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The Project Gutenberg eBook ofO Christão novo

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Title: O Christão novo

Author: Diogo de Macedo

Release date: June 30, 2009 [eBook #29275]
Most recently updated: January 5, 2021

Language: Portuguese

Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
of public domain material from Google Book Search)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O CHRISTÃO NOVO ***

 

DIOGO DE MACEDO

O CHRISTÃO NOVO

ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI

 

 

 

———

 

 

 

PORTO
IMPRENSA PORTUGUESA
Rua do Bomjardim, 181

1876

 

 

 

O CHRISTÃO NOVO

 

 

 

DIOGO DE MACEDO

O CHRISTÃO NOVO

ROMANCE HISTORICO DO SECULO XVI

 

 

 

———

 

 

 

PORTO
IMPRENSA PORTUGUESA
Rua do Bomjardim, 181

1876

 {5}

 

ALGUMAS PALAVRAS

Historia, segundo Cesar Cantu, é a narração dos factos consideradosverdadeiros. Tem por fim a verdade, porque, no conceito de Alexandre Herculano,encarrega-se de averiguar qual foi a existencia das gerações que passaram.

Não deve porém considerar-se tam seria e limitada a periferia doromance. O romance póde ser tambem a reproducção e apreciação dos eventos ephenomenos sociaes subordinados a uma certa ordem chronologica e a umaclassificação methodica; mas, porque tem menos responsabilidade,concedem-se-lhe mais fóros de liberdade e licença do que a esse grande esolemne registo publico chamado historia.{6}

Pennejar-se conseguintemente um romance com todas as prescripçõeshistoricas, é obrigação que a critica nem o bom senso exigem. O romance, nãoquerendo asphixiar os seus leitores em um ambiente de opio e monotonia, apenasaproveita da historia o fundo e a base: as datas e os factos cardinaes. Emquanto aos contornos e ás linhas e ás côres, aos personagens ainda e ainda aodialogo e á urdidura, usou sempre, seja elle engenhado por Walter Scott ou sejadevido á imaginativa de Alexandre Dumas, de facil e plena liberdade. Mais aindado que louçanias e filigranas de estilo se reclamam, para repasto dacuriosidade, os meandros e caprichos da phantasia. Só por imposição de estranhodespotismo se deve sugeitar a contextura do romance historico a toda afidelidade ethnologica e a todo o rigor dos acontecimentos. A narrativa eapreciação dos factos considerados verdadeiros—a historia—não podemassociar-se de nenhum modo aos partos da imaginação e aos caprichos daphantasia—o romance.

Comprehendendo-se portanto a differença que faz a historia, propriamentesciencia natural, do romance, simplesmente exercicio litterario, não se deveestranhar a maneira como pensei e escrevi. Sem o auxilio da imaginação como seconseguiria entreter a curiosidade e passar o tempo no decurso de algumasdusias de paginas com as descripções dos obscuros successos dos dous seccos earidos annos de 1553 e 1554?

É coisa natural que eu bastantemente abusasse das{7} liberdades de romancista. Por exemplo, do meu livrotranslusem o caracter e a phisionomia de Simão Rodrigues com menos vantagens evirtudes do que as que lhes foram munificamente abonadas pela tradição e pelaescriptura. Disse-se do celebre discipulo de Ignacio de Loyola que morreu (15de julho de 1579) com acrisolados sentimentos de religião. Nada o assombravanem esmorecia quando se tratava do serviço de Deus, sabendo sempre em sua vidamanifestar os mais austeros principios de abnegação e dando em todos os seusactos os mais louvaveis exemplos de sabedoria.

Egualmente a indole e os costumes de Dom João III não se descortinam empainel que satisfaça as exigencias da critica e o rigor da verdade. Será DomJoão III o monarcha fanatico e frouxo retratado com as tintas sombrias dapalheta de Alexandre Herculano, ou antes o principe virtuoso e prudentissimoque, segundo os annaes louvaminheiros de Frei Luiz de Sousa, foi, sem anenhum fasermos aggravo, um dos primeiros entre os que louvamos de grandes eexcellentes virtudes?

Emfim referem os chronistas que o joven esposo da infanta de Castella,essa princesa não pouco memorada pela energica protecção com que mais tardeensoberbecera o animo pusillanime de Christovam de Moura, falleceu deenfraquecimento phisico dous meses depois do seu faustoso matrimonio. Eu faço-opadecer no leito frio da morte os effeitos inclementes do veneno!

Em quanto a ideias religiosas e a ideias politicas{8} principalmente, reconheço, como com magicaeloquencia observa Emilio Castelar na vida de Lord Byron, que tem este seculoincerto desde o seu começo vacillado entre a rasão e a fé, entre o direito e atradição, entre a liberdade e o cesarismo; porém julgo-me no direito de nãosimpathisar com esse esqueleto de corôa de ferro na cabeça e de guela atrovejar vinganças, com esse systema obsoleto e feudal que felizmente passou aomundo das tradições depois de por tantos seculos haver sido o protogonista dograndioso drama ou da grande tragedia da historia. Esse infeliz regimen, o daspraticas e theorias theocraticas do absolutismo, já não preoccupa hoje em dia,apesar de ainda conservar alguns alentos de cadaver, o espirito dos economistase o genio dos philosophos. Hoje a escolha decide-se pela monarchiaconstitucional ou pelo governo democratico. Simplesmente o que resta averiguarem amigavel concordancia é qual dos dous systemas offerece maior numero devantagens sociaes e melhormente contribue para a emancipação geral dos povos.Eu presumo que todas as tendencias da mocidade preferem as doutrinasrepublicanas por serem as mais desinteressadas e que todos os calculos da idadeviril abraçam os ouropeis da monarchia por serem de todos os systemas politicoso que mais satisfaz a vaidade e as ambições dos homens. Haverá por isso quemrecrimine os meus devaneios democraticos e deteste as minhas expansõesliberaes? Deve comprehender-se que á consciencia repugnam todas as peias e queas conquistas do{9} progresso nãoobrigam o espirito do homem á filiação ou observancia de uma unica fórma outheoria de governo.

Ainda tambem relativamente a formulas e sentimentos religiosos duasideias se devem estremar: a ideia de Deus e a dos seus representantes na terra.As obras e immunidades do gremio catholico não saberei respeital-as com aquellemistico fervor e aquellas espirituaes dedicações que me possam grangear nome egloria nas lendas hagiolicas; mas a ideia de Deus, sinthese de todo o bem eespelho de todas as perfeições, venero-a sem vislumbres de duvida e com o vigormais intimo das minhas crenças.

Não crer na bondade dos padres não é descrer das bondades divinas. Nostempos em que mais se invocava o simbolo da cruz e mais se pelejou pela fécatholica, a christandade que de exemplos nos ministrou de acções e virtudesmenos orthodoxas! Conta H. Taine que Ricardo, o coração de leão, quiz um diasob os muros de San João de Acre comer a toda a força carne de porco. Não haviacarne de porco por mais que se procurasse. Lembra-se o cosinheiro de matar umsarraceno gordo e tenro; salga-o e cose-o seguidamente. O rei come-o eencontra-o delicioso. Quiz depois ver a cabeça do seu porco e o cosinheiro lh'aconduz possuido de grandes tremuras. O rei põe-se a rir e diz que o seuexercito não póde recear a fome porque tem á mão fartura de provisões.

Então, quando os devotos e defensores da cruz fasiam{10} a guerra aos sarracenos, ouvia-se sempre a vozdos anjos dos ceus que dizia: Matae, matae! Não poupeis ninguem; cortae atodos a cabeça!Esta voz dos anjos era ouvida pelos christãos e por issotomando-se qualquer villa ou cidade tudo se passava a fio de espada, criançasou mulheres. Na tomada de Jerusalem setenta mil pessoas, o que prefasia toda apopulação, foram exterminadas cruelmente[1]!

Bem mais delongadas observações em abono de creditos litterarios esobretudo por descargo de consciencia se tornavam talvez indispensaveis; mas euencorporo-me no avultado numero dos que reconhecem a inutilidade e odesprestigio dos prologos. Não ha juisos nem avisos que salvem das voragens doesquecimento um ruim livro. Se o livro é mal escrito e delineado, todos oscordiaes e remedios são falliveis e impotentes da mesma sorte que, se o livro éde materia agradavel e perfeita, dispensa facilmente a importancia ou aformalidade dos prologos.

[1]H. Taine. Hist.de la litt. anglaise, t. I.

 {11}

O CHRISTÃO NOVO

 

I

CIUMES DE UM REI

Por uma das mais somnolentas e placidas noites dos fins de outubro de 1553,no desvão de esguia janella do palacio dos nossos reis estava casual ouintencionalmente encoberto pelas dobras de soberba cortina de rendas deFlandres um personagem vestido com gibão de veludo preto.

Usava elle de curta cabelladura côr de castanha e não inculcava mais decincoenta annos de idade[2].Em volta do pescoço alvejava-lhe{12} uma das amplas gorgueiras encanudadas que, nafrase picaresca de um novellista espanhol, davam á cabeça o irrisorio aspectode um melão collocado em cima de um prato de porcelana branca.Pronunciava-se-lhe bem um nariz em demasia grosso, era baixo da corporaturacomo qualquer burguez e parecia reforçado dos musculos como um legitimodescendente de Hercules.

Para melhormente sobresairem as tintas: «em mean estatura grande proporçãode membros; olhos entre verdes e asues; boca vermelha; rosto alvo e de boa côr.Notava-se-lhe o pescoço um pouco curto e a cintura grossa, mas não que chegassea desar[3]

Dominava-o finalmente a prurigem da impaciencia ou da curiosidade.Translusiam-lhe no rosto arredondado a feição sombria do seu caracter e nosorriso confrangido a indecisa severidade do seu genio. Algum acontecimentoinesperado lhe impressionara sobremaneira o espirito e certamente era essa umadas mais{13} criticas situações aque submettera a sua delicada sensibilidade.

Nada com effeito de mais critica e extraordinaria situação.

Aquella esguia janella gothica pertencia ao quarto de dormir de uma poderosamulher e no centro do quarto via-se um dos mais nobres e esbeltos personagensdo segundo quartel do seculo XVI dado a indiscreta conversação com essa mulherem quem todos «descobriam raras e heroicas virtudes, grande zelo e piedadechristan, grande brandura e affabilidade em obras e palavras para com grandes epequenos.[4]»

—Que nunca eu mereça o vosso desdem, exprimia-se elle com accento deternura e de respeito. Confio nos sentimentos do vosso coração e da vossanobresa, senhora. A não depositar nas vossas mãos a redoma das minhasesperanças, teria levado o meu corpo á defensão da praça de Arzilla ou dasheroicas muralhas de Dio...{14}

—Socegae, Dom Prior. Nada de perder o animo. Bem sabeis que de pouco serveo meu valimento; mas ainda assim me decidirei quanto possa em vosso auxilio.

—É tudo o que vos supplico, porque sei que nada vos recusa el-rei...

—Em pouco mais pensa el-rei do que no zelo da religião e no culto de Deus.As nossas praças de Africa vão sendo abandonadas pelas lanças dos portugueses efracos são os reforços de soldados e munições com que se acode aos ricosdominios das Indias. Escuta lá el-rei os meus conselhos!

—A quem ha de ouvir senão a vós, senhora?

—Attende em mais e em tudo o reverendo Simão Rodrigues e esse terrivelprelado João Soares. Elle não conhece outro amor que não seja a puresa da fé enão respeita outros homens que não sejam os jesuitas... Amor do povo e dapatria como o nutriam em seus heroicos seios seu pai e avô Dom Manoel e DomJoão! Jámais esses bons monarchas offenderam a religião de Christo e sempretodavia se cumularam{15} de gloriasem tribuanes de inquisição e sem ordens de jesuitas...

—Não vos tacharei de injusta por não faltar-vos ao respeito, senhora minha.Certo é que Dom João presta ouvidos a Simão Rodrigues, criou o venerandocollegio de Coimbra, estabeleceu em nossos reinos a mesa do Santo Officio etoda a sua alma se affervora no zelo da religião catholica; mas todas essasvirtudes são effeito de piedade e não de falta de civica devoção. Ama tanto afortuna dos filhos de Loyola e dos discipulos de Torquemada como o bem dos seusvassallos...

—Não que o não fadaram os céus com a vossa indole, Dom Luiz. Por estaslagrimas o digo, accrescentou levando o lenço aos olhos. Que differença tamgrande entre irmão e irmão! A vós não vos fallece galantaria nem juiso. Soisvalente e generoso a um tempo. Todos vos apontam como enlevo das damas,captivaes as affeições do povo e mereceis a estimação dos mais esforçadoscavalleiros da côrte...

—Não me lisongeeis assim, que podem escutar-vos e de mim curtiremciumes.{16}

—Ninguem me culpará perante Deus nem perante os homens. Sabe de sobejo meuesposo quaes são os meus sentimentos a seu respeito. Amor com amor se paga epor isso não deve tomar a mal que lhe eu pague com indifferença as suas friasindifferenças.

—Julgo que nada padecereis, senhora. Mas fallo por mim...

Ainda não eram concluidas taes palavras quando de repente a cortina sedesvenda e o personagem que se conservara achegado ao peitoril da janella seadianta com passo grave.

Parecia, embora a frase tenha laivos de sediça, a estatua severa doCommendador. Era agora, ao contrario das côres naturaes, pallido e altivo dorosto. Dos grossos labios desferia um sorriso de neve. Dos seus olhos entreverdes e asues dardejava um lampejo de indignação que devera ferir como o raio.

Talvez se esperasse a tremenda explosão de colera por muitos dias sopitada.Entretanto o grave personagem declarou com serenidade:

—Nada receeis, meu nobre irmão...

Dom Luiz quedou em silencio. Ou a voz se{17} lhe prendeu nas fauces ou o respeito o fez calar.Com porte severo e imponente apresentava-se-lhe de subito o muito alto epoderoso rei de Portugal e dos Algarves, sua altesa serenissima o senhor DomJoão III.

Era para Dom Luiz das mais solemnes e apertadas semelhante situação. Antesmil veses se quisera em luta encarniçada com os mouros de Asamor ou com ashordas do samorim de Calicut. Dom Luiz de Beja, Prior do Crato, digno infantede Portugal e esforçado filho de Dom Manuel foi havido sempre no consensopublico por cavalleiro valeroso e destemido. Em provas de coragem não noexcederam os Pachecos nem os Albuquerques e ninguem com mais galhardia soubeainda no officio das armas brandir uma lança ou empunhar uma espada. D'ellerecontam chronistas e historiadores que principe nenhum soube dar-se aorespeito melhormente ou faser em sua vida com que o amassem tanto. «O amor queos portugueses lhe tinham passava a idolatria. Adornavam-no todas as partes quepodem fazer-se credoras da estima dos homens. Era nobre e generoso, compassivoe{18} valente, affavel e tamousado que passava a destemido.

«A estas gentis condições andavam annexas muita mansidão na sociedade e raraprudencia nos negocios. Era guapo e bem feito; sensivel, terno e deverasaffeiçoado ao trato das senhoras.

