Em politica, a primeira cousa que se perde éa liberdade. Agora você é que se quizesse, podiaficar; daqui a cinco mezes,—ou quatro,—abrem-seas camaras; mal terei tempo de chegar e olhar.
D. Fernanda acceitou a proposta; não interrompiaa educação do filho; era uma separação de quatromezes. Theophilo partiu d'ahi a dias. Na manhã dodia do embarque, logo cedo, foi despedir-se do gabinetede trabalho. Deitou os ultimos olhos aos livros,relatorios, orçamentos, manuscriptos, a toda essaparte da familia, que só tinha lingua e interessepara elle. Havia atado os papeis e os folhetospara que se não extraviassem, e fez á mulher grandesrecommendações. Parado no centro, circuloua vista pelas estantes, e dispersou a alma por todasellas. Despedia-se assim dos seus santos e amigos,com verdadeiras saudades. D. Fernanda, que estavaao pé delle, não viveu alli mais que os dez minutos dadespedida. Theophilo viveu muitos annos.
—Deixa estar, eu cuidarei delles, eu mesma osespanarei todos os dias.
Theophilo deu-lhe um beijo... Outra mulherrecebel-o-hia meia triste, por ver que elle amavatanto os livros que parecia amal-os mais que a ella.Mas D. Fernanda sentiu-se venturosa.
Rubião, desde o dia da crise ministerial, não tornouá casa de D. Fernanda; nada soube, nem da presidencia,nem do embarque de Theophilo. Viviaentre o cão e um creado, sem grandes crises, nemlongos repousos. O creado fazia o serviço irregularmente,comia gratificações, e recebia, a miudo, otitulo de marquez. Ao demais, divertia-se. Quandolhe dava ao amo para conversar com as paredes, ocreado corria a espial-o; assistia ao dialogo, porqueo Rubião incumbia-se das palavras dellas, respondendocomo se houvessem feito alguma pergunta.De noite, ia á palestra com os amigos da visinhança.
—Como vae o gira?
—O gira vae bem. Hoje convidou o cachorro paracantar; o cachorro ladrau muito, e elle gostou quese pellou, mas assim um gosto de figurão. Elle,quando está de pancada, parece que é como quemgoverna o mundo. Ainda hontem, almoçando, falloupara mim: «Marquez Raymundo... quero que tu ..»e embrulhou o resto, que não entendi nada. No fimdeu-me dez tostões.
—Você guardou logo...
—Ora!
Quando Rubião voltava do delirio, toda aquellafantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes,uma tristeza calada. A consciencia, onde ficavamrastos do estado anterior, forcejava por despegal-osde si. Era como a ascensão dolorosa que um homemfizesse do abysmo, trepando pelas paredes, arrancandoa pelle, deixando as unhas, para chegar acima, para não cahir outra vez e perder-se. Ia entãoá visita dos amigos, uns novos, outros velhos,como a gente do major e a do Camacho, porexemplo.
Este, desde algum tempo, era menos conversado.A mesma politica não lhe dava materia aos discursosde outr'ora. No escriptorio, quando via Rubiãoassomar á porta, fazia um gesto de impaciencia,que soffreava logo; o outro notava essa mudança,e perdia-se em conjecturas, se lhe sahira algumaoffensa, por descuido—ou se começava a aborrecel-o.E para desfazer o tedio ou o resentimento, fallavamacio, risonho, abrindo longas pausas respeitosas, áespera que elle dissesse qualquer cousa. Em vãoappellava para o marquez de Paraná, cujo retratocontinuava a pender da parede; repetia os nomesque lhe ouvira,—o grande marquez! o estadistaconsummado! Camacho ia apoiando de cabeça, eescrevendo sem parar, consultando os autos e os praxistas,Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando,pedindo-lhe desculpa. Tinha um libello que dar naquelledia. Interrompia-se para ir á estante.
—Com licença...
Rubião arredava as pernas para deixal-o passar;elle tirava um volume das Ordenações do Reino, efolheava, folheava, pulando adiante, voltando atraz,atoa, sem buscar nada, unicamente para o fim dedespedir o importuno; mas o importuno ia ficando,por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados.Camacho tornava ao libello. Para ler, sentado, inclinava-semuito á esquerda, donde lhe vinha a luz,dando as costas ao Rubião.
—Aqui é escuro, aventurou Rubião um dia.
E não ouviu resposta, tão attento parecia o advogadona leitura dos autos. Realmente, póde ser importunação,pensou o nosso amigo. Espreitava-lhe orosto duro e serio, o gesto com que pegava da pennapara continuar o interminavel libello. Vinte minutosmais de silencio absoluto. No fim desse prazo, Rubiãoviu-o deixar a penna, retesar o busto, esticaros braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhecom interesse:
—Cançado, não?
Camacho fez um gesto afirmativo, e preparou-separa continuar; então o nosso homem levantou-see aproveitou o intervallo para dizer adeus.
—Voltarei, quando estiver menos atarefado.
Estendeu lhe a mão; Camacho segurou-lh'a aode leve, e tornou ao papel. Rubião desceu a escada,aturdido, magoado com a frieza do seu illustreamigo. Que lhe teria feito?