«A fama das suas boas partes moraes e phisionomicas voára até os paizesestrangeiros. No serralho do xerife de Marrocos grangeara grande estima e umadas suas filhas morria de amores por elle. Todas as veses que a nobre donzellaencontrava Dom Diogo das Torres, captivo a quem se facultava entrada livre nopalacio por ser protegido de Muley Abel Mumen, irmão do xerife, nunca sefartava de fallar-lhe no infante. Um dia que passeava nos jardins do palacioviu Dom Diogo e chamou-o para lhe diser: «Colhei de aqui algumas flores e teceicom ellas uma corôa semelhante ás que trasem os principes christãos». ObedeceuDom Diogo das Torres e cuidou de offerecer-lh'a. Tomando-a então e pondo acorôa na cabeça encantadora, ella lhe disse: «Permittam os ceus que eu algumdia viva unida com o infante Dom Luiz como sua{19}esposa e que, sendo elle o rei, eu seja a rainhade Portugal![5]»

Mas agora a conjunctura não demandava feitos de valor nem proesas degalanteria. Atrevera-se Dom Luiz entrar a sós em aposentos que apenas não eramvedados á pessoa do monarcha portuguez: a alcova nupcial de Catharina deAustria, essa virtuosa irman do Cesar das Espanhas, o victorioso imperadorCarlos V!

Mal decorreram alguns instantes quando se voltou el-rei para sua esposa adiser-lhe pausadamente e com um sorriso glacial:

—Deveis desculpar-me, senhora, o vir interromper-vos nos vossos galanteios.Por Deus que vos dou uma lição que vos deve servir para de outra vez terdes emmais recato o pudor e a honra de uma rainha; mas sempre se desculpam os maushumores de um esposo e por isso espero de vós que não tomeis a mal a minhapresença.

Ás veias da orgulhosa princesa de Castella refluiu todo o sangue celta daraça de seu pae{20} Filippe I,aprumou o seu bello pescoço de garça como se nada houvesse que temer, fitoufirmemente com um olhar de aguia o semblante pallido de Dom João III e deprompto impugnou com a austera dignidade de uma rainha:

—Jamais tive galanteios que não fossem para vós, senhor meu esposo!

Sorriu o monarcha d'esta vez com aquelle sorriso contrafeito que lhe erapeculiar e por ventura se dispunha a retorquir em termos de menos restrictaetiqueta quando o infante se lhe dirige assim:

—Assaz vos hei provado, meu irmão e senhor, a força da minha lealdade e oquilate da minha honradez. Sabei que junto da camara de vossa altesa não metrouxeram galanteios. Antes retalhara o coração com o gume da minha espada doque faltar algum dia á fidelidade e ás homenagens que a vós e a ella vos devo.Missão de outra naturesa me guiou á presença da esposa de vossa altesaserenissima. Vim pedir-lhe, senhor, que vos amolgue o genio á compaixão e vosdecida a resgatar a honra de Dona Violante Gomes...{21}

A este suave nome de Violante Gomes pareceu sobresaltar-se o animo deel-rei. Os olhos, que até ahi os conservara como pregados na alcatifa multicordo aposento, erguera-os ao nivel do olhar do irmão e pareciam em semelhanteconjuncção animados de uma estranha vivacidade. Mostrava-se agora mais varonila phisionomia e mais aprumada a estatura do fanatico Dom João III.

—Insensato que sois, meu irmão! Violante Gomes talvez algum dia venha a servossa esposa; mas juro-vos... juro-vos que, em quanto eu viva, nunca Dom Joãoconsentirá que uma barregan se associe á familia dos monarchas de Portugal!

Inesperadamente assomou um vislumbre de colera ás faces amarellecidas doinfante. Pouco lhe quedaria para se esquecer da obediencia que jurara a el-rei,quando Catharina de Austria adianta dous passos e se colloca de permeio comodecidida a conjurar a tempestade.

—É de justiça, aventurou-se a interceder, o que vos implora o infante DomLuiz. Fará o vosso rigor com que mais se deva tomar-vos{22} por tiranno que por monarcha. Elle falla em nomeda humanidade e da honra, duas virtudes que o vosso espirito não poderádesconhecer nem póde repulsar. Por isso não vos merece a resposta do orgulho edo fanatismo...

—Diseis bem, applaudiu Dom João com modos brandos e com uma indefinivelexpressão que só elle e Machiavelo sabiam fingir. Diseis bem; mas essesnegocios ficam para mais tarde. Veremos se elles interessam ao esplendor dareligião e ao bem do estado.

Estendendo depois o braço para a porta do aposento, pareceu indicar a DomLuiz que era chegado o desfecho da entrevista.

Dom Luiz de Beja, baixando a cabeça e não arredando os olhos do chão,dirigiu-se machinalmente para a porta e se retirou em completo silencio.

[2] Nasceu a 2 de janeirode 1502.

[3] Frei Luiz de Sousa.Annaes, liv. I, cap. IV.

[4] Frei Luiz de Sousa.Annaes, liv. III, cap. 11.

[5] La Clede.Hist.ger. de Portug.

{23}

II

OS REIS NÃO COSTUMAM PERDOAR AS OFFENSAS RECEBIDAS

Atravessara Dom Luiz a comprida sala chamada ordinariamente dostudescos e se dispunha a descer a marmorea escadaria dos reaes paçosda Ribeira quando se lhe aproxima um dos pagens de Catharina de Austria e, emtom de quem dá conselhos, ousa segredar-lhe assim:

—Tomae cuidado. Os reis não costumam perdoar as offensas que recebem.

Ao misterioso aviso quasi que Dom Luiz não prestara ouvidos. Embuçando-secautelosamente na sua fina capa de panno verde e carregando sobre os olhos oseu amplo chapeu{24} de feltroenfeitado com bella pluma branca, atravessou a larga escadaria e em dousmomentos se apresenta no meio do espaçoso terreiro.

O Tejo, esse rio de arêas de ouro tam decantado pelos poetas, dormiaplacidamente. Soaram onze horas e o ceu mostrava-se empanado de sombriasnuvens. Raras pessoas transitavam pelas ruas da opulenta capital. Apenas delonge a longe o bronze dos campanarios vinha alterar a prolongada monotonia danoite.

O infante, olhando a custo para as aguas ensombradas do Tejo, pareciameditar. Depois abandonou o terreiro e a passo lento seguiu pela rua da Palha adirecção da praça do Rocio.

Absorvido em estranhos pensamentos ia elle no seu caminho quando lhe surdeminesperadamente de cara tres vultos agigantados.

Em seguida sentiu no peito a lamina de dous punhaes e certamente o seu corpoficaria sem forças e sem vida se os punhaes não resvalassem no aço finissimo deuma cota de malhas.

—Covardes! gritou Dom Luiz ao mesmo{25} tempo que desembainhava a espada e que se poz emguarda.

Immediatamente se crusaram tres espadas contra uma.

Era em extremo fino e destro no jogo das armas brancas Dom Luiz de Beja. Masos seus adversarios mostravam-se lestos e ageis tambem. Além d'issoajuntavam-se tres contra um. Não podia ser mais melindrosa a posição doinfante.

Por fortuna, quando já o suor lhe escorria pelas barbas e principiava dedebilitar-se-lhe o pulso, eis que um novo personagem se intromette na peleja.

Depressa cáe por terra o mais alentado dos aggressores e os dous restantes,naturalmente com receio da morte, poseram-se em immediata e vergonhosaretirada.

—Obrigado, meu amigo, agradece o infante no momento em que aperta comfraternal reconhecimento a destra do seu salvador.

Era elle o mesmo pagem que nos paços da Ribeira lhe segredaramisteriosamente:Cautela, que os reis não perdoam as offensas querecebem!{26}

Por causa das sombras da noite não se lhe distinguiam as feições:poder-se-hia divisar apenas que era fransino do corpo e que lhe relusiam osolhos como a chamma de um lampadario.

Sorriu-se ouvindo os agradecimentos e, talvez com traça de se esquivar anovos protestos de gratidão, pretendeu retirar-se. O infante porém agarrou-lhemeigamente o braço e pediu-lhe que o acompanhasse.

Pouco adiante, a confinar com o adro de San Domingos, elevava-se em umangulo meridional do Rocio uma elegante e vistosa casaria.

O infante bateu de rijo com os copos da espada tres pancadas no portal e aporta franqueou-se-lhe minutos depois.

Ambos subiram os degraus de uma escadaria resguardada de tapetes e depressaalcançaram assim o primeiro andar da casa.

Introduziu-os um domestico em uma sala de paredes vistosamente forradas dericos pannos de Arras e toda mobilada com largas cadeiras cobertas de sedaescarlate.

D'esta sala passaram a um gabinete de exiguas{27} dimensões onde a seda, o brocado, as rendas e oscristaes de Venesa offereciam ás vistas um aspecto encantador.

Mais adiante abriu-se-lhes um salão da mais requintada opulencia. Tudo ahireçumava riquesa e bom gosto. Julgar-se-hia logo a perfumada recamara de umaprincesa.

Os reposteiros foram talhados de uma preciosa fasenda da Persia que DomAffonso de Noronha mandara recentemente nos galeões das Indias. Não eram astapeçarias que cobriam o soalho de menos valor e variedade. Por toda a partemacios coxins estofados de seda asul e franjados de ouro. Alguns quadros querepresentavam as viagens de Dom Henrique e as descobertas de Vasco da Gama,pendiam das largas paredes. Varias figuras da melhor porcelana da China se viamaos recantos do salão sobre dous elegantes bufetes com esmero trabalhados demadeira de ebano. Mil outros objectos de porcelana, prata e marfim decoravamfinalmente com luxo oriental aquella mansão de fadas.

Mal o pagem se dispunha a observar os ricos{28} estofos e as admiraveis pinturas, eis queapparece no salão uma das mais prendadas e gentis damas do reinado de Dom JoãoIII.

Trajava um vestido de lhama asul guarnecido com alamares de passamanes deprata e ouro, decotado a modo de revelar todo o seu alvo pescoço e tam curtodas mangas que se lhe viam quasi todas as rosadas carnes do seu braço.

Poucos pintores estudaram ainda tam bello perfil e mais alegre figura.

Eram, como dous astros de amor, cheios de ternura e limpidez os seus olhoscastanhos. Não havia mãos de mais fina epiderme nem dedos de mais esmeradaestructura. O contorno do nariz não cedia em perfeições aos das estatuas gregasque representam a deusa das graças e dos amores. Os labios, feitos das petalasde uma rosa, possuia-os tam frescos e delicados que pareciam de uma criança.

Quanto não valiam os seus sorrisos e que thesouros de ternura não encerravamas suas fallas!

Era alta do corpo e franzina da cintura, como devem ser, á semelhança dasprimorosas estatuas{29} dePraxitelles e de Phidias, esse ideal das artes plasticas, os contornos eproporções das rainhas da bellesa. Mais nutrida que magra assim nos braços comono rosto e, para mais se accenderem cubiças, da arca do peito avolumava-se-lheo contorno dos lacteos pomos de que Tasso e Camões nos fizeram a descripção.

Passava já dos trinta e seis annos de edade e comtudo ninguem lhe calculariaacima de vinte e cinco primaveras: primaveras superabundantes de rosas efrescura, porque uma eterna juventude é algumas veses privilegio das mulheresformosas!

Imprimiu-lhe o infante um doce beijo na mão esquerda e, apontando para opagem, lhe disse risonhamente:

—Apresento-vos, minha querida Violante, um bom amigo que ainda ha pouco mesalvou os dias da vida.

O pagem conservou-se em mudez. Possuido de uma agradavel commoção, ajoelhouaos pés da formosa dama e não pôde elle evitar que dos seus olhos negros seescoasse uma lagrima de praser.{30}

Violante Gomes estreitara-o nos braços de fada e com palavras divinamenterepassadas de doçura lhe rumorejou:

—Deus vos recompense o bem que fiseste.

Dispôz-se então a contar-lhe o infante o que se passara.

A narração foi simples e curta. Poupou todas as côres da fantasia e doromantismo. Não se lhe ouviu sequer uma accusação contra os sicarios nem contraa pessoa que lhes commettera a empresa.

O pagem depois tomou a palavra n'estes rapidos termos:

—Dom Luiz é denodado em demasia. Se lhe presaes a vida, minha senhora,deveis aconselhar-lhe que não a exponha tanto. Inimigos poderosos lhesobejam...

—Talvez que só Deus o possa defender! exclamou Dona Violante.

—Deus, acrescenta o Prior do Crato, Deus e a minha espada e os meus amigostambem. Que ha traidores no mundo sei-o eu; mas que se guardem, que se guardembem os traidores!{31}

—Guardam, guardam... Não vêdes como apenas mostram elles o braço e opunhal?

A esta allusão da formosa dama logo vaticinou o pagem:

—Decerto não falta um vilão que a troco de alguns ducados assassine oprincipe Dom Luiz!

—Mas que empenho haverá n'isso? Dizei-o, que vôl-o supplica Dom Luiz deBeja!

—Quereis que vôl-o diga em voz clara? Alguma coisa devera aprender no meuofficio de cortesão e eu vos direi agora o que sei: vosso irmão o senhor DomJoão III não vos estima... antes vos odeia!

—Ousaes assim calumniar el-rei! com animo exaltado replicou o infante. Boféque, se vos não devesse a minha vida, diria agora que... ensandeceste.

—Rogo-vos moderação, acudiu a dama. Falla o que sente e o que sabe estegeneroso mancebo. Oxalá sejam imaginarios os seus receios; mas não sei quetriste presentimento me leva a crêr que algum infortunio nos ameaça...

Sorriu-se o pagem com essa expressão de{32} interna melancolia que não se descreve nunca. Emseguida volveu-se para o infante.

—Perdão... mil veses perdão se vos offendi! lhe disse.

Abraçou-o o infante com o espirito sinceramente commovido. Descobrira nopagem um tal caracter de franquesa e um certo cunho de verdade que desde logose lhe afigurou ninguem ser digno de maior estima.

Á primeira vista mostrava-se repugnante a phisionomia do pagem. Predominavan'elle o sangue das raças selvagens do Oriente. Era negra como aseviche apupilla dos seus grandes olhos e essa pupilla parecia tarjada de um levecirculo de sangue. O nariz era chato alguma coisa e alguma coisa largo dasasas; a côr da pelle bastante acobreada e os beiços grossos sem desar. De idadenão contava mais de vinte e dous annos, mas na agilidade dos musculos e navivesa do espirito poucos ou nenhuns cavalleiros o excediam.

Nascera no paiz dos badages e ali fôra, em companhia de seus velhos paes,convertido ao christianismo pela palavra e pelo exemplo de{33} Antonio Criminal. Quando os badages degolarameste malaventurado jesuita foi tamanho o horror que a pobre criança concebeupelo seu idolo Trichandur que nunca mais quiz lembrar-se do seu paiz natalicio.O vice-rei Jorge Cabral conhecera-o em Gôa, criara-lhe amisade pelas boasprendas que em todo elle descobrira e embarcou-o para Lisboa no seu regresso em1550.

O pagem, embebido nos perfumes de um ambiente de delicias, agora não sefartava de contemplar a peregrina formosura de Dona Violante. Nunca nos salõesda côrte lhe fascinaram os olhos princesa de fórmas tam correctas, de maneirastam delicadas e conversação mais suave. O terno e melodioso accento com quefallava insinuava-se meigamente nos corações como se fossem harmonias do ceu.Superabundavam-lhe bellesas assim no corpo como na alma. Talvez porque o acasolhe denegara a nobresa do nascimento, concedera-lhe Deus todas as mil prendasque no mundo servem de apanagio e de cortejo á graça e á formosura.

Dona Violante fez-lhes servir aos seus dous{34} hospedes, em ricas bandejas de prata, algunsdoces e licores. Depois, a rogo do infante, passou com agilidade os seuspequeninos dedos pelas cordas de uma harpa e com ternissimas inflexões começoude cantar o bello soneto em que Luiz de Camões define o amor:

Amor é um fogo que arde sem se vêr;
É ferida que doe e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dôr que desatina sem doer.

Logo que terminou levanta-se o gentil prior com todo o carinho a apertar-lheos braços em volta da cintura e com labios de fogo imprimiu-lhe nas rosas docollo um osculo fremente.

—São estas as unicas venturas da minha alma! revelou elle ao pagem. Não vêscomo ella é formosa? Algum dia te contarei como nasceram estes amores...

{35}

III

RECOMPENSA DO CRIME

Acabara de badalejar a meianoite no campanario da cathedral quando na portaria arqueada do memorandocollegio de Santo Antão parou um homem de gigantea corporatura.

Vinha embuçado em um capote de fartos cabeções e equilibrava na cabeça umdesses negros chapeus com amplas abas e copa sumida em fórma de funil.

Depois de relancear prescrutadoras e desconfiadas vistas, entrousorrateiramente no alpendre{36} doedificio e dirigiu-se por uma das portas lateraes para um modesto gabinetesituado ao rez do chão.

Aguardava-o ali com impaciencia um magro personagem de vestes sacerdotaes ede phisionomia carcomida pela sarna dos annos.

—Então que boas novas me trazes tu? perguntou elle sentado em pobretamborete de carvalho e desviando os olhos de um livro escrito na lingualatina.

—Não me parecem tão alegres como desejava, regougou o recemchegado.

—Bem mau é isso. Mas conta depressa o que aconteceu, meu Jacobo.

—Pois saiba... saiba vossa senhoria illustrissima que tudo se frustrou porartes do diabo.

—Jacobo, fallas a serio porventura? com preoccupação interrogou o padre.

—Com verdadeira magoa o digo; mas é verdade.

—O que tambem é verdade é que sois todos uns covardes...

—Tudo menos isso, meu senhor. Era elle que vestia a pelle do diabo! A nãoser assim,{37} eu por Deus quesoubera responder pelo ferro do meu punhal!

—Sempre usaes do mesmo ripanso. Todos vos credes uns fanfarrões e unsHercules; mas porfim de contas, se é mister que se mostre valentia ou governecom prudencia, sois deveras mais pecos e villãos do que um asno.

—Deve saber vossa senhoria illustrissima que a culpa não foi nossa. Juroque não foi. Esperamol-o a sangue frio e logo, peito a peito como varõeshonrados, procuramos mandal-o de presente ás megeras do Averno quando ospunhaes, em vez de toparem carne de christão, encontram o aço de uma saia demalha... Mas, ainda assim, tudo se remediava á maravilha: como os punhaes eramcurtos, puchamos das durindanas em guisa de valentes campeões e em poucosminutos dariamos com meia duzia de cutiladas remate á nossa obra se deimproviso se não intromette o demonio em favor d'elle. Um dos nossos cae porterra e os outros... os outros...

—Escusas de confessar que fugiram... provavelmente com temor de lhesacaecer a mesma sorte.{38}

—Não foi o temor, meu padre. Tem vossa senhoria em mim um rude servo quenunca do sitio do perigo arredou pé com medo nem covardia!

—Conheço-te bem, meu Jacobo. Faço justiça á tua valentia e espero que metoleres algum arrebatamento. O pobre velho não sabe o que diz, não sabe o quediz muitas veses... Mas dize-me ainda: que fiseste do companheiro que morreu?

—Á falta de outras virtudes, nunca me arrependi de ser prudente. A estashoras, meu padre, está elle a servir de repasto aos peixes do Tejo.

—És assisado, és assisado na verdade. Toma em paga dos teus serviços eretira-te por hoje.

Atirou-lhe o padre com um punhado de moedas de ouro e o gigante, mirando-ascom olhos de cubiça, lançou com prestesa mão d'esse precioso metal que na frasede Tolentino é otiranno do mundo.

—Sempre a vossa senhoria conheci generosidade, retorquiu elle correndo amão esquerda pela desgrenhada cabelladura. Mas d'esta vez,{39} meu padre, bem sabe que tenho de repartir...Cincoenta escudos[6] é pouco.

—Nem um morabitino merecias ganhar, meu velhaco.

Jacobo afastou-se sem novas replicas e a meia voz foi tratando de combinar amelhor maneira de embair a boa fé do seu companheiro.

—Sempre lhe direi que não recebi mais de trinta escudos, rosnou elle pelocaminho.

Em seguida poz-se a cantarolar aquella sabida canção[7]:

Como no se desespera
quien se vê como me veo
tan lexos de dó desseo,
tan cerca dó no quisiera?

Entretanto o ecclesiastico de Santo Antão esfregava as engelhadas mãos comoprova de quem se não julga de todo descontente.

—Do mal o menos, murmurou levantando-se{40} do tamborete. Escapou-nos por hoje, mas nada sedescobriu... E que tudo se divulgasse e descobrisse? És muito anão, Dom Luiz deBeja, para ergueres o braço contra a pessoa que te mandou assassinar!

O ecclesiastico fechou o livro e deixou-se cair novamente no meio da sola dotamborete.

—Meu Deus, meu Deus! exclama então com gesto de arrependimento. As tuasdoutrinas só respiram humildade e amor; queres que amemos o nosso proximo comonos amamos a nós mesmos; aconselhas o perdão das offensas e o abandono dasriquesas do mundo... Mas como renegamos a tua lei e os teus conselhos, Deus meu!Entra uma vez nos seios do homem o veneno das ambições terrestres e esquecem-sebem depressa os deveres da virtude e a salvação das nossas almas. Tudo seesquece e... lá vamos nós, vermes orgulhosos, pelo menos subvertendo nasvoragens do crime a tranquillidade do espirito e a saude do corpo!

Abrio mansamente o livro, entregou-se por alguns momentos á leiturad'aquelle salutar capitulo que traz por epigrapheDe consideratione humanæmiseriæ{41} e que principiapor estas palavras de humildade:Miser es, ubicunque fueris et quocumque teverteris, nisi ad Deum te convertas.

Seguidamente prostou-se o padre de joelhos e com modos de extrema beatitudefixou os olhos nas taboas do pavimento.

—Eu sei, declamou ainda, que só trabalho para o progresso da religiãocatholica e em beneficio da santa madre igreja. Mas o meu coração está cheio demagoa, meu Deus. São grandes os meus erros, são enormes os meus peccados!

Decorreram dous minutos de tranquilla meditação e tudo ali, como se fosse orecinto de um cemiterio, permanecia completamente calado. Nem o cicio dosinsectos nem as oscillações da pendula dos relogios interrompiam o silenciosepulchral do gabinete.

—Deus de misericordia! por fim proferio o padre batendo por duas veses comos punhos na arca do peito. Meu Jesus de misericordia, guiae-me como bomchristão pelo caminho da virtude e fasei com que me não desampare nunca{42} a vossa infinita graça. Eis aqui umgrande peccador que, fingindo observar todas as virtudes da religião, encobertaas chagas dos maiores vicios! Eil-o aqui, humildemente offerecendo a cabeça aogladio da vossa punição!... Mas tende vós piedade de mim; tende piedade de mim,senhor!

Seguidamente lançou mão de um latego de rijos loros e dispôz-se, a exemplodos mirificos varões de que nos fallam os livros de theologia, a flagellarrudemente as espaduas, os peitos e os rins.

Não desprendia da garganta um unico murmurio de dôr e todavia cada vez commais força se redobravam os açoutes.

Sempre sereno do rosto e humilde da postura como as figuras de algunsmacillentos retabulos da escola flamenga, disciplinava-se cruelmente á maneirado mais exemplar e do mais devoto dos filhos do christianismo. Se deixava deorar é porque as correas lhe açoutavam as carnes do corpo e, se parava com ocastigo do latego, é porque em misticas leituras pregava os olhos nas paginasdo livro.{43}

Esse livro abrangia mediana fórma e fôra publicado em 1492. Todo cheio dedoutrinas religiosas, rescendia das suas bellas paginas os santos olores dasfolhas do evangelho. Era verdadeiro balsamo para o espirito de um christão eainda hoje tanto consola o christão como o philosopho. «Admiravel apesar danegligencia do estilo, commove muito mais do que as argutas reflexões de Senecae as frias consolações de Boeccio. Foi traduzido em todas as linguas e lê-se emtoda a parte com infinito gosto. Conta-se até que um poderoso bey de Marrocos oguardava na sua bibliotheca e de quando em quando o lia com inexcedivelprazer[8].» Leitura semprecheia de uncção e piedade, mereceo do sabio Fontenelle o conceito de «o maisbello livro sahido das mãos dos homens». Modestamente se intitulaDeimitatione Christi.

O padre todos os dias e todas as noites o folheava com beatifica einalteravel devoção. Todos os dias passava algumas horas lendo-o umas vesessilenciosamente e outras em voz alta.{44}

Que mistico e santo apostolo não devia de ser este padre! Quem posesse oouvido ao ralo da porta da sua pobre cella, ouvil-o-hia pedir com profundoarrependimento aos ceus misericordia para os seus peccados e salvação para asua alma. Para castigo dos affectos humanos, não se poupava jejuns nempenitencias. Na boca dos irmãos da sua ordem jámais no orbe catholico brilharajesuita de maiores virtudes. Quando em reverente postura de resa e devoção secollocava defronte do seu crucifixo, logo se poderia tomar por qualqueranachoreta da Nitria. Ninguem á primeira vista o julgara desmerecedor departicipar dos mais subidos panegyricos das lendas hagiolicas.

Chegou de Roma em Companhia de Francisco Xavier no anno de 1540. Elle eFrancisco Xavier foram do numero dos jesuitas que o embaixador PedroMascarenhas solicitara de Paulo III para se dedicarem no imperio das Indias áconversão dos idolatras e ao esplendor da fé catholica. O piedoso navarrodecidio-se com Misser Paulo e Francisco de Mansilhas a ir, por suas doutrinas evirtudes, ganhar entre o gentio{45} o glorioso titulo deApostolo dasIndias; mas o seu companheiro preferio que el-rei Dom João o galardoassecom a menos obscura e penosa commissão de director do collegio de Coimbra.

Era Simão Rodrigues,—o ladino padre mestre provincial que na sua qualidadede poderoso valido de el-rei julgava prestar mais acrisolados serviços á causade Deus e ás venturas da patria. É certo que ao benemerito Francisco Xavierdeveram as Indias uma das mais heroicas e soberbas paginas da sua epopêa. Eis oque a tal respeito apregoam as trombetas da fama[9]:

«Uma noite, referem as chronicas, os soldados do rei de Achem entraram napraça de Malaca, deram sobre as embarcações ancoradas no porto, queimaram parted'ellas e ao romper da madrugada retiraram-se em triunfo como se tivessemalcançado uma grande victoria. Encontrando um barco de sete pescadoresmalaquinos, cortaram-lhes as orelhas e o nariz e com o seu sangue escreveramuma carta prenhe de{46} injuriasao governador Simão de Mello. Accendeu em colera tam cruel insulto oshabitantes de Malaca e Francisco Xavier, movido de compaixão á vista dospescadores mutilados de modo tam barbaro, foi o primeiro a diser que logoconvinha vingar a injuria feita á nação portuguesa.

«—Não se deve, accrescentava elle, supportar semelhante violencia. Cumpreembarcar, acodir em seu alcance e tirar todo o desejo de vos insultarem segundavez. Ainda digo mais: que sois obrigados a isso se não quereis perder o nome ea reputação.

«—Nós assim o entendemos, respondeu o governador, mas faltam-nos as forças.As vossas embarcações estão podres e incapases de servir. Para espalmar as quetemos seria necessario mais tempo do que para fabricar outras de novo. De maisd'isso os inimigos são muitos e os nossos alliados não podem soccorrer-nos comtanta promptidão.

«—E não ha outras senão essas difficuldades para superar, senhorgovernador? lhe replicou Francisco Xavier. Pois bem está: eu tomo a{47} cargo o diligenciar que seconcertem as embarcações.

«Voltando-se depois para os officiaes e soldados, lhes disse em voz grave:

«—Deus está pela vossa parte, amigos e irmãos, cavalleiros e soldados deJesus Christo. Em seu nome vos advirto que arredeis do espirito qualquer temore medo. Elle vos chama a uma guerra santa. Ou fiqueis vencedores ou vencidos, apalma sempre será vossa!

«Marcha seguidamente para o porto, onde apenas achou sete fustas e um caturá mingoa de tudo o que era necessario para se meterem ao mar. Além disso osarmazens reaes estavam completamente vasios. Não havia breu nem resina nemestopa para calafetar as embarcações. Faltavam armas, polvora e outras muniçõespara poderem combater. Recorreu então a sete pessoas abastadas e moveo-as afaser as despesas demandadas pela expedição. Dentro em cinco dias poseram-se asfustas em estado de ir a corso.

«Eram os portugueses ao todo 140 homens e embarcar tambem com elles desejavaFrancisco{48} Xavier; mas não oconsentiram o governador e os habitantes de Malaca.

«O almirante portuguez encontrou no rio Parlés a frota achenina e então,saltando a um esquife, com a espada em punho visita as suas embarcações eproclama aos seus soldados:

«—Filhos de Jesus Christo, lembrai-vos das promessas de Francisco Xavier.Das vossas mãos depende a victoria. Os acheninos não nos podem fugir e agoracolherão o castigo devido á sua barbaridade.

«—Todos pelejaremos, responderam os soldados, em defensa da lei de JesusChristo para se desaggravar a nossa patria e manter-se a nossa gloria. Havemosde vencer. Descançae vós na nossa valentia e no despreso que temos pela morte.»

«O almirante voltou para a sua embarcação e logo se avistou o inimigo que,soltando estridentes gritos, fasia retinir todo o rio. Achava-se disposto emdez linhas e cada linha constava de seis embarcações com excepção da primeira,que era de quatro.

«Deram os inimigos uma descarga com toda{49} a artilharia, mas sem causarem damno algum aosportugueses. Seguidamente os almirantes arremeçaram-se um sobre o outro e ambosdisputaram largo tempo a victoria até que a do almirante inimigo foi metida apique. As outras mais proximas, atravessando para salvarem a gente que nadava,voltaram os flancos para as forças portuguesas. De maneira que essas mesmasembarcações serviam de estorvar as que vinham atraz, porque as da seguintelinha vinham de encontro ás da primeira, as da terceira contra as da segunda eassim de tal modo que se dizia combatiam umas contra as outras. Então osportugueses despediram tres descargas successivas que meteram a pique noveembarcações grandes. Abordando depois ás embarcações acheninas, saltaram dentroe degollaram dous mil soldados. Vendo o resto dos acheninos a sorte doscompanheiros, precipitaram-se no rio em procura de salvamento; mas afogaram-setodos.