Daquella vez, teve a fortuna de encontrar o majorSequeira.
—Ia agora mesmo á sua casa, disse-lhe; vaepara lá?
—Vou; mas já não estamos na mesma casa;mudamo-nos para os Cajueiros, rua da Princeza...
—Seja onde for, vamos.
Rubião precisava de um pedaço de corda que oatasse á realidade, porque o espirito sentia-se outravez presa da vertigem. Entretanto, fallou com tantoacerto e propriedade, que o major o achou empleno juizo, e disse-lhe:
—Sabe que tenho uma grande noticia que lhedar?
—Vamos a ella.
—Ha de ser quando chegarmos.
Chegaram. Era uma casa assobradada; D. Tonicaveiu abrir-lhes a cancella. Trazia um vestido novoe brincos.
—Olhe bem para ella, disse o major pegando nafilha pelo queixo.
D. Tonica recuou envergonhada.
—Estou olhando, respondeu Rubião.
—Não se vê logo que é uma pessoa que vaecasar?
—Ah! parabéns!
—É verdade, vae casar. Custou, mas acertou.Achou por ahi um noivo, que a adora, como todoselles; eu, quando fui noivo, adorei a minha defuncta,que foi urna cousa nunca vista... Vae casar. Arranjouum noivo. Custou, mas acertou. Pessoa seria,meia edade; vem aqui passar as noites. De manhã,quando passa para a repartição, creio que bate na janella,ou ella já o espera; eu finjo que não percebo...
D. Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindode modo que parecia dizer que sim. Estavatão buliçosa! Nem se lembrava já que requestára oRubião, que este fora uma das ultimas, e por fim aultima das suas esperanças. Tinham entrado na sala;D. Tonica foi á janella, voltou, cabeça alta, andandoatoa, reconciliada com a vida.
—Boa pessoa, repetiu o major, boa creatura... Tonica,vae buscar o retrato... Anda, vae buscaro teu noivo...
D. Tonica foi buscar o retrato. Era uma photographia;representava um homem de meia edade,cabello curto, raro, olhando espantado para a gente,cara chupada, pescoço fino e paletot abotoado.
—Que lhe parece?
—Muito bem.
D. Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes;mas, tirou logo os olhos, e deixou-se estarsentada, emquanto a imaginação saiu a esperaro Rodrigues. Chamava-se Rodrigues. Era maisbaixo que ella,—cousa que o retrato não dava,—eempregado em uma repartição do ministerio daguerra. Viuvo, com dons filhos, um que estava nobatalhão dos menores, outro que era tuberculoso,—dozeannos,—condemnado á morte. Que importa?Era o noivo; todas as noites, ao recolher se, D. Tonicaajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora,sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe quea fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia dechamar-lhe Alvaro.
Rubião escutou calado um discurso do major. Ocasamento era dalli a mez e meio; o noivo tinha queperfazer os arranjos da casa, não era capitalista,vivia do ordenado e recorrera a emprestimos. A casaera a mesma e não exigia trastes novos nem ricos;mas, ha sempre algumas necessidades... Em summa,dalli a mez e meio, ou pelo menos, cinco semanas,estariam unidos pelos santos laços do matrimonio.
—E fico eu livre do trambolho, concluiu o major.
—Oh! protestou Rubião.
A filha ria-se; estava acostumada ás graças dopae, e tão disposta á alegria que nada a vexava; aindamesmo que o pae se referisse aos seus quarenta annospassados não lhe daria grande golpe. Todas asnoivas têm quinze annos.
—Verá como elle ha de procural-a depois, comsaudades disse Rubião a D. Tonica.
—Qual! Talvez eu me case tambem!
Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos;o major não viu a expressão do rosto, nãopercebeu que o espirito do homem ia talvez descarrilhar,e que elle mesmo o presentia. Disse-lhe quese sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado ede campanha. Quando chegou á narração da batalhade Monte-Caseros, com as marchas e contra-marchasproprias do seu discurso, tinha deante de si NapoleãoIII. Calado a principio, Rubião proferiu algumaspalavras de applauso, fallou de Solferino, deMagenta, prometteu ao Sequeira uma condecoração.Pae e filha entre-olharam-se; o major disse quevinha muita chuva. Com effeito, escurecera um pouco.Era melhor que Rubião fosse, antes de cahir agua;não trouxera guarda-chuva, o delle era velho eunico...
—Ahi vem o meu coche, redarguiu Rubião tranquillamente.
—Não vem, foi esperal-o no Campo. Não vês dahio coche, Tonica?
D. Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Nãoqueria mentir, mas tinha medo, e desejava que Rubiãosahisse. Da casa era impossivel ver o Campo daAcclamação. Já então o pae pegava no Rubião pelobraço e o encaminhava para a porta.
—Volte amanhã, depois, quando quizer.
—Mas porque não heide esperar aqui até quevenha o coche? perguntou Rubião. A imperatriz nãopóde apanhar chuva...
—A imperatriz já foi.