«Nunca se proclamou victoria mais completa nem que menos custasse!

«Lavrava todavia a consternação em Malaca.{50} Não chegara ainda noticia da frota desde quesahira do porto. Debalde Francisco Xavier se esmerava em socegar os habitantese podia tanto com elles o medo, que em pouco tempo se persuadiram de serperdida. Até alguns sarracenos tiveram a ousadia de divulgar como noticia certaque os acheninos a desbarataram completamente. A desconsolação por isso erageral na cidade e todos tornavam a Francisco Xavier a culpa de se perder afrota. O piedoso varão assegurava o contrario; mas ninguem se reconhecia noestado de crer o que elle assegurava. Accusaram-no geralmente de ser a causa dese perderem tantos homens valentes, zombando das preces que por elles fasia aDeus e disendo irrisoriamente que só lhes serviam de suffragio para suas almas.

«Por fim o virtuoso varão declarou ao povo com um profundo convencimento:

«—Deus é victorioso. Nossos soldados triunfam. Estou vendo os de Achembanhados no proprio sangue. O nosso exercito em marcha triunfante deve entrarsexta feira pelo porto de Malaca.{51}

«Chega entretanto Manoel Godinho e confirma tudo quanto fôra annunciado.Torna-se em viva alegria a entranhavel tristesa em que todos estavam. Os aresretiniram com voses festivaes. Divisa-se o praser em todos os rostos. Emfimentra o almirante na sexta feira pelo porto, bem cheio de gloria e carregadocom os despojos opimos da batalha!»

[6] Moeda de ouro mandadacunhar por Dom Duarte e depois refundida por Dom Manoel. Valia 1$600 reis.

[7] Obr. de Sá deMiranda.

[8]Nov. diction.hist. par une société de gens-de-lettres, art. Kempis.

[9] La Clede.Hist.ger. de Port.

{53}

IV

O FESTIM DE BALTHASAR

Era Francisco Xavier um dosraros exemplos com que os jesuitas poderiam alardear a santidade da suauniversal associação; mas quem é que em Lisboa se importava das virtudes doapostolo das Indias?

Por outras differentes rasões se recreava Lisboa com folganças e festejos.

Desde o alvorecer da madrugada salvava com festival estrondo a artilharia dovelho castello.

Por todos os angulos do Rocio e do Terreiro do Paço resoavam alegres musicasde atabales e clarins.{54}

Grande parte das ruas e casarias se decoraram vistosamente com galhardetesmulticores, bambolins de murta e festões de louro e rosas.

Estavam preparados com sedas e damascos os toldos e os enfeites dosescaleres reaes.

No tope dos mastareus das galeras e bergantins do Tejo viam-se tremularflammulas e estandartes de todas as nações.

É que a côrte portuguesa regalava-se com um dos mais esplendidos dias degala.

Ao bispo de Coimbra, Dom João Soares, bem como ao duque de Aveiro, Dom Joãode Lencastre, fôra commettido o honroso cargo de irem buscar a Castella aprincesa Dona Joanna e n'esse dia chegava esta guapa noiva á cidade de Lisboacom o mais soberbo acompanhamento de gentis-homens e equipagens que raras vesesse vira em terras de Portugal.

Nada pouparam o faustoso Dom João de Lencastre nem o opulento Dom JoãoSoares para se mostrarem com a magnificencia que competia ao seu estado e á suaposição.

Luxo e estrondo por toda a parte. Os mais ricos veludos serviam de fasendaaos elegantes{55} capirotes dospagens. Eram sedas recamadas de bordaduras de ouro os vestuarios dos condes edos gentis-homens. Custosos brocados de prata reluziam nos xaireis decentenares de ginetes e no aço polido das armaduras dos arautos e reis de armasreflectia-se o sol com raios coruscantes.

Nunca o povo de Lisboa se recordava de presencear festejos de tanta vista ede tamanho esplendor. Era grande a alegria d'elle por isso. Ao som de confusascharamelas soltava enthusiasticos vivas, e assim em infernal confusão de vivase descantes cada vez mais accendia os seus enthusiasmos!

Ia-se acoutando o astro do dia nos abysmos do oceano, á mesma hora em quenos reaes paços da Ribeira começou a solemne recepção da princesa castelhana edo seu apparatoso cortejo.

Todos na sala do throno vestiam com o mais apurado gosto e com uma especiede luxo oriental. Eram principalmente as roupagens da rainha adereçadas da maisrica pedraria e do mais esquisito artificio. Cingia-lhe a fronte um bellodiadema cravejado de perolas e diamantes. Cravejada{56} tambem de preciosa joalharia decorava-lhe o peitoa cruz da ordem de Isabel a Catholica. O manto, finalmente, era guarnecido derenda de ouro e pespontado dos castellos e quinas de que desde o fundador damonarchia fasem uso os mantos regios[10].

El-rei envergava uma custosa vestidura de terciopello e cobria-lhe oshombros alentados uma opa roçagante de lhama de ouro e prata. Por cima da curtacabelleira pousava-lhe na cabeça um chapeu enfeitado com plumas brancas, de abaerguida de um lado e presilha recamada de vistosa pedraria. Emfim as bellasinsignias do Tosão de Ouro assoberbavam-lhe o peito e da cinta pendia-lhe umdourado espadim em que relusiam meia duzia das mais preciosas gemmas da coloniado Brasil.

Satisfeitas as varias ceremonias e etiquetas exigidas em semelhantesconjuncturas, procedeo-se depois a um desses opiparos banquetes que entravam nalista dos praseres dos monarchas de Babylonia.{57}

De direito fez as honras da mesa el-rei Dom João III, ficando-lhe á dextra aprincesa de Castella Dona Joanna e ao lado esquerdo o poderoso valido Antoniode Athayde. Em frente do velho monarcha sentara-se a rainha Dona Catharina deAustria, cedendo a cadeira de honra a seu filho o principe Dom João e aesquerda ao infante Dom Luiz de Beja.

Por sua grandesa e gerarchia ali estava resplandecendo tudo o que se poderánotar de melhoria nas ordens clericaes e nas raças aristocraticas de Portugal.

Não faltavam ao banquete, além dos principes e mais pessoas da familia real,o bispo de Coimbra, os arcebispos de Braga e Lisboa, o beato jesuita SimãoRodrigues, o illustre Dom João de Lencastre, o chanceler doutor João Monteiro,o desembargador Dom Gonçalo Pinheiro, o nobre Marquez de Villareal, o prudenteDuque de Bragança e ainda tres dusias de lusidos personagens que na maior parterepresentavam a curia de Roma e as côrtes estrangeiras.

Bellos vinhos de Caparica e Seixal, bons licores{58} e as mais esquisitas iguarias serviam-se comprofusão. Os vinhos eram de excellente paladar e por isso motivaram algumasalegres modificações no rigoroso codigo das etiquetas.

Foi Dom João III o primeiro personagem que se ergueu com a copa na dextra.Já não era o monarcha de severo e sisudo caracter. Mostrava-se de facesrubicundas, olhos risonhos e maneiras joviaes. Nunca o seu espirito se abriracom tanta expansão e tanta liberdade. Sorrindo com alegria, olhou por ummomento em derredor da mesa e proferiu pausadamente as palavras seguintes:

—Sem lisonja o digo, senhores. Sobreluzem no semblante e no espirito da muialta e excellente esposa de meu presado filho Dom João todas as graças e maisprendas que podem exornar a pessoa de uma princesa. Para goso e ventura detodos os meus vassallos imploro de Deus lhe dilate a preciosa vida por muitosannos. Sempre lhe tributarei n'esta côrte as mais ternas affeições como filha aquem muito amo e todas as homenagens como princesa das mais excelsas virtudes.Por isso é, fidalgos e prelados{59} da minha côrte, que eu com summa alegria do meucoração brindo agora á saude da nobre princesa Dona Joanna!

Todos os prelados e fidalgos levaram aos labios as preciosas amphorasespumantes do saboroso Caparica, ao mesmo tempo que, de pé e em reverentepostura, baixaram respeitosamente para Dona Joanna as radiosas cabeças.

De branco vinho do Seixal tornou logo o monarcha a encher a Copa e novamentese dispoz a abrir os diques á sua expansiva loquela.

—Grandes e senhores da minha côrte, principiou elle, não deixarei tambem defaser votos pela existencia e ventura do herdeiro do meu throno. Piamenteconfio em que Deus lhe inspirará amor pela justiça, respeito ás leis do reino eobediencia ás doutrinas da nossa santa religião. Firmam-se n'elle as esperançasdos leaes portugueses e certamente meu filho se tornará digno por seus talentose virtudes do amor dos meus vassallos. Escuso de lhe declarar as affeições domeu seio; mas saiba que eu o amo e preso como pai e como amigo. Rogarei sempreaos céus nas minhas orações lhe prospere Deus{60} a preciosa existencia... Que Deus lh'a prospere eviva por muitos annos o glorioso principe Dom João! Meus senhores, perorouerguendo mais a copa e a voz, viva meu filho o principe Dom João!

Um coro dissono e rapido de vivas eccoou pelos recantos do vasto salão dofestim. Principes e embaixadores, fidalgos e prelados ouviram com enthusiasmoas ultimas voses de el-rei e todos a um tempo, levando á altura dos beiços ascopas cheias d'esse valente liquido queo peito accende e a cor ao gestomuda, soltaram o grito fremente deviva o principe Dom João! Viva oprincipe Dom João!

Sentaram-se depois e por um pouco arrefeceram os gastronomicos delirios.Apenas se escutavam o rangido frouxo dos talheres e as brandas passadas doscriados. Foi porém de breve duração esta calmaria. Levantou-se o Conde daCastanheira e, com fallas adamadas e gestos em demasia palacianos, dispoz-se adiscursar.

—Pedindo venia a vossas altesas serenissimas—começou o poderoso valido,cortejando com a cabeça o monarcha e Dona Catharina—ouso{61} tambem manifestar a grande satisfação que medesperta o glorioso dia que em tam esplendido banquete se commemora. O felizconsorcio do nosso principe real é para todos os leaes portugueses motivo defelicitações e regosijos. Quem não ha de exultar com as virtudes varonis eprendas naturaes dos augustos noivos? Permitti que vos saude, excelsa princesa!Dae-me a liberdade de brindar á vossa ventura, augusto principe!

Dom Antonio de Athayde bebeo de um trago o vinho do seu calix e a tampalaciano brinde logo corresponderam em coro todos os convivas.

Por seu turno ergueram-se ainda com os calices na mão o inquisidor geral D.Henrique, o velho arcebispo de Braga e tambem Dom João de Lencastre.Entresachados de latim e de textos theologicos se desenvolveram os dousprimeiros discursos, mostrando-se assim a erudição e sabedoria dosrespeitabilissimos varões que os proferiram. O de Dom João de Lencastre, essefoi declamado na lingua espanhola em frase singela e correntia como sendo depessoa mais{62} adestrada no jogodas armas que em torneios de palavras.

Como nas marés dos oceanos, dá-se tambem o fluxo e o refluxo nas marés doenthusiasmo. Nem tudo, por esta rasão, era delirio e voseria. O silencioreinava tambem de longe a longe.

Silencio profundo reinava no salão do banquete quando, emfim, de um dosrecantos da mesa se levanta um mancebo de tez morena e bronzeada como a dospovos da India.

Era o joven amigo do infante Dom Luiz de Beja.

—Monarcha Dom João, prologou elle com voz clara e rosto sereno, eu venhocomo o profeta Daniel vaticinar-vos a sorte de Balthasar!

Mal fôra proferida esta ameaça terrivel e já duas duzias dos mais esforçadosfidalgos se adiantaram com o punho nos copos dos dourados chifarotes.

O pagem não se intimidou, porém. Deu maior volume á voz e com o seu placidogesto exprimiu-se ainda:

—Não encareço as vossas virtudes nem culpo os vossos vicios, monarcha DomJoão; mas{63} sempre vos imputareia responsabilidade dos tremendos crimes que se commettem na vossa côrte...

—Crimes na minha côrte! bradou o monarcha portuguez ao erguer-se da cadeiracomo impellido por uma secreta mola.

—Admiro, replicou immediatamente a rainha Dona Catharina, que ainda não vosdissessem que tentaram hontem assassinar vosso irmão o infante D. Luiz.

Á inesperada revelação succedeo um momento de espanto e alvoroço. Quem nãopresaria em Portugal a vida do infante? Presavam-na deveras assim fidalgos comopeões e por isso ninguem havia entre os nobres commensaes que se nãosobresaltasse com a nova de que a vida de Dom Luiz de Beja correra imminenterisco.

—Fallae agora vós, meu irmão. Por acaso premeditaram alguns sicarios contraa vossa vida?

—Tentaram na verdade, placidamente respondeo a el-rei o infante Dom Luiz.Hontem por alta noite fui eu acommettido por tres bandidos{64} e de certo dos seus punhaes seria victimainnocente se me não acode aquelle generoso pagem.

—Graças dou a Deus, volveu el-rei, por haverdes escapado do perigo. Mas quefoi feito dos assassinos? Justiça rigorosa se fará, meu presado irmão.

—Justiça rigorosa vol-a reclamo eu! solemnemente bradou a rainha.

—Justiça! justiça! conclamaram todos os convivas.

Gradualmente foram esmorecendo as vingadoras explosões de enthusiasmo eentão o monarcha portuguez, retirando-se bruscamente da mesa, fez terminar essefestival e ruidoso banquete que, para dar em tudo semelhanças do festim deBalthasar, só faltou que mão invisivel escrevesse na parede as mysteriosaspalavrasmanéthécelpharês!

[10] Vid.Hist.polit. e militar de Port. por L. Coelho, t. I, pag. 249.

{65}

V

ORAÇÕES E JEJUNS REDIMEM TODAS AS CULPAS

Da casa do jantar passou amaioria dos convivas para um faustoso salão em cujos moveis sobresaiamriquissimos estofos de cores amarella e carmesim.

Aqui principiaram damas e fidalgos de se entreter com jogos de cartas,girando a rodo sobre as mesas moedas de prata e ouro como se fossem alcacer deAstrea os paços de el-rei Dom João III.

Dom João III, esse vamos vel-o no seu gabinete preoccupadamente sentado emlarga poltrona franjada de ouro e prestando a maior{66} attenção ás fallas veneradoras de dous illustrespersonagens.

Estes personagens vestem com excessiva desigualdade no feitio e na fasenda:traja o mais novo rico veludo roxo e o mais velho humilde roupeta de estamenha.

Será empresa difficil todavia distinguil-os no valimento e no poderio. Ambosrepresentam duas hierarchias eminentes: a nobresa e o clero.

São o padre mestre provincial Simão Rodrigues e o celebre Conde daCastanheira, esse poderoso valido que grangeara famas de que «n'aquelle temponinguem se lhe avantajava nas partes de conselho e maduro juiso[11]».