Fez mal. Eugenia fez muito mal. General... Paraque hade o senhor ficar sempre em major? General,vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu.Mande ás Tulherias. Onde está o coche?
—Está no Campo, esperando.
—Mande chamal-o.
D. Tonica, que estava á janella, disse para dentro:
—Lá vem Rodrigues.
E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo,emquanto na sala o pae continuava a guiar oRubião para a porta, sem violencia, mas tenaz.Este parava, reprehendia:
—General, sou seu imperador!
—De certo, mas acompanhe-me Vossa Majestade...
Tinham chegado á porta; o major abriu a cancella,justamente quando o Rodrigues punha o péna soleira. D. Tonica entrou para receber o noivo,mas a porta estava atravancada com o pae e Rubião.Rodrigues tirou o chapeo, mostrando o cabello,aspero e grisalho; tinha nas faces chupadasumas pintinhas de sarda, mas o riso era bom ehumilde,—mais humilde ainda que bom,—e, nãoobstante a trivialidade do gesto e da pessoa, eraagradavel. Os olhos não mostravam o espanto daphotographia; este effeito provinha da emphasisque elle poz em todo o corpo, afim de que o retratosaisse bonito.
—Este senhor é o meu futuro genro, disse o majora Rubião. Não é verdade que viu no Campo um cochee um esquadrão de cavallaria? perguntou ao Rodrigues,piscando um olho.
—Parece que sim, senhor.
—Pois então? continuou Sequeira, voltandp-separa Rubião. Vá, vá, dobre a rua de S. Lourenço, ecaminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã.
Rubião desceu tres degráos,—eram cinco—eparou deante do recem-chegado, fitou-o alguns instantese declarou que estimava muito conhecel-o,que fosse bom esposo e bom genro. Como se chamava?
—João José Rodrigues.
—Rodrigues. Heide mandar-lhe uma fitinhaaqui para a casaca. É o meu presente de nupcias.Lembre-me, Sequeira.
Sequeira pegou-lhe no braço para fazel-o descer osdons últimos degráos, e pol-o na rua.
—No Campo, dizes tu?
—No Campo.
—Adeus.
Da rua, ainda Rubião olhou para as janellas, comos dedos no chapéo, afim de comprimentar D. Tonica;mas D. Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabavade entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa deverão.
Rubião não cuidou mais do coche nem do esquadrãode cavallaria. Foi dar comsigo abaixo, andoupor varias ruas, até que subiu pela de S. José. Desdeo paço imperial, vinha gesticulando e fallando aalguem que suppunha trazer pelo braço, e era a imperatriz.Eugenia ou Sophia? Ambas em uma sócreatura,—ou antes a segunda com o nome daprimeira. Homens que iam passando, paravam;do interior das lojas corria gente ás portas. Unsriam-se, outros ficavam indifferentes; alguns, depoisde verem o que era, desviavam os olhos parapoupal-os á afflicção que lhes dava o expectaculodo delirio. Uma turba de moleques acompanhavao Rubião, alguns tão proximos, que lhe ouviamas palavras. Creanças de toda a sorte vinham juntar-seao grupo. Quando elles viram a curiosidadegeral, entenderam dar voz á multidão, e começou asurriada:
—Ó gira! ó gira!
Esse vozear chamou a attenção de outras pessoas,muitas janellas dos sobrados começaram a abrir-se,appareceram curiosos de ambos os sexos e todasas edades, um photographo, um estofador, tres e quatrofiguras juntas, cabeças por cima de outras,todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem,que fallava á parede, com o seu gesto cheio de grandezae de obsequio.
—Ó gira! ó gira! berravam os vadios.
Um delles, muito menor que todos, apegava-se áscalças de outro, taludo. Era já na rua da Ajuda.Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de umavez que ouviu, suppoz que eram acclamações, e fezuma cortezia de agradecimento. A surriada augmentava.No meio do rumor, distinguiu-se a voz deuma mulher á porta de uma colchoaria:
—Deolindo! vem para casa, Deolindo!
Deolindo, a creança, que se aggarrava ás calças daoutra mais velha, não obedeceu; póde ser que nemouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pecurrucho,clamando coma vozinha miuda:—Ó gira!ó gira!
—Deolindo!
Deolindo tratou de esconder-se entre os outros,para escapar ás vistas da mãe que o chamava;esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá.Em verdade, era pequeno de mais para andar emtumultos de rua.
—Mamãe, deixa eu vêr...
—Qual vêr! anda!
Metteu-o em casa, e ficou á porta, a olhar para arua. Rubião estacara o passo; ella pôde vel-o bem,com os seus gestos e fallares, o peito alto, e umabarretada que deu em volta.
—Os malucos teem graça, ás vezes, disse ellasorrindo a uma visinha.
Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubiãofoi andando, com o mesmo côro atraz de si. Deolindo,á porta da loja, vendo o grupo alongar-se,pedia chorosamente á mãe que o deixasse ir tambem,ou então que o levasse. Quando perdeu asesperanças, enfeixou todas as energias em um sógritosinho esganiçado:
—Ó gira!
A visinha riu-se. A mãe riu-se tambem. Confessouque o filho era uma péstesinha, um endiabrado,que não socegava; não podia perdel-o de vista. Qualquerdistracção, estava na rua. E isto desde pequenino;tinha ainda dons annos, quando escapou demorrer em baixo de um carro, alli mesmo; estevepor um fio. Se não fosse um homem que passava, umsenhor bem vestido, que acudiu depressa, até comperigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto omarido, que vinha pela calçada opposta, atravessoua ma, e interrompeu a conversação. Trazia o senhocarregado, mal comprimentou a visinha, e entrou;a mulher foi ter com elle. Que era? O marido contoua surriada.
—Passou por aqui, disse ella.
—Não conheceste o homem?
—Não.
O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo,calado. A mulher perguntou-lhe quem era.
—É aquelle homem que nos salvou o Deolindoda morte.
A mulher teve um calefrio.
—Viste bem? perguntou.
—Perfeitamente. Se eu já o tinha encontradooutras vezes, mas então não estava assim. Coitado!E a molecada berrava atraz delle. Qual! não hapolicia nesta terra.
O que lhe doia á mulher não era tanto o mal dohomem, nem ainda a surriada; mas a parte queteve nesta o filho,—a mesma creança que o homemsalvara da morte. Realmente, como podia o meninoreconhecel-o, nem saber que lhe devia a vida?Doia-lhe o encontro, a coincidencia. Afinal, contentou-sede pôr todas as culpas em si. Se tivesse tidomais cuidado, o pequeno não haveria sahido, e nãoentraria na troça. Tremia de quando em quando, eestava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho,e deu-lhe dous beijos.
—Você viu a scena toda? perguntou á mulher.
—Vi.
—Eu ainda quiz dar o braço ao homem, e trazel-opara aqui; mas, tive vergonha; os molequeseram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto,porque elle podia conhecer-me. Coitado! Nota quenão parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creioque até ria... Que triste cousa que é perder ojuizo!
A mulher pensava na travessura do filho; não areferiu ao marido, pediu á visinha que não alludissea ella, e, de noite, só pregou olho tarde. Mettera-se-lheem cabeça que, annos depois, o filho endoudecia,era castigado pela mesma troça, e que ellacuspia para o céu, indignada, blasphemando.
Duas horas depois da scena da rua da Ajuda chegouRubião á casa de D Fernanda. Os vadios foram-sedispersando, a pouco e pouco, e os claros não se preenchiam;os tres ultimos juntaram os seus adeusesem um berro unico e formidavel. Rubião continuousosinho, mal percebido pelos moradores das casas,porque a gesticulação diminuia ou mudava de feitio.Não fallava para o lado da parede, á supposta imperatriz;mas era ainda imperador. Caminhava, parava,murmurava, sem grandes gestos, sonhando sempre,sempre, sempre, envolvido naquelle veo, atravez doqual todas as cousas eram outras, contrarias e melhores;cada lampião tinha um aspecto de camarista,cada esquina uma feição de resposteiro. Rubião seguiadireito á sala do throno, para receber um embaixadorqualquer, mas o paço era interminavel, cumpriaatravessar muitas salas e galerias, verdade é quesobre tapetes,—e por entre alabardeiros, altos e robustos.
Das gentes que o viam e paravam na rua, ou se debruçavamdas janellas, muitas suspendiam por instantesos seus pensamentos tristes ou enfastiados, aspreoccupações do dia, os tedios, os resentimentos,este uma divida, outro uma doença, desprezos deamor, vilanias de amigo. Cada miseria esquecia-se,o que era melhor que consolar-se; mas o esquecimentodurava um relampago. Passado o enfermo,a realidade empolgava-os outra vez, as ruaseram ruas, porque os paços sumptuosos iam com Rubião.E mais de um tinha pena do pobre diabo; comparandoas duas fortunas, mais de um agradecia aoceu a parte que lhe coube,—amarga, mas consciente.Preferiam o seu casebre real ao alcaçar phantasmagorico.
Rubião foi recolhido a uma casa de saude. Palhaesquecera a obrigação que Sophia lhe impoz, eSophia não se lembrou mais da promessa feita ário-grandense. Cuidavam ambos de outra casa, umpalacete em Botafogo, cuja reconstrucção estavaprestes a acabar, e que elles queriam inaugurar, noinverno, quando as camaras trabalhassem, e todaa gente houvesse descido de Petropolis. Mas agora apromessa foi cumprida; Rubião deu entrada noestabelecimento, onde ficou occupando uma sala eum quarto especiaes, recommendado pelo Dr. Falcãoe pelo Palha. Não resistiu a nada; acompanhou-oscom satisfação, e entrou nos seus aposentos, comose os conhecesse desde muito. Quando elles se despediram,dizendo que já voltavam, Rubião convidou-ospara uma revista militar, no sabbado.
—Pois sim, sabbado, assentiu Falcão.
—Sabbado é bom dia, continuou Rubião. Nãofaltes, duque de Palha.
—Não falto, disse o Palha andando.