—Juro-vos, estava asseverando o jesuita, que nada se descobrio. As palavrasd'esse estonteado badage motivaram-nas os vapores do vinho.

—O mesmo acredito eu, accrescenta o conde. A noite corria escura e aempresa foi commettida a gente de confiança...

—Mas, interrompe el-rei, não me disseram{67} já que o attentado se baldou por artes do diaboou por manhas de quem quer que fosse?

—Verdade é, responderam ambos ao mesmo tempo.

—Em tal caso facilmente se poderia descobrir tudo...

—Os aggressores, acode o jesuita, acautelaram-se bem. Os chapeus e oscapotes deram-lhes panno de sobra para cobrirem as barbas e, quando chegou odiabo, todos debandaram com prudencia.

—Tal accommettimento ha de ser sempre o dessocego do meu espirito! desabafael-rei.

—O bem do estado assim o reclama, volve por sua vez o conde.

—Dizes, conde, que o bem do estado nos moveu... O bem do estado seria, masporventura não peccamos nós contra os mandamentos da santa religião? Receio,meu padre, o castigo da Providencia!

—Que póde recear vossa altesa real, o mais fervoroso filho de Deus? replicao poderoso jesuita com extrema brandura.

—O castigo dos meus peccados, o castigo dos{68} meus peccados... Conheço que ordenei umassassinio. Não terei eu, como Caim, manchado as minhas mãos em sanguefratricida? Meu padre, a colera do Senhor cairá sobre a minha cabeça!

—A oração e os jejuns redimem todas as culpas...

Proferia Simão Rodrigues esta mistica sentença quando estalou na sala dojogo um grande alvoroto de voses e passos.

Sobresaltou-se o monarcha Dom João como se novamente lhe retumbasse nosouvidos o tremendo vaticinio do pagem:Eu venho, como Daniel,profetisar-vos a sorte de Balthasar.

O Conde da Castanheira dirigio-se com prestesa para a soleira da porta acolher noticia do alvoroto e, dando volta á chave, eis que frente a frente selhe depara a figura travessa do indio.

O badage, sem comprimentos nem venia, collocou-se em poucos passos defrontedo monarcha.

—Não se enfade vossa altesa serenissima, lhe disse respeitosamente. Énatural o ruge-ruge que vos chega aos ouvidos, senhor. Não provém de{69} rebellia nem de incendio. Toda acôrte se alvorota e desconsola porque o principe Dom João adoeceurepentinamente ao levantar-se da mesa.

—Asseveras que está doente meu filho, o meu querido filho Dom João? inquireel-rei ao mesmo tempo que se levanta da poltrona com visivel preoccupação.

—E doença de morte o accommetteu, prosegue o badage. Mas nada receie vossaaltesa serenissima, quea oração e os jejuns redimem todas as culpas.

—Pardés, assim ousaes chalrar com tal desassombro! prorompe o valerosoconde carregando o sobrolho.

—Fallo a verdade sem rebuço e mais direi ainda se el-rei me permitte aousia de fallar.

—Sei que és ave de mau agouro; mas conta-nos tudo, conta-nos tudo! volve omonarcha em profundo estado de abatimento moral.

—Pois sempre vos direi, meu rei e senhor, que propinaram veneno a vossofilho o principe Dom João!

Cahio o monarcha na poltrona como se padecera os effeitos fulminadores de umraio.{70}

Assim alguns momentos se demorou em uma especie de glacial insensibilidadesem que o jesuita e o conde se atrevessem a interromper o silencio. Por fimergueu-se tremulamente o monarcha e, não descobrindo já o destemido badage,perguntou com voz desfallecida:

—Que é feito do pagem?

Olharam os dous validos para todos os recantos do gabinete, mas já nãoavistaram ninguem.

Não quiz el-rei que d'elle fossem em procura e, dirigindo-se para os seusvalidos, lhes exprobra com friesa:

—Ahi tendes a vossa obra... Ahi tendes o castigo da Providencia! Quiz Deuspunir-me com a morte de meu filho, esse innocente filho que sobre todas ascoisas eu queria e presava. Mas ai de vós, senhores, ai de vós e de mim se ellemorre!

Os dous validos não aventuraram palavras de defesa ou de conforto com quesalvassem semelhante conjunctura e el-rei, deixando-os impassiveis no meio dogabinete, saío pela porta a informar-se das clamorosas scenas queoccorriam.{71}

—Trocaram-se os papeis provavelmente, resmoneou o Conde da Castanheira logoque se viu a sós com o jesuita.

—Por certo, concluiu o antigo companheiro de Francisco Xavier em voz maisbaixa ainda. Vou crendo que o veneno, em vez de o tragar o infante Dom Luiz,tocou desastradamente ao principe real. Feliz noivado, feliz noivado!

Por fortuna a causa efficiente do bulicio parecia limitar-se a um leveachaque estomacal de que o principe se queixara. Explicara o joven principe queuma vertigem lhe estonteara a cabeça e algumas nauseas lhe trouxeram incommodosao estomago, mas que já se sentia completamente alliviado e fóra de perigo.

De feito o sabio medico Francisco Lopes, tateando-lhe o pulso com o maiorcuidado, depressa declarou que a doença apresentava apenas o caracter de unspassageiros effeitos gastricos motivados naturalmente pelos molhos indigestosdas iguarias.

Foi o principe recolhido á cama com todos os conchegos e, como asseverava odiscipulo de Hypocrates que os symptomas do accidente{72} não offereciam gravidade, os bellos e illuminadossalões do paço continuaram até deshoras a servir de entretenimento aos nobresfidalgos e aos venerandos prelados.

No gabinete reentrou el-rei de espirito mais socegado e rosto mais ledo. Umacerta dose de satisfação parecia resumbrar dos seus olhos asues e a pallidezque pouco antes lhe amarellecera as faces fôra substituida por tintasrubicundas.

—Receei peor coisa, rumorejou elle esfregando as mãos.

Atraz de el-rei saira logo o Conde da Castanheira e foi por isso o jesuita aunica pessoa que se deixou ficar no gabinete.

Abrira sobre a mesa regia o seu predilecto livroDe imitationeChristi e, pelos signaes de concentração que lhe transpareciam no gesto,inculcava aproveitar-se do momento para erguer a Deus alguma fervorosa prece.

Não obstante disse pausadamente ao levantar-se da poltrona:

—Estava rogando aos céus que afugentasse desditas dos paços de vossaaltesa...{73}

—Obrigado, meu padre. Jamais olvidarei o interesse que tomaes por minhapessoa. Mas d'esta vez não succedeo perigo. Do sobresalto que soffremos foiculpado sómente aquelle estonteado badage.

—A não fallecerem justiças n'este reino, cumpre que seja punido para liçãode rebeldes e escarmento de atrevidos. De que pensar é vossa altesa?

—Elle não tardará no tronco, meu padre. Mas agora outra coisa pretendosaber em puridade: poderei eu remir ainda com obras e orações as minhas culpas?

—Está isento de culpas o coração de vossa altesa...

—Sei que sou um grande peccador!

—A alma de vossa altesa está limpa de mancha. É grande o amor queprofessaes pela fé catholica. Não esquece Deus os beneficios que tendesprestado pela igreja de Jesus Christo...

—Consolam-me essas palavras, meu padre. Em recompensa de tantas consolaçõeshaveis de lembrar-me o que vou prometter-vos: se não fôr de morte o mal de meufilho, contai para{74} as festasdo milagroso Santo Antão com uma custodia de ouro massiço e pedras preciosas...

—A graça de Deus seja comvosco...

—Prometto mais quinhentos crusados para compra de alfaias e paramentos doculto...

—Não deixarei jamais de rogar aos céus pelo bem do estado e pelasprosperidades de vossa altesa serenissima...

—Lançai-me agora a vossa benção, meu padre.

—Real senhor, eu vos abençôo em nome do Padre e do Filho e do EspiritoSanto!

Ajoelhou el-rei para receber a benção do jesuita e em tam humilde postura desantidade poder-se-hia conhecer que nunca um piedoso monarcha illustrara maiscom suas devoções os fastos da monarchia portuguesa.

[11] Frei Luiz de Sousa.Annaes. Parte II, livro II, cap. II.

{75}

VI

A CAÇADA

Alguns dias depois docasamento convidou el-rei toda a côrte para assistir a uma caçada.

Ajaesaram-se logo os mais vistosos palafrens e os mais rapidos ginetes.Desenas de creados afadigavam-se nos preparos dos nobres paços de Almeirim etudo ali se dispoz com o luxo de uma casa de fadas.

Chegou a côrte aos paços de Almeirim por uma tarde enxuta e serena, postoque bastante fria e nublosa a modo das tardes inglesas.

Era a vespera da campanha venatoria.

Na immediata madrugada foi servido um almoço{76} leve e em seguida ao almoço montaram a cavallodamas e fidalgos.

O monteiro-mór, a toque de uma ostentosa busina, repenicou o signal dapartida e então el-rei, cavalgando ao lado da princesa Dona Joanna e precedidopor uma centena de ricos fidalgos, adiantou-se com a rapidez de uma frecha emdirecção dos matagaes.

Abundavam as opulentas coutadas de Almeirim em caça grossa e miuda de toda aespecie. Veados e corças, lebres e coelhos e cabras monteses costumavam fugir esaltar aqui e além por entre as urzes e os giestaes, por debaixo dos ramos dossobros e das pernadas dos choupos. Porem a raça canina via-se decerto em penosamaré de infelicidade. Latiam, uivavam e remordiam-se os lebreus e os podengossem conseguirem alcançar uma lebre ou abocar um coelho.

Debalde se esperava nas clareiras a passagem de alguma peça grauda quandoalguns dos mais affoutos caçadores resolveram entrenhar-se no cerrado dafloresta. Ahi, sim, deixavam de ficar ociosas as balas e a polvora dasclavinas. Os tiros rapidamente se succederam aos tiros.{77}

Entretanto a maioria dos caçadores ainda esperava nas clareiras. Em posiçãode pontaria por veses ergueram elles ao hombro o cano polido e relusente dasespingardas, os latidos dos cães ouviram-se por veses a curta distancia e oscavallos, ao cheiro aspero da polvora, escarvavam impacientemente com as unhasferreas na grama do solo; mas ainda não passara ao alcance das balas uma sólebre ou um só veado.

Resolveram-se por isso desmontar e, aproveitando o exemplo dos primeiroscaçadores, lá se entrenharam egualmente por entre os verdes arbustos e osrobles gigantescos.

A rainha, a princesa Joanna, o cardeal Henrique e o badage foram as unicaspessoas que permaneceram no mesmo sitio. Mas tambem depressa lhes falleceu apaciencia de esperarem assim na sella dos cavallos. Apearam-se pouco a pouco ea passos vagarosos foram passeando ao longo de um renque de choupos.

—O tempo corre bem, disse a rainha dando principio á conversação. Temos umceu claro e magnifico; mas parece-me que não produz resultado a caçada.{78}

—Também me parece, accrescenta a princesa Dona Joanna.

—Juro pelos Vedas que ainda hoje teremos fartura de caça, replicou o pagem.

—Fallaste nos Vedas; mas que entendes tu por isso? inquiriu o sabio cardealcioso de desenvolver a sua vasta erudição.

—Eu vol-o digo se vos apraz, senhor.

—De bom grado escutarei. Dize lá: que são os Vedas?

—Os Vedas formam uma grossa collecção de slokes ou estrofes escrita emsanscrito sob a designação de Rig-Veda, Yadjur-Veda, Sama-Veda e Atharvana. Atodos os indios e povos do mundo, menos aos brahmanes, foi por Vichnu, o verbode Brahma, prohibida a leitura d'elles. Mais ninguem sabe o que dizem e contémesses livros santos. Os brahmanes guardam-nos tão cuidadosamente nos seuspagodes como os usurarios podem guardar um cofre de ouro. Conta-se que opoderoso Akbar, imperador mahometano, quiz um dia conhecer as differentesreligiões dos paizes que lhe eram tributarios e, como os brahmanes tenazmentese recusavam{79} a revelar-lhe osmysterios da sua crença, usou então de um subtil estratagema. Lembrou-se oimperador mahometano de enviar á santa cidade de Benares um indiosito chamadoFietzi e, fasendo-o passar por filho de um brahmane, foi o indio adoptado einstruido na linguagem e nos ritos sagrados. De tal modo seria satisfeita acuriosidade de Akbar, mas aconteceu que Fietzi se apaixonou por uma formosafilha do seu preceptor e, arrependido da fraude, foi lançar-se em lagrimas aospés d'elle e tudo ingenuamente lhe confessou. Imagina vossa altesa qual seria oprocedimento do brahmane? Arrancou immediatamente do punhal para matar osacrilego! Por fortuna o brahmane cedeu aos rogos da filha, dando-a por fim emcasamento ao indio com a solemne condição de nunca em sua vida trahir osVedas[12].

Ainda o pagem se dispunha a proseguir na anecdota de Fietzi quando o toquearrebatado e successivo das businas lhe fez dirigir a attenção para outroponto.{80}

—Caça, temos caça? exclama com alegria Catharina de Austria.

Inesperadamente por baixo das ramagens do arvoredo mais proximo appareceu eadiantou-se o corpo ameaçador de um lobo.

Mostrava-se nas proporções de um molosso reforçado das patas, com os olhoshorrorosamente injectados de sangue, com a cabeça de uma grossura enorme einfundindo pela arrogancia do olhar todo o pavor que podem incutir no espiritode um homem os animaes carnivoros.

Era bem curta a distancia entre elle e os desapercebidos personagens. Algunspassos mais e logo as garras da fera encontrariam para repasto o corpo delicadoe fragil da rainha. Mas o molosso, por uma impressão de medo ou qualquer motivode surpresa, sosteve-se ali.

Com as patas vigorosas escarvando o tojo e os urzes, por momentos estacoucomo se o prendesse pela cerviz um cadeado de ferro.

Esta demora de segundos foi, todavia, bastante longa para acodir o badage. Ocorajoso rapaz depressa se postou fronteiro ao lobo.

Ia agora travar-se uma luta hortenda. Iam{81} certamente repetir-se as barbaras scenas do circoromano: o combate do homem contra a fera.

De feito o molosso arremessou-se ao badage. Erguer as patas e aventurar umsalto enorme, tudo foi obra executada com a rapidez de uma frecha. Mas obadage, que se affisera ás caçadas dos tigres e dos javalis nas florestasgentilicas da India, esperou-o com a firmesa de um athleta. Quando o lobo searremessou ao pescoço do indio na intenção de lhe verter o sangue e lhedespedaçar as carnes com o vigor das garras, o indio de repente cravou-lhe nagarganta a lamina de uma comprida faca de mato.

A jorros espirrou o sangue da garganta da fera. Mas a fera não se estorceunem baqueou. Abrindo com maior furia as patas dianteiras, apertou os hombros doindio e pretendeu esmagal-o com um amplexo terrivel.

O indio não conseguio resistir áquelles musculos de bronze. Foi grande aconvulsão que padeceu. Perdendo as forças e o equilibrio, cambaleou,estorçeu-se e cahio.

Na queda acompanharam-no as garras do lobo. Estava decidido que, emholocausto da sua{82} dedicação, opobre mancebo perderia as forças e a existencia. Quem lhe podera acudir nosapertos e nos trances de tam medonha conjunctura?

Talvez os companheiros. Porém o susto levara o augusto cardeal a esconder-sena toca de um carvalho e as duas delicadas senhoras seriam demasiadamentefranzinas de pulso para tam heroica defesa.

O badage, comtudo, não havia abandonado a coragem. Conservava na dextra acomprida faca e lembrou-se de ainda faser uso d'ella. Por um momento affrouxouo lobo a compressão das unhas e esse momento foi o melhor auxilio que o badagepodia receber.

Não é mais rapido um relampago: erguer o braço e ferir novamente a fera, eisos prodigiosos movimentos que elle fez.

O aço da faca despedaçou agora as guelas do lobo e logo em maior abundanciase inundaram as algas e folhas do chão com um lago de sangue.

A força da fera cedeu por fim ao esforço do homem. O lobo cahiu, estrabuxoue contorceu-se. Depois atroou as selvas com dous uivos medonhos e perdeu osúltimos alentos de vida.{83}

Quasi ao mesmo tempo resoa nos espaços a buzina do monteiro-mór e é entãoque no estadio da contenda se apresentam de facas e carabinas os arredioscaçadores.

—Que novidades houve? inquire o monarcha ao passo que descança o cano daespingarda ao tronco de um carvalho.

—Pardés que não nos faltou susto! apostrofou o timido cardeal ao mesmotempo que se aventurava a sair da toca d'essa mesma arvore.

El-rei não pôde conter a explosão de uma risada e todos, sem distincção degerarchias, expansivamente lhe seguiram o exemplo.

—É bom signal, affoutou-se a diser o pagem, que sua altesa esteja deagradavel humor.

—Signal é de boa caçada. Não achas, pagem?

—Assim me parece, meu senhor.

—Mas que tens ahi? Que animal é esse?

—Meu senhor, são os despojos da caçada.

Em seguida contou a princesa Dona Joanna as peripecias do fatalacontecimento e logo de todos fôra o pagem felicitado por sua valentia ededicação.{84}

[12] Cesar Cantu.Hist. universal. Edição francesa, tomo 1, pag. 305.

{85}

VII

A LUTA

A rainha, forcejando poresquecer as extraordinarias impressões da caçada, recreava-se momentos depoisna sua recamara dos paços de Almeirim com a leitura das trovas populares docelebre Juan de Encina.

A tristesa empanava-lhe levemente o brilho dos olhos feiticeiros e a cadaminuto lhe assaltava o espirito de ideias desconsoladoras. Parecia inquieta doanimo como se adivinhasse alguma funesta novidade.

Entrou o pagem n'esta occasião e pé ante pé{86} dirigindo-se para o lado esquerdo da rainha,fitou-a com olhares de poetica melancolia.

—Estimo ver-te, pagem. Tenho passado aborrecida e será muito do meu gostoouvir contar alguma façanha alegre. Sempre me dirás o que tens feito...

—Nem tudo se diz, senhora.

—Sempre te conheci mysterioso. Mas agora, meu pagem, lembra-te de que estásao pé de quem deveras te estima...

—Sei reconhecer a vossa amisade, senhora. O pobre pagem deixar-se-hiaestrangular pelas garras de um tigre só para vos compraser. Não faseis ideia daminha dedicação, não podeis medir a grandesa do meu amor!

A rainha estremeceu levemente como se a ferisse a ponta de um alfinete.

—Por ventura me tens amor? assim o interrogou com um sorriso jovial.

—Juro-o pelos Vedas.

—Mas não reparas nos meus annos? Não vês claramente que já sou velha!

—Uma rainha nunca envelhece. É uma eterna primavera de florescencia e deperfumes.{87}

—Sendo verdade o que dises, reconheço que sou uma excepção.

—Senhora, esplendem em vós todas as graças e possuis todos os encantos!

—Ousado mancebo, não saberei regeitar as tuas galanterias; mas emfim nãosabes que uma rainha não deve amar ninguem? Contenta-te com a minha estima.Dou-te a minha amisade e isso é bastante.

—Sabei que para vos amar, confidenciou o badage com a selvagem entoação doseu paiz natal, pouco me foi preciso. Senhora, bastou o vosso olhar... Mas paraodiar-vos ainda será preciso menos. Escolhei...

—Escolhe tu, pagem.

—Escolho o vosso amor!

—Comprehendo; mas que provas queres tu que eu te dê, que exigencias poracaso imaginas impor-me?

—Concedei-me tudo quanto vos peça.

—Com algumas condições...

—Sou orgulhoso. Não admitto condições. Disei se sim ou não.{88}

—Pois bem, prometto.

O pagem, com o enternecimento de Othello ouvindo a Desdemona a primeirarevelação de affecto, estremeceu fibra a fibra de alegria.

—Obrigado, lhe agradece com enthusiasmo. Ides faser a felicidade do pobrepagem. Mil veses obrigado, senhora!

—Mas então que pretendes de mim? volveu-lhe a rainha com uma espontaneaexpressão de carinho.

—Quasi nada e todavia pretendo tudo.

—Dize...

—Quem sabe se vos offendo! Talvez me não atreva...

—Fases mal. Eu gosto das pessoas temerarias...

—Deixai-me, senhora, dar-vos na face... na, face de rosa... um beijo... umbeijo unico!

—Mancebo, retorquiu Dona Catharina com accento grave e de rosto em plenacalma, saberás que a palavra de uma rainha não falta ao que promette. Aqui tensa minha face! O pagem com a rapidez de uma frecha aproximou-lhe{89} do rosto os labios cubiçosos e aliimprimiu com soffreguidão um beijo escandecente como as lavas do Etna.

Immediatamente, como possuindo-se de vergonha e respeito, fugiu com prestesada recamara.

—É certo que tambem lhe consagro eu alguma coisa mais do que amisade, ficoua rainha pensando agora. Grande coração aquelle! É capaz de todos os heroismose todavia diante de mim parece uma criança cheia de timidez. Parece decerto umacriança. Mas quem o não é em taes circumstancias de enleio e talvez dedemencia? Amor, amor! és o mobil de todas as acções esquisitas, porque és ogermen de todos os pensamentos humanos. Jamais se realisam os teus desejos etodavia ninguem deixa de sujeitar-se de boa vontade ao teu jugo. Queres e nãoqueres, acaricias e odeias, confias e desconfias de tudo ao mesmo tempo. Foisempre voluvel o teu caracter como voluveis costumam ser as ondas do mar. És agota de agua que fertilisa a aridez da vida, és ainda uma redoma de perfumes eum sacrario de virtudes; mas{90}tambem és um elemento de odios e um antro de vicios. Socrates não saberiadefinir as tuas virtudes; Hercules não poderia medir-se com a tua força. Homense mulheres egualmente abrigam e sentem nas fibras dos seios as tuas chammas eos teus effeitos; porém quem logrou ainda sondar os teus arcanos, quemporventura conseguiu explicar os teus mysterios?

N'este comenos transpunha o pagem uma sala immediata á luxuosa recamara.Depois, abrindo uma porta gigantesca, predispunha-se a entrar no vasto corredordo palacio quando quatro alabardeiros do serviço particular de el-rei lheimpedem a passagem.

—Acompanha-nos, meu caro.

A esta desceremoniosa intimação de um dos quatro soldados o badage retorquiuorgulhosamente:

—Á ordem de quem?

—Manda el-rei nosso amo e senhor. Obedece!

—Preciso primeiramente conhecer-vos. Em guarda, belleguins!

O pagem desnudou a fiel espada com a ligeiresa{91} de quem d'ella se sabia servir a tempo e horas e,recuando tres passos, aguarda com animo frio a aggressão dos alabardeiros.

—Mãos á obra! ordena um d'elles. Faça-se por mal o que se não póde faserpor bem. Pagarás cara a temeridade, meu criancelho!

Á luz baça do corredor montantes e alabardas em poucos momentos sedisposeram a começar o seu officio.

Era vasto o corredor; mas todos conservavam as mesmas posições. O badage,mestre consummado no jogo da espada, não deixava adiantar uma polegada aosquatro contendores. Ninguem, resuscitando o pomposo estylo do padre Vieira,soube ainda com mais garbo e valentia brandir a lança, erguer a espada efulminar o montante. Crusavam-se as armas, acachoavam diabolicas imprecações,empregavam-se titanicos esforços para se decidir da contenda; mas o badageparecia sustentar nas mãos de bronze a clava de Hercules.

—Com mil demos! rugiu um dos alabardeiros ao cambalear no soalho com odesiquilibrio de um ebrio.{92}

—Sinto-me ferido! regougou o segundo camarada ao largar a alabarda comdesanimo de uma vez para sempre.

Eram agora sómente dous os inimigos do badage. Mas um d'elles principalmentenão affrouxava os golpes. Era de todos o mais alentado e o mais temerario.

—Aposto que me não conheceste ainda, meu criançola!

O badage retorquiu-lhe:

—Parece-me que já nos encontramos, sicario.

—Por signal que te acompanhava um alto personagem. Bella noite aquella!

—Covarde! Eras tu quem de emboscada queria assassinar o infante Dom Luiz?

—Tens memoria, meu fidalgote. Nem mais nem menos... Olha bem para mim: souo teu conhecido Jacobo.

O badage retrocedeu meio passo e por dous momentos apresentou a descoberto aarca do peito. Aproveitou este arriscado estratagema para triunfar do seuterrivel adversario, porque Jacobo, julgando certeiro e infallivel o golpe,resolveu apenas valer-se da vantagem de ferir o{93} pagem. Todavia o denodado mancebo, por meio deuma rapida manobra, desviou o corpo e arremessa a ponta da espada em direiturado contendor. Em um abrir e fechar de olhos rasga-lhe a carotida ecompletamente lhe atravessa o pescoço de lado a lado!

Ouve-se então um clamor horrendo. Á testa de uma dusia de archeiros efamiliares do Santo Officio com ascumas e espadas acode tumultuariamente ojesuita Simão Rodrigues, o qual, primeiro que o pagem aproveitasse ensejo deevasão, com arrogancia o intima a render-se por ordem de el-rei.{94}

{95}

VIII

OS ESTAUS

Ao indio amarraram ospulsos com rijas cordas e violentamente o conduziram dos paços de Almeirim áresidencia inquisitorial do Rocio.

Aqui foi, sempre debaixo de uma orchestra de apupos, introduzido na abobadasubterranea que servia de encerro, onde lhe vestiram uma casula ou escapulariode panno amarello com cruses de Santo André pintadas de vermelho assim pordiante como por detraz.

Era o carcere um espaçoso quadrilongo lageado de tijolos, sustentado porvastas arcadas e com paredes lavradas de cantaria. A humidade,{96} o frio e todas as inclemencias dainvernosa estação ali contrariavam sobremodo todos os elementos de hygiene.Ausencia radical de mobilia, de conforto e ambiente puro. Á propria luz do dia,que é propriedade que Deus reparte sem restricção por todos os seres racionaesou irracionaes, era quasi totalmente prohibido o accesso. Para bem se descreverprecisava-se do estylo de Victor Hugo: era, em frase do grandioso poeta, moradaonde não havia ar no verão, onde não havia fogo no inverno, onde não havia pãonem de inverno nem de verão. Morada lugubre do mysterio e do crime, áquellaespecie de catacumbas romanas de proposito se imprimira o caracter de infecta elobrega sepultura a que faltava apenas a terrivel inscripção do inferno doDante:lasciate ogni speranza!

Tres dias successivos viveu o pagem a codeas de pão e a goles de agua semque lhe indicassem a sorte de supplicios que lhe cumpria padecer. Unicamentecommunicava com o alcaide ou carcereiro, cerbéro de aspecto extremamente alvare discreto de lingua como um rochedo. Todavia o pagem não se incommodou como{97} seu estranho encerro.Naturesa moldada a todos os vaivens da fortuna, a transição da ventura para oinfortunio era quasi para elle um phenomeno insensivel. Sempre se dispunha comanimo inquebrantavel a experimentar quaesquer acontecimentos por maisextraordinarios que fossem.

—Na verdade, monologava elle em maré de maior expansão, tem suas rasões oprocedimento de Simão Rodrigues. Confesso que a sua senhoria não era affectonem adstricto de maneira que podesse facilmente dispor dos meus serviços e,juro-o pelos Vedas, não se enganou de todo o ladino jesuita. Mas eu promettoainda, meu padre, prometto ainda pagar-te juros e capital na mesma moeda.Pardés que havemos de saldar contas!

Só ao entardecer do quarto dia é que foi o pagem visitado. O proprio SimãoRodrigues lhe appareceu disfarçado nos trajos de familiar do santo officio.

—Não ignoras, lhe disse depois de algumas palavras de comprimento, nãoignoras, meu filho, que peccados te condusiram a estes lugares. Escuso deavisar-te que, por teu mal, és accusado,{98} na qualidade de christão novo, de rebelde áspraticas da religião e de Deus...

—Quando se não póde esmagar a vibora, respondeu-lhe corajosamente o pagem,foge-se pelo menos da sua presença. Eu devera fugir para longe, emboraprocurasse nas brenhas dos sertões do Mandovy a companhia das onças e dostigres. Mas sem cautela me deixei quedar n'este paiz de fanatismo e de crimes.Por isso me não reconheço justiça de queixar-me. Aqui me tens agora, bemdisposto de alma e corpo a escutar as tuas fallas e á espera dos teus castigos.Adivinho o que me espera: antes do baraço da forca o soffrimento da masmorra,ou talvez, para mais demora das derradeiras agonias, a tortura da fogueira...

—Estranha linguagem é essa, volveu-lhe com brandura o jesuita. De certo,pobre mancebo, o teu cerebro não regula assisadamente. A falta de crenças e defé estiolara o vigor do teu espirito. Quem te manda ser tam orgulhoso?Lembra-te que é virtude evangelica a humildade. Os humildes serão exaltados eos orgulhosos abatidos conforme a palavra infallivel do Evangelho.{99}

—Meu padre, embora me chames hereje ou christão novo, aprecio as bellesas evirtudes da religião catholica. Por ella abandonei as crenças de meus paes e astradições seculares da minha raça. Voluntariamente recebi o baptismo das mãosde Antonio Criminal e desde então para sempre se inflammou no meu espirito oamor acrisolado do Deus dos christãos. De bom grado lidarei por toda a vida emdefensão da cruz e da fé. Porém não quero, meu padre, seguir os teus preceitose abraçar as tuas doutrinas, Não quero que me obrigues a pensar a teu sabor,repugnam-me todas as peias impostas á liberdade de consciencia, abomino emfim ojugo atroz a que a vossa oligarchia clerical reduz o espirito humano. De outromodo bem diverso comprehendo os deveres do homem. Não basta a Deus que o amemossobre todas as coisas? Não basta ao rei que se seja bom cidadão? Obedecer ásleis, dar exemplos de bons costumes, estimar a familia e defender a patria: eistudo!

—Fallas bem, mas não convences. Amor de Deus e obediencia ao rei nãobastam.