—Olha, mandar-te-hei um dos meus coches,novo em folha; é preciso que tua mulher pouse oseu lindo corpo, onde ninguem ainda ousou sentar-se.Almofadas de damasco e velludo, arreios de prata erodas de ouro; os cavallos descendem do propriocavallo que meu tio montava em Marengo. Adeus,duque de Palha.
—Para mim, é claro, sahiu pensando o Dr.Falcão, aquelle homem foi amante da mulher destesujeito.
Lá ficou o homem. Quincas Borba tentára entrarna carruagem que levou o amigo, e porfiou emacompanhal-a, correndo; foi necessaria toda a forçado criado para aggarral-o, contel-o e trancal-o emcasa. Era a mesma situação de Barbacena; mas avida, meu rico senhor, compõe-se rigorosamente dequatro ou cinco situações, que as circumstanciasvariam e multiplicam aos olhos. Rubião pediu instantementeque lhe mandassem o cão. D. Fernanda,alcançado o consentimento do director, cuidou desatisfazer o desejo do doente. Quiz escrever a Sophia,mas foi ella propria ao Flamengo.
—Mando ver, é aqui perto, propôz Sophia.
—Vamos nós mesmas. Que tem? Já pensei emuma cousa. Valerá a pena conservar a casa promptae alugada, quando a cura póde prolongar-se? Melhoré deixal-a, vender os trastes e apurar o quehouver.
Foram a pé do Flamengo á rua do Principe; tresa quatro minutos. Raymundo estava na rua, masviu gente á porta e veia abril-a. O interior da casatinha a feição do abandono, sem a fixidez e regularidadedas cousas, que parecem conservar um restoda vida interrompida; era o abandono do desmazelo.Mas, por outro lado, o transtorno dos moveis dasala exprimiam bem o delirio do morador, suasidéas tortas e confusas.
—Elle foi muito rico? perguntou D. Fernandaa Sophia.
—Tinha alguma cousa, respondeu esta, quandochegou de Minas; mas parece que estragou tudo.Olhe, levante o vestido que o chão parece que nãose varre ha um seculo.
Não era só o chão; os trastes tinham a crosta daincuria. Nem por isso o creado explicava nada;olhava, escutava, e, baixinho, assobiava uma polkado dia. Sophia não lhe perguntou pelo asseio; estavamorta por sahir «daquella immundicie», dizia asi mesma, e tinha vontade de fallar no cão, que erao principal motivo da visita; mas, não queriamostrar interesse por elle nem pelo resto. A trivialidadedaquillo tudo não lhe dizia nada ao espiritonem ao coração; a lembrança do alienado não aajudava a supportar o tempo. De si para si achava acompanheira singularmente romantica ou affectada.«Que Bobagem!» ia pensando, sem desconcertar osorriso approvador com que acudia a todas as observaçõesde D. Fernanda.
—Abra aquella janella, disse esta ao creado;tudo cheira a mofo.
—Oh! insupportavel! acudiu Sophia, respirandocom asco.
Mas, apezar da exclamação, D. Fernanda não seresolveu a sahir. Sem que nenhuma recordaçãopessoal lhe viesse daquella miseravel estancia,sentia-se presa de uma commoção particular e profunda,não a que dá a ruina das cousas. Aquelleexpectaculo não lhe trazia um thema de reflexõesgeraes, não lhe ensinava a fragilidade dos tempos,nem a tristeza do mundo; dizia-lhe tão somente amolestia de um homem, de um homem que ella malconhecia, a quem fallára algumas vezes. E ia ficandoe olhando, sem pensar, sem deduzir, mettida em simesma, dolente e muda. Sophia não ousava articularnada, com receio de ser desagradavel a tão conspicuadama. Tinham ambas os vestidos apanhados, paraevitar a macula da poeira; mas Sophia accrescentoua essa precaução a agitação viva, continua eimpaciente da ventarola, como pessoa que suffocassenaquella atmosphera. Chegou a tossir algumasvezes.
—E o cachorro? perguntou D. Fernanda aocreado.
—Está preso no quarto, lá dentro.
—Vá buscal-o.
Quincas Borba appareceu. Magro, abatido, parouá porta da sala, estranhando as duas senhoras, massem latir; mal erguia os olhos apagados. Chegou adar meia volta ao corpo na direcção do interior dacasa, quando D. Fernanda fez uns estalinhos com osdedos; elle parou, agitando a cauda.
—Como é mesmo que se chama? perguntou aD. Fernanda.
—Quincas Borba, respondeu o criado, rindo,com a voz arrastada. Tem nome de gente. Eh!Quincas Borba! vae lá! a senhora está chamando.
—Quincas Borba! vem cá! Quincas Borba!repetiu D. Fernanda.
Quincas Buba acudiu ao chamado, não pulando,nem alegre. D. Fernanda inclinou-se, fallou-lhe,perguntou-lhe pelo amigo, se estava longe, se queriair vel-o. Assim mesmo inclinada, interrogava ocreado sobre o trato do cão.
—Agora come, sim, senhora; logo que meuamo sahiu, não queria comer nem beber;—eu atépensei que estivesse damnado.
—Come bem?
—Come pouco.
—Procura pelo senhor?
—Parece que procura, respondeu Raymundotapando o riso com a mão; mas eu tranquei elle noquarto, para não fugir. Já não chora; a principiochorava muito, que até me accordava... Era precisoeu bater com um cacete na porta e gritar, para ellesocegar...
D. Fernanda coçava a cabeça do animal, cujosolhos, de mortos que eram, tornaram-se languidos.Era o primeiro affago depois de longos dias desolidão e desprezo. Quando D. Fernanda cessou deacaricial-o, e levantou o corpo, elle ficou a olharpara ella, e ella para elle, tão fixos e tão profundos,que pareciam penetrar no intimo um do outro.A sympathia universal, que era a alma destasenhora, esquecia toda a consideração humanadeante daquella miseria obscura e prosaica, e estendiaao animal uma parte de si mesma, que oenvolvia, que o fascinava, que o atava aos pés della.Assim, a pena que lhe dava o delirio do senhor,dava-lhe agora o proprio cão, como se ambos representassema mesma especie. E sentindo que a suapresença levava ao animal uma sensação boa, nãoqueria prival-o do beneficio.
—A senhora está-se enchendo de pulgas, observouSophia.
D. Fernanda não a ouviu. Continuou a mirar osolhos meigos e tristes do animal, até que este deixoucahir a cabeça e entrou a farejar a sala. Sentira ocheiro do senhor. A porta da rua estava aberta; elleteria fugido por ella, se Raymundo não acudisse aprendel-o. D. Fernanda deu algum dinheiro aocreado para que o fosse lavar e conduzir á casa desaude, recommendande-lhe o maior cuidado, que olevasse ao collo, ou preso por um cordão. Nestaparte acudiu tambem Sophia, ordenando que aprocurasse antes, em casa.
Sahiram. Sophia, antes de por o pé na rua,olhou para um e outro lado, espreitando se vinhaalguem; felizmente, a rua estava deserta. Aover se livre da possilga, Sophia readquiriu o usodas boas palavras, a arte maviosa e delicada decaptar os outros, e enfiou amorosamente o braço node D. Fernanda. Fallou-lhe de Rubião e da grandedesgraça da loucura; fallou tambem do palacete deBotafogo. Porque não ia com ella ver as obras?Era só lanchar um pouco, e partiriam immediatamente.
Sobreveiu um successo que distrahiu D. Fernandado Rubião; foi o nascimento de uma filha deMaria Benedicta. Ella correu á Tijuca, encheu debeijos a mãe e a creança, deu a mão a beijar aCarlos Maria.
—Sempre exuberante! exclamou o joven pae,obedecendo.
—Sempre seccarrão! retorquiu ella.
Apesar da resistencia do primo, D. Fernandaacompanhou a convalescença de Maria Benedicta,tão cordial, tão boa, tão alegre, que era um encantoconserval-a em casa. A felicidade d'aqui fel-a esquecera desgraça d'acolá; mas, convalescida arecente mãe, D. Fernanda acudiu ao enfermo.
«Conto restituil-o á razão no fim de seis ou oitomezes. Vae muito bem.»
D. Fernanda mandou a Sophia esta resposta dodirector da casa de saude, e convidou-a a irem vero enfermo, se achasse que não lhes ficava mal. «Quemal póde haver? respondeu Sophia em um bilhete.Mas eu é que não teria animo de vel-o; foi tão nossoamigo, que não sei se poderia supportar a vista ea conversação do pobre homem. Mostrei a carta aChristiano, que me declarou ter liquidado os bensdo Sr. Rubião: apurou tres contos e duzentos.»
—Seis mezes, oito mezes passam depressa,reflexionou D. Fernanda.
E elles vieram vindo, com os successos ás costas,—aqueda do ministerio, a subida de outro emmarço, a volta do marido, a discussão da lei dosingenuos, a morte do noivo de D. Tonica, tres diasantes de casar. D. Tonica espremeu as ultimaslagrymas,—umas de amizade, outras de desesperança,—eficou com os olhos tão vermelhos, quepareciam doentes.
Theophilo, que merecera do novo gabinete amesma confiança do antigo, teve parte copiosa nosdebates da sessão parlamentar. Camacho declaroupela sua folha que a lei dos ingenuos absolvia aesterilidade e os crimes da situação. Em Outubro,Sophia inaugurou os seus salões de Botafogo, comum baile, que foi o mais celebre do tempo. Estavadeslumbrante. Ostentava, sem orgulho, todos osseus braços e espaduas. Ricas joias; o collar eraainda um dos primeiros presentes do Rubião, tãocerto é que, neste genero de atavios, as modasconservam-se mais. Toda a gente admirava a gentilezadaquella trintona fresca e robusta; algunshomens faltavam (com pena!) das suas virtudesconjugaes, da profunda adoração que ella tinha aomarido.
No dia seguinte ao baile, D, Fernanda accordoutarde. Foi ao gabinete do marido, que já devoraracinco ou seis jornaes, escrevera dez cartas e rectificavaa posição de alguns livros nas estantes.