—Dize-me então quaes são as leis que governam{100} o mundo. Explica-me todos os mysterios do teugoverno e da ordem inquisitorial.

—Em duas palavras se resumem, criança:mandar e obedecer.

—Mas a quem se obedece, meu padre? A Deus, ou aos seus missionarios naterra? ao nosso rei, ou aos aulicos miseraveis que, usurpando-lhe o sceptro,abusam da indole e fraquesa do rei?

—Vou mostrar-te a quem é.

A esta laconica e mysteriosa ameaça chamou o jesuita pelo silenciosocarcereiro, a quem ordenou, ainda com maior laconismo, estatelasse o pagem nosegredo.

O carcereiro puchou por uma das argolas de ferro pregadas na parede e,mediante um alentado esforço, depressa fez sobresair uma abertura da capacidadede tres palmos de largo e uns sete palmos de alto.

Guardando sempre o mesmo silencio, pegou do corpo do badage como se lidassecom uma pluma de ave e, começando de lhe introduzir os pés e as pernas,fechou-o com celeridade na mysteriosa crypta.{101}

A nova prisão era uma especie de armario de granito cuja parte superior, ásemelhança de um enorme funil, apresentava geometricamente o desenho de umafigura conica.

Sendo armario como parecia, abundava em estantes ou prateleiras, masprateleiras de gosto e feitio a darem ideia aproximada das divisões funerariasde que se formam as capellas dos nossos cemiterios.

—Sepultam-me vivo estes sacerdotes do Senhor, pensou o pagem. Está decididoque de aqui só se vae para o ceu ou para o inferno.

Mas o pagem, mal se lhe proporcionava ensejo de criar este lugubrepensamento, viu escancarar-se de novo a tampa do seu sepulchro.

—Podes sair, ordena o jesuita.

—Bem ruim gracejo, meu padre. Julguei asphixiar como se fosse um perro. Nemluz nem ar e sobretudo um cheiro, a vermes podres que deveras me incommodava onariz.

—Pois arrepende-te dos teus erros. Os bens da terra não os merecem ospeccadores que a todos os momentos offendem a vontade de Deus. Reconhecendo asleis e o dominio da nossa ordem,{102} terás para sempre o socego do teu corpo e aventura do teu espirito. Os filhos de Jesus Christo, a despeito de parecerem osultimos pela modestia do habito, são hoje por todas as partes do mundo osprimeiros na força e no poderio. Ai do insensato que julga encravar com um dedoa roda dos seus triunfos! Por isso, meu filho, expulsa quanto antes do teu seioas glorias vans do mundo secular. Em vez do gibão de velludo ou do cossolete deaço polido, enverga o saio de estamenha e abraça o lenho sagrado de JesusChristo.

O jesuita, deixando novamente a sós o badage, retirou-se a passo lento.

Vendo-se agora o badage n'quella solidão tremenda, por mais uma vezrelanceou as vistas em redor do carcere.

A argola puchada pelo carcereiro inflammou-lhe a imaginação e, querendodescobrir o segredo de outras argolas identicas, adiantou-se em direitura daparede.

Á imitação do homunculo, puchou com força. Era uma argola de ferro carcomidapela ferrugem de alguns annos. Ella parecia ceder ao primeiro{103} empuxão; mas ficou segura e fixacomo se a pretendesse abalar o pulso de uma criança. Novo empuxão com maiorviolencia e ainda, todavia, se não obteve mais feliz resultado.

—A questão é de geito, considerou o pagem.

Com effeito, sem exigir metade do esforço a argola cedeu á sexta ou setimatentativa.

No bojo da parede, ainda que de fórma differente do armario de granito ondefôra introduzido o badage, manifestou-se uma crypta de genero egualmentelugubre. Formavam-na quatro paredes escuras de dez ou doze palmos de largo edeseseis ou desoito palmos de altura. Nada inculcaria de notavel a não ser umaespecie de feretro levantado no centro do pavimento. O feretro, que erafabricado de pedra tosca em harmonia com todo o escondrijo, servia de asylo aum esqueleto de mulher. Os braços e tronco, as pernas e a caveira ali se viamcom a pelle arroxeada e os ossos amarellecidos pelos effeitos da podridão.

O badage, pensando na sorte das malaventuradas creaturas, sentiu ainda maisactiva a prurigem da curiosidade. Não cuidando de fechar{104} a porta do escondrijo, lembra-se de percorrer atrechos a parede. Lançou as mãos a segunda argola e eis que lhe apparece novoescondedouro. Não tem sarcophagos, nem feretros, nem prateleiras, nem divisões.Menos alto do que largo, é simplesmente uma grande caixa de pedra. No pavimentoamontoam-se braços encrusados, pernas desconjuntadas e caveiras ás duzias. Erauma pilha putrefacta e immunda de caveiras e esqueletos humanos: um repulsivo efetido ossario emfim.

Nuvens de fumo espesso e acre vieram entretanto invadir pouco a pouco oespaço do carcere. Cada vez se pronuncia mais um cheiro violento de substanciasasphixiadoras. Ficam por todo o espaço predominando esses dous inimigos dospulmões: o acido carbonico e o acido sulphydrico.

Esta horrivel atmosphera devia naturalmente influir nos sentidos e naorganisação do badage. Influiu. A cabeça entonteceu-lhe e, cambaleando como umebrio, cahiu na distancia de algumas polegadas das caveiras e esqueletos doossario!

{105}

IX

O CARCEREIRO

O badageirremediavelmente morreria asphixiado pela acção dos vapores deleterios se ocarcereiro, cuidando de abrir uma larga janella situada ao fundo do calabouço,não permittisse rapido ingresso a uma camada violenta de ar.

Abertas as portas da janella, os fluidos atmosphericos vieram naturalmentesubstituir os vapores do enxofre e assim em poucos momentos se restabeleceu nasgemonias inquisitoriaes um ambiente mais ou menos salutar.

O badage acreditou na sua ressurreição.{106}

—Obrigado, obrigado. Antes estourar de uma cutilada de mouro de Asamor doque morrer abafado como um perro. Com mil brecas!

—Poupe os seus agradecimentos, resmoneou o carcereiro. Fiz apenas a minhaobrigação. Mandaram-me que o não deixasse morrer e eu obstei a que morresse.Mandassem-me o contrario, eu o contrario teria feito sem tugir nem mugir evossa mercê, fóra de duvida, morreria sem remissão nem aggravo.

—Comprehendo, observa-lhe o badage, que influa mais no teu espirito areligião do dever do que a da misericordia. Mas tambem é certo que debaixod'esse pello de perro austero e selvagem tens ou deves ter uma alma. Porventura deixarias morrer, á guisa de fera estorcida na jaula, um pobre homemnascido e criado á semelhança de Deus?

—Desempenho á risca as ordens que me dão. Para isso me sustentam e pagam.

—Então se te dissessem—estrangula tua irman e assassina tua mãe!tu, em obediencia á malvadez do amo, julgarias cumprir com o teu dever?{107}

—Por Deus que ninguem me obrigava a tirar a vida a meus irmãos ou a meuspaes!

—Mas supponhamos que assim acontecia...

O carcereiro experimentou uma ligeira contracção de nervos, estendeu comgestos de ameaça terrivel os braços musculosos e regougou em bruscos termoscomo se disposesse da voz do trovão:

—Eu, escravo, em caso tal arrancaria com estas garras de hyena a lingua domeu amo!

—Não te fallece por tanto uma certa intuição do bem e do mal. Por instinctoou rasão natural, sempre dispões de uma certa faculdade pensante que te diz nãoser infinita a orbita dos teus deveres servis. Reconheces em summa que ouniverso é maior...

—Não comprehendo bem. Um desastrado carcereiro não póde saber de letras nemsabe o que são ideias. É um cão de fila a quem disseram:guarda esserebanho e no fim de cada mez receberás as gorduras de uns tantos ossos. Ocão desempenha cada dia o seu serviço de guardar e jámais se importa que orebanho seja de ovelhas limpas e alfeiras ou bravias e tinhosas. Obedece á vozde quem manda.{108}

—Mas porque obedeces tu?

—Porque me pagam.

—Logo, obedeces a quem te paga...

—Está visto.

—Logo, o serviço está em relação com a paga: maior paga, melhor serviço.

—Naturalmente.

—Logo se eu te pagar maior quantia do que a que tu percebes comocarcereiro, depressa abandonarás a profissão de carcereiro...

—Nem mais nem menos, meu fidalgo!

—Dize-me então: quanto ganhas n'esta enxovia?

—Conta redonda: 150 crusados por anno.

—150 crusados por anno correspondem a pouco mais de 12 crusados por mez e amenos de 200 reis por dia. Julgas que não é pouco?

—Deveras é muito pouco para quem se vê obrigado a sustentar mulher efilhos...

—Ah, tambem tens familia?

—Quem não tem familia, meu fidalgo?

—De certo não sabes quem eu sou. Eu vivo sem paes, sem irmãos e semparentes. Disem que sou um christão novo! Sou talvez um apostata,{109} um reprobo, um paria! Vivi porlongo tempo na innocencia e no socego dos sertões. Meus paes e meus parentesnutriam-se dos cachos das palmeiras, com todo o fervor das suas almas fasiam assuas orações no templo de Trichandur e as tempestades da desgraça jámaisvarreram tanto o repouso do seu corpo como as crenças do seu espirito. Mas umdia[13] nos mastareus deenormes galeões appareceu arvorada a bandeira lusitana n'esse grandioso imperioonde[14]as plantas sãofructos, as aguas perolas e as pedras preciosas. Esta bandeira significavao symbolo da fé; era o labaro da paz e da fraternidade. Por isso de todas ascidades e aldeias se receberam os companheiros de Vasco da Gama como irmãos eamigos. Estabeleceu-se a troca dos generos, entabolaram-se todas as transacçõescommerciaes, vendiam-se pelos brocados de seda e pelos tecidos de lan ou dealgodão o coral e o marfim, as perolas e o ouro, a canella e toda a casta deespeciarias. Mas, ah, depressa a cobiça das riquesas transtornou a paz e aventura das Indias! Em vez da troca e dos contractos{110} mercantis, os portugueses foram preferindo asdadivas e a vassalagem por não desmentirem que chegavamtam mortos de fomecomo vivos de cobiça[15]. Accendeu-se então por toda a parte o fachoda guerra e da discordia. Familias inteiras perderam a fasenda e a liberdade,povos inteiros perderam a familia e a existencia. Não te farei a resenha dosroubos e das violencias, dos combates e dos incendios. Basta saberes que foiassim que eu fiquei só no mundo: sem patria, sem dinheiro e sem amparo...

—Uum, uum! Não sei se acredite o que me diz, atalhou o carcereiro. Nãoacredito de certo. Vossa mercê ou vossa senhoria é mais do que inculca ouinculca mais do que é.

—Então que favoravel ou ruim ideia fases de mim?

—Imagino que seja algum fidalgo poderoso.

—Não sou fidalgo.

—Pelo menos algum conde...

—Enganas-te.

—Meu senhor, ninguem, sem que seja de altas{111} hierarchias e de singular poderio, gosa dahonra de entrar aqui. Para simples peões não foram feitas as seguras grades eas grossas paredes que sustentam estas abobadas.

—Tens rasão. Nada sou do que dises e sou todavia muito mais que tudo isso.

—Algum marquez?

—Mais!

—Algum duque?... O snr. duque de Lencastre, o snr. duque de Bragança, osnr. duque de Viseu?...

—Mais, muito mais!

—Acima de um duque nada conheço. São os maiores fidalgos do reino. Ninguemacima d'elles a não ser sua altesa serenissima o senhor Dom João III.

—Pois recorda-te bem. Ha ainda quem valha mais de que el-rei!

—Mais do que el-rei?

—Muito mais, muito mais!

—Aposto, aposto! Em nossos reinos juro e aposto que não ha quem valha maisdo que el-rei nosso amo e senhor!

—Vaes sabel-o já...{112}

—Pois quem é, quem é?

—Alguem é.

—Mas quem?

—Simão Rodrigues!

O carcereiro poz-se a matutar por alguns momentos. Depois aventurou douspassos ao longo do calabouço, estalejou emfim com a mão direita uma palmada natesta e disse pausadamente:

—Na verdade o jesuita é poderoso. Vale mais em forças e poderio do que umduque...

—Mais que o monarcha. O monarcha tem a corôa na cabeça e o sceptro nadextra; mas isso tudo não passa das vans insignias da realesa. Vale menos omanto de terciopello do que o saio de estamenha. Perante a vontadeinquebrantavel de Simão Rodrigues tudo averga e affrouxa como o vime, se quebrae desfaz como o vidro. Elle governa o estado em nome da igreja; em nome dareligião escravisa a nobresa e o povo, essa cohorte de hebreus sempreamaldiçoada pela igreja. Tudo lhe obedece piamente e é el-rei o primeiroescravo que lhe obedece...{113}

—Assim é, assim é.

—Todavia Simão Rodrigues teme e reconhece a força e as traças de alguem...

—O papa?

—Não.

—O snr. Conde da Castanheira, que vale tanto como o papa?

—Tambem não.

—Pois quem é?

—Eu!

—Vossa senhoria, meu fidalgo, sempre me parecera muito rico e muitopoderoso...

—Em verdade sou e não sou. Mas nada mais te digo. Se queres saber quem sou,experimenta, experimenta...

—Que devo faser então?

—Deves desaferrolhar-me a porta do carcere...

—Perco o meu emprego.

—Quanto vale o teu emprego?

—Vale mais de 100 escudos.

—Terás 500 escudos, terás 1:000 escudos. Queres vender a minha liberdadepor 1:000 escudos em boas moedas de ouro?{114}

O carcereiro esgaseou attonitamente os olhos e respondeu com firmesa:

—Por 1:000 escudos vende-se a alma ao diabo. Quero, meu fidalgo!

—Fases bem, fases bem. Estas abobadas cheiram a vermes podres e a cadaveresqueimados!

[13] Vasco da Gamaaportou ao reino de Calicut em 20 de maio de 1499.

[14] Conde da Ericeira.Portug. restaurado.

[15] D. João de Castro.Carta da India a D. João III.

{115}

X

VANTAGEM DE DOUS CONTRA UM

Preparava-se o badagepara se escapulir do carcere quando o homunculo, em attitude de lhe embargar apassagem, desfechou das suas guelas herculeas uma estridente cascalhada deriso.

—Meu fidalgo, regougou elle, julga que eu seja de animo tam simplorio quelhe favoreça a escapula sem primeiro arrecadar no bolso os mil ducadospromettidos por vossa senhoria? Pardés que me rio com vontade, meu fidalgo!

—Fallas com prudencia e siso. Quem deve, paga. Eu, em troca da minhaliberdade, devo dar-te 1:000 escudos. Devo-te portanto 1:000{116} escudos em ouro ou prata. Mas esse dinheiro,embora seja em perolas de Ceylão ou em ouro de Ophir, difficilmente se arrecadano bolso do gibão.