—Recebi esta carta, ha pouco, disse elle.
D. Fernanda leu-a; era do director da casa desaude; noticiava que Rubião, desde tres dias, desapparecera,não tendo podido ser encontrado por maisesforços que houvessem empregado a policia e elle.«Tanto mais me espanta esta fuga, concluia a carta,quanto que as melhoras eram grandes, e podia contarque, em dous mezes, o poria inteiramente bom.»
D. Fernanda ficou consternada; alcançou domarido que escrevesse ao chefe de policia e ao ministroda justiça, pedindo-lhes que ordenassem asmais severas pesquizas. Theophilo não tinha omenor interesse no achado nem na cura de Rubião;mas quiz servir á mulher cuja bondade conhecia,e, porventura, gostava de cartear-se com os homensda alta administração.
Como achar, porém, o nosso Rubião nem o cachorro,se ambos haviam partido para Barbacena? Oito diasantes, Rubião escrevera ao Palha que lhe fosse fallar;este acudia á casa de saude, viu que elle raciocinavaclaramente, sem a menor sombra de delirio.
—Tive uma crise mental, disse-lhe Rubião;agora estou bom, perfeitamente bom. Peço-lhe queme ponha fóra daqui. Creio que o director não seopporá. Entretanto, como quero deixar algumaslembranças á gente que me tem servido, e servidotambem ao Quincas Borba, veja se me póde adiantarcem mil réis.
Palha abriu a carteira sem hesitação, e deu-lhe odinheiro.
—Vou tratar de o fazer sair, disse elle; mas,provavelmente são precisos alguns dias (estava emvesperas do baile); não se afflija por isso; daqui auma semana está na rua.
Antes de sair, falou ao director, que lhe deu boasnoticias do enfermo. Uma semana é pouco, disseelle; para pôl-o bom, bom, preciso ainda unsdous mezes. Palha confessou que o achára são; emtodo caso, mandava quem sabia, e se fossemnecessarios seis ou sete mezes mais, não precipitassea alta.
Rubião, logo que chegou a Barbacena e começoua subir a rua que ora se chama de Tiradentes,exclamou parando:
—Ao vencedor, as batatas!
Tinha-as esquecido de todo, a formula e a allegoria.De repente, como se as syllabas houvessemficado no ar, intactas, aguardando alguem que aspodesse entender, uniu-as, recompoz a formula, eproferiu-a com a mesma emphasis daquelle dia emque a tomou por lei da vida e da verdade. Não selembrava inteiramente da allegoria; mas, a palavradeu-lhe o sentido vago da luta e da victoria.
Subiu, acompanhado do cão, e foi parar defronteda egreja. Ninguem lhe abriu a porta; não viusombra de sacristão. Quincas Borba, que não comiadesde muitas horas, collava-se-lhe ás pernas,cabisbaixo, esperando. Rubião voltou-se, e doalto da rua estendeu os olhos abaixo e ao longe.Era ella, era Barbacena; a velha cidade natal ia-se-lhedesentranhando das profundas camadas da memoria.Era ella; aqui estava a egreja, alli a cadeia,acolá a pharmacia, donde vinham os medicamentospara o outro Quincas Borba. Sabia que era ella,quando chegou; mas, á medida que os olhos sederramavam, as reminiscencias vinham vindo, escassas,mais numerosas, em bando. Não via ninguem;uma janella, a esquerda, parecia ter alguem queespiava. Tudo o mais deserto.
—Talvez não saibam que cheguei, pensouRubião.
Subito, relampejou; as nuvens amontoavam-seás pressas. Relampejou mais forte, e estalou umtrovão. Começou a choviscar grosso, mais grosso,até que desabou a tempestade. Rubião, que aosprimeiros pingos, deixara a egreja, foi andandorua abaixo, seguido sempre do cão, faminto e fiel,ambos tontos, debaixo do aguaceiro, sem destino,sem esperança de pouso ou de comida... A chuvabatia-lhes sem misericordia. Não podiam correr,porque Rubião temia escorregar e cahir, e o cãonão queria perdel-o. A meia rua, acudiu á memoriado Rubião a pharmacia, voltou para traz, subindocontra o vento, que lhe dava de cara; mas aofim de vinte passos, varreu-se-lhe a ideia dacabeça; adeus, pharmacia! adeus, pouso! Já senão lembrava do motivo que o fizera mudar derumo, e desceu outra vez, e o cão atraz, sementender nem fugir, um e outro alagados, confusos,ao som da trovoada rija e continua.
Vagaram sem destino. O estomago de Rubiãointerrogava, exclamava, intimava; por fortuna, odelirio vinha enganar a necessidade com os seusbanquetes das Tulherias. Quincas Borba é que nãotinha egual recurso. E toca a andar acima e abaixo.Rubião, de quando em quando, sentava-se no lagedo,e o cão trepava-lhe ás pernas, para dormir a fome;achava as calças molhadas, e descia; mas tornavalogo a subir, tão frio era o ar da noite, jánoite alta, já noite morta. Rubião passava-lhe asmãos por cima, resmungando algumas palavrasmagras.
Se, apezar de tudo, Quincas Borba conseguiaadormecer, accordava logo, porque Rubião levantava-see punha-se outra vez a descer e subir ladeiras.Soprava um triste vento, que parecia faca, edava arrepios aos dois vagabundos. Rubião andavade vagar; o proprio cançaço não lhe permittia asgrandes pernadas do principio, quando a chuvacabia em bategas. As paradas eram agora maisfrequentes. O cão, morto de fome e de fadiga, nãoentendia aquella odysséa, ignorava o motivo, esquecerao logar, não ouvia nada, senão as vozes surdasdo senhor. Não podia ver as estrellas, que já entãorutilavam, livres de nuvens. Rubião descobriu-as;chegara á porta da egreja, como quando entrouna cidade; acabava de sentar-se e deu comellas. Estavam tão bonitas, reconheceu que eramos lustres do grande salão e ordenou que os apagassem.Não pôde ver a execução da ordem; adormeceualli mesmo, com o cão ao pé de si. Quandoaccordaram de manhã, estavam tão juntinhos quepareciam pegados.
—Ao vencedor, as batatas! exclamou Rubiãoquando deu com os olhos na rua, sem noite, semagua, beijada do sol.
Foi a comadre do Rubião, que o agasalhou emais ao cachorro, vendo-os passar defronte da porta.Rubião conheceu-a, aceitou o abrigo e o almoço.
—Mas que é isso, seu compadre? Como foi quechegou assim? Sua roupa está toda molhada. Voudar-lhe umas calças de meu sobrinho.
Rubião tinha febre. Comeu pouco e sem vontade.A comadre pediu-lhe contas da vida que passára naCôrte, ao que elle respondeu que levaria muitotempo, e só a posteridade a acabaria. Os sobrinhosde seu sobrinho, concluiu elle magnificamente, éque hão de ver-me em toda a minha gloria. Começou,porém, um resumo. No fim de dez minutos, acomadre não entendia nada, tão desconcertados eramos factos e os conceitos; mais cinco minutos, entroua sentir medo. Quando os minutos chegaram a vinte,pediu licença e foi a uma visinha dizer que Rubiãoparecia ter virado o juizo. Voltou com ella e umirmão, que se demorou pouco tempo e saiu a espalhara nova. Vieram vindo outras pessoas, ás duase ás quatro, e, antes de uma hora, muita genteespiava da rua.
—Ao vencedor, as batatas! bradava Rubião aoscuriosos. Aqui estou imperador! Aa vencedor, asbatatas!
Esta palavra obscura e incompleta era repetidana rua, examinada, sem que lhe dessem com o sentido.Alguns antigos desaffectos do Rubião iam entrando,sem ceremonia, para gosal-o melhor; e diziamá comadre que não lhe convinha ficar com umdoudo em casa, era perigoso; devia mandal-o paraa cadeia, até que a autoridade o remettesse paraoutra parte. Pessoa mais compassiva lembrou a convenienciade chamar o doutor.
—Doutor para que? acudiu um dos primeiros.Este homem está maluco.
—Talvez seja delirio de febre; já viu como estáquente?
Angelica, animada por tantas pessoas, tomou-lheo pulso, e achou-o febril. Mandou vir o medico,—omesmo que tratara o finado Quincas Borba.Rubião conheceu-o tambem; respondeu-lhe que nãoera nada. Capturára o rei da Prussia, não sabendoainda se o mandaria fuzilar ou não; era certo, porém,que exigiria uma indemnisação pecuniaria enorme,—cincobilliões de francos.
—Ao vencedor, as batatas! concluiu rindo.
Poucos dias depois morreu... Não morreu subditonem vencido. Antes de principiar a agonia, que foicurta, poz a coroa na cabeça,—uma coroa quenão era, ao menos, um chapeo velho ou umabacia, onde os espectadores palpassem a illusão.Não, senhor; elle pegou em nada, levantou nadae cingiu nada; só elle via a insignia imperial,pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedraspreciosas. O esforço que fizera para erguer meio corponão durou muito; o corpo cahiu outra vez; o rostoconservou porventura uma expressão gloriosa.
—Guardem a minha coroa, murmurou. Aovencedor...
A cara ficou séria, porque a morte é séria; dousminutos de agonia, um tregeito horrivel, e estavaassignada a abdicação.
Queria dizer aqui o fim do Quincas Borba, queadoeceu tambem, ganiu infinitamente, fugiu desvairadoem busca do dono, e amanheceu morto na rua,tres dias depois. Mas, vendo a morte do cão narradaem capitulo especial, é provável que me perguntes seelle, se o seu defuncto homonymo é que dá o tituloao livro, e porque antes um que outro,—questão prenhede questões, que nos levariam longe... Eia!chora os dous recentes mortos, se tens lagrimas.Se só tens riso, ri-te! É a mesma cousa. O Cruzeiro,que a linda Sophia não quiz fitar, como lhe pediaRubião, está assaz alto para não discernir os risose as lagrimas dos homens.
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