—Pois, meu fidalgo, teremos o contracto desmanchado... Demais, quasi estourepeso do que fiz. As más acções produsem o effeito da ferrugem nos metaes:fasem mossa na consciencia. Porventura merecem os meus amos que os atraiçoe?Pagam pouco, é verdade. De que valem 150 crusados? De que valem elles? Umaninharia que não chega para a cova de um dente e não é preciso que o dente sejade elefante. Mas emfim sempre me pagam...

—Percebo, percebo. Sabes que mais val um passaro na mão do que dous a voar.Dá cá, toma lá. Não é isso? Pois eu vou satisfaser os teus desejos.

O badage pediu um tinteiro e sobre meia folha de papel escreveu com letramaiscula o seguinte bilhete:

«Dona Catharina de Austria, rainha de Portugal, entregará ao portador aquantia de mil ducados em ouro ou prata. Do cárcere da inquisição{117} do Rocio, aos 29 de desembro de1553. Pedro, o pagem.»

—Toma, disse depois ao homunculo. Este bilhete vale bem o teu dinheiro.Ficas satisfeito?

O carcereiro empolgou a meia folha de papel e com soffreguidão o perpassaduas veses em frente dos olhos. Quando lhe cresceu tempo de o ler, curvou acabeça em testemunho de respeito e contrictamente resmoneou:

—Meu fidalgo, bem adivinhava eu a estirpe de vossa senhoria! Tem relaçõescom sua altesa serenissima Dona Catharina de Austria, um coração de bondadecomo não ha outro mais protector dos pobres e dos infelises. Que immensagloria, que felicidade a minha em topar com tam boa e poderosa gente! Beijo-lheas mãos, meu rico infantão. Agora sim. Para tudo quanto precise tem ás suasdisposições o servo mais humilde e mais dedicado. Prompto, meu amo! Logo ouámanhan, agora e já, sempre e sempre me disponho a servil-o. Palavra de homemhonrado: quer partir já? quer que se bote o fogo a esta casa maldita? quer quese espatife{118} com um cutelo acabeça do snr. Simão Rodrigues? Eu obedeço como deve sempre obedecer o servo, oescravo. Ordene, meu fidalgo!

—Muitas veses nos arrependemos da maxima confiança. Sou de aviso queprimeiramente recebas o premio dos teus serviços. Vai e volta depois.Porventura não receias que te engane?

—Meu amo, replicou o alcaide ao mesmo tempo que rasgava com nobredesinteresse o seu papel de 1:000 escudos, de hoje por diante ficarei sempre ásordens de vossa senhoria illustrissima. Ja pouco me importam os meus ducados.Podemos partir quando queira, meu nobre senhor...

Ouviu-se então uma voz dissonora como a furia do vendaval.

—Não partireis! trovejou Simão Rodrigues ao assomar com passo grave noportal do sombrio ergastulo.

Infelizmente para elle, o jesuita commettera um acto de rara imprudencia.Vinha só. Affeito á cega obediencia de um numeroso exercito de clerigos ealabardeiros, confiadamente se apresentou{119} á porta do carcere sem soldados nem sequito.

O badage e o carcereiro ficaram com o espirito indeciso. Ambos conheciam atéque ponto alcançavam a sagacidade e jurisdicção do jesuita. Bastar-lhe-hia umgesto ou uma palavra para todos á porfia executarem immediatamente as suasordens. Por isso não deixava de ser melindrosa a situação. Mas depressa obadage e o carcereiro comprehenderam a vantagem que levavam ao jesuita: doiscontra um é sempre uma vantagem.

Simão Rodrigues entrou no carcere e o homunculo adiantou-se para a umbreirada porta. A porta era solida e perra; mas o pulso vigoroso do homunculo fel-agirar nos gonzos sem difficuldade e logo em um abrir e fechar de olhos lhecorreu com a chave a lingueta da fechadura. Depois, tomando a prevenção deesconder a chave no bolso das calças, foi augmentar o grupo do jesuita e dobadage.

O jesuita fallava assim:

—Pagem, quiz ganhar de el-rei o vosso perdão. Mas el-rei nosso amo não quizperdoar os{120} vossos crimes evós, convicto do crime de heresia, no primeiro domingo do Advento padecereiscomo christão novo o supplicio da fogueira. Encommendai a vossa alma a Deus...

O badage, desfechando uma risada, em bom genio redarguiu:

—Não careço do teu perdão, meu padre. Agora na minha presença deixarás deser o provincial Simão Rodrigues: és simplesmente um reptil, um covarde, ummalvado... Queres ainda lutar comigo? Braço a braço, esmago-te!

—Assim, assim, meu valente! Esmague-me essa vibora! jarrete-me esseverdugo!

Apenas o carcereiro desprendera das fauces tam rudes imprecações, o jesuitaimpallideceu como um cadaver. Comprehendeu o conluio; adivinhou que se trocaramos papeis. Em vez de mandar e ser obedecido, restava a Simão Rodrigues o papelde obedecer como escravo. Lance desesperado para o seu orgulho!

—Estranho o vosso procedimento, desabafou emfim. Insensatos que sois! Porventura me faltareis á obediencia? Por acaso attentareis contra a minha vida? Aminha vida pertence á{121} igrejae a Deus. Cautela com a maldição de Deus!

De nada, porém, valeram os argumentos. Carcereiro e encarcerado abafaram comum lenço a boca de Simão Rodrigues, por detraz das costas amarraram-lhe osbraços com um pedaço do sambenito despido pelo badage e, como se faz a uma rezno matadouro, jungiram-no pela gorja a uma das argolas do carcere.

—Vamos deixar-te agora, proferiu o badage. Ficarás ahi, filho deTorquemada, entregue ao arrependimento e ao remorso dos teus crimes. Não teveforça nem coragem el-rei Dom João III para reprimir as tuas ambições e castigaros teus delictos. Pois desempenho eu os deveres do rei! Para bem do povo edesaggravo da humanidade faz-se mister que desappareças da face do mundo e quetambem desappareça comtigo essa ordem de viboras e de tigres que para desditanossa introdusiste de Roma nos reinos de Portugal. Adivinhas o que te vaisucceder? Adivinhas por acaso? Desapparecerás para sempre, Simão Rodrigues.Antes de meia{122} hora será oteu corpo um esqueleto e esse esqueleto se redusirá a um punhado de cinzas!

Em seguida desprendeu dos pilares da abobada uma lanterna e com a chamma dopavio incendiou as roupas talares do jesuita.

Começando então de atear-se uma labareda fumegante, logo os douscompanheiros a passo lesto se dirigiram para o umbral da porta e assim semsaudades abandonaram aquella horrenda masmorra.

{123}

XI

A TAVERNA

O carcereiro e o pagemtoparam-se defronte do sombrio edificio de San Domingos por altas horas de umanoite escura como breu e sem ideias determinadas sobre a melhor direcção quelhes convinha aproveitar.

Era certo que por longos momentos não podiam ali permanecer sem o risco deserem percebidos e presos. Mas, em conjuncturas de indecisão, quem se lembra deacodir convenientemente pela propria segurança? Viam-se em liberdade e esseunico bem lhes parecia a suprema fortuna. A largos sorvos aspiravam as{124} emanações puras da noite e com asvistas abrangiam o espaço immenso onde volitam os astros. Pisavam aquelle chãopor cem veses trilhado pelas doloridas plantas das victimas inquisitoriaes. Porali passaram em companhia do carrasco e dos defensores da cruz algumas dusiasde martyres envolvidos na samarra e cobertos das terriveis carochassarapintadas de chammas e demonios. Mas, ainda assim, que feliz differença sese comparava a sombria praça de San Domingos com as estreitas e miasmaticasgemonias onde o corpo se esquartejava no excesso das torturas e a conscienciadesfallecia á mingoa do ambiente da liberdade? Entretanto os dous foragidos,como julgando-se proximos de um foco de miasmas e de peste, reconheciam anecessidade instinctiva de se desviarem para longe. Não tinham pensado ainda naescolha do refugio. Lisboa, essa decantada sultana de marmore e granito a nãoinvejar bellesas a Stambul, era cidade grandiosa e opulenta, era então, como asoube descrever um dos mais sympathicos engenhos da moderna geração, a «peroladas cidades do mundo, a Phryné das capitaes{125} da Europa, a terra do luxo, dos praseres, dasostentações e das grandesas.»[16] Não lhe faltavam palacios nem choupanas,igrejas nem tavernas. Mas o olho dos activos inquisidores, Argos da peorespecie conhecida, com tanta facilidade se estendia aos santuarios de Christocomo sobre os santuarios das familias. Nada aos filhos de Loyola e aosdiscipulos de Torquemada lhes era vedado nem recondito: o seu fim predilecto ea sua ambição natural eram avassallar o mundo, eram enroscar-se como serpentegigantesca, desde as raises ao vertice da ramada, na arvore do universo!

Por fim os miseros foragidos tomaram uma subita deliberação. Dirigiram-separa o palacio hospitaleiro de Violante Gomes.

Apesar do prolongado e tardio da noite, ainda a formosa dama não seentregara aos dominios do somno. Entretinha-se a desferir da sua harpa de ebanoe marfim alguns ligeiros acordes repassados de ternura e melancolia.

A principio sobresaltou-se e estremeceu com{126} a presença dos estranhos hospedes; mas logo comum sorriso feiticeiro de meiguice e suavidade se dirigiu ao indio:

—Por acaso, meu esforçado amigo, tendes algumas aventuras mais?

—Aventuras sérias, respondeu o badage com signaes de desanimo e tristesa.

—Não percebeis quanto sinto os vossos desgostos. Mas a culpa não serávossa? Porque não gosaes a vida em socego, sem vos importarem os negocios doestado e os interesses alheios? Vós, os homens, tendes todos o espirito mordidopelo sarcopto das ambições. Nada vos contenta.

—O destino assim é. Arrasta o nosso espirito para o bem ou para o mal domesmo modo que succede a uma lasca de taboa ou a um pedaço de cortiça dominadopelas ondas do mar. Fica-me porém a consolação de que nunca a minha conscienciase encaminhou para o mal.

Inesperadamente sentiu-se um alteroso arruido. Algum serio acontecimento sepassava no largo do Rocio. Nem mais nem menos: o palacio de Violante Gomes foraassediado por{127} uma turbasediciosa e infrene de alabardeiros e familiares do Santo Officio.

Não era agradavel nem segura a posição dos foragidos das gemoniasinquisitoriaes. Escapar, seria negocio difficil. Combater, seria temeridade comtodos os visos de loucura. Sem embargo o indio não desanimou nem tremeu.

—Senhora, disse para Violante Gomes, os vossos hospedes são incommodos eperigosos. Por isso vos disemos adeus até melhor occasião. Vamos ao encontrodos inimigos...

—Loucos! acodiu a esbelta dama. Deixai as escadas e vinde por este sitio.Segui-me depressa!

Violante Gomes, allumiada por um castiçal de prata, adiantou-se por umcorredor estreito, subiu os degraus de umas escadas mais estreitas ainda echegou ao recanto de uma saleta desguarnecida.

—Já, já! Apressai-vos a abrir essa janella. Deita para os telhados visinhose, tres ou quatro varas além, podeis escapulir-vos com segurança. Não afiançoque não haja perigo...

—Podemos cair dos telhados á rua como dous gatos ou dous perros, entãoregougou pela{128} primeira vez oex-carcereiro. Mas nada de sustos. D'entre dous perigos escolhe-se o menor.

Alguns momentos depois a janella tornara-se a fechar e Violante Gomes desceucom animo desassocegado aos primeiros aposentos.

O borborinho e a algasarra não affrouxavam. Pareciam o preludio de umad'essas tremendas tempestades que se chamam revoluções populares.

—Abram a porta, abram a porta!

A estes rugidos de panthera ninguem respondia do palacio. As vosesproseguiam entretanto:

—Abram, senão arromba-se!

—Arrombe-se a porta!

—Á ordem de el-rei! Manda el-rei!

—Abram! abram, sôs fidalgos!

Como a porta não cedesse á intimação, as coronhadas principiaram dedesempenhar o seu papel destruidor. Grito infernal, desacato immenso!

De longe a longe uma voz robusta e vibrante forcejava por dominar agritaria.

—Basta, basta! bociferava.{129}.

Esforços baldados, porém. O barulho, em vez de esmorecer, augmentava pouco apouco. Scenas de sangue e horror iam começar ainda.

Entretanto os evasores dos ergastulos inquisitoriaes conseguiram chegar aomeio da rua da Bitesga e ali resolveram parar á porta da taverna de um parentedo carcereiro.

Em derredor de comprida e nodoenta banca de pinho bebiam, gesticulavam erosnavam em selvatica liberdade uns quinze homens de esqualida catadura etrajos andrajosos que logo á primeira vista se consideravam relé de virtudesduvidosas.

Ainda mais seis ou oito colossos de eguaes trajos e costumes resonavam afartos folegos aos recantos da baiuca, uns acocorados indolentemente no chão eoutros encostados sem a minima ceremonia a escabellos e tamboretes.

Se aquella turba esqualida não denunciava um covil de feras, certamente nãoparecia um grupo de seres humanos. Eram homens todavia; mas homenzarrões de côrmacilenta, voz cavernosa e cabeça guedelhuda e cerdosa como de juba deleão.{130}

—Leve o diacho, rugia um d'elles, que leve o diacho tanto a zurrapa comoquem nol-a vende. Esse filho da breca jamais nos deu cousa com geito. Ovinho... que peste! O vinho é sempre do peor e do mais caro como se o vendessea mastins da igualha d'esse bisneto de Judas.

—Pois andas mal, pedaço de asno, acodiu segundo bebedor dirigindo-se domesmo modo ao taverneiro. Se te não emendas e não cobras tento, nósensinamos-te deveras. A freguesia, meu lorpa, deixa-te ás moscas o presepio...

—Por isso, redarguiu de mau humor o dono da taverna, não me ha de ferver omiolo. Fregueses como tu, Chico, ou tambem como tu, Miguel Farçante, juro queos tomara ver a cem leguas do bairro. Sempre traseis os bolsos mais cheios desarna e cotão que de chelpa. De calotes estou eu farto dês que vos aturo.

—Cala-te ahi, volveu-lhe o bebedor Miguel Farçante. Bem sabes que não soude genio talhado para lerias...

—Puf, meu valentão das dusias! Lerias tuas é que pouco me importam. O quemais quero é que me paguem e tu, se herdasses a vergonha{131} dos homens honrados, não me punhas mais aspatas de portas a dentro.

—Uum, uum! Pois isso vai assim, grande lorpa! Toma lá pela injuria...

Logo na face cadaverica do vendeiro estalou uma punhada gigantesca. Ovendeiro quedara a principio silencioso e soffredor como uma estatua; masdepois com a ligeiresa de um tigre pegou pelo bojo de um cangirão quasi cheiode vinho e, ministrando-lhe a força de um punho de Sansão, em um apice oarremessou á cabeça do aggressor. O barro quebrou-se em pedaços e dous jorrosde sangue borbulharam da testa em que elle bateu.

Immediatamente, em guisa de campo de batalha, se estremaram dous partidos.Em todas as mãos luziam aos reflexos das candeias facas e punhaes. Metade dosfregueses predispunha-se para a defesa e outra metade para a investida.

—Vaes levar a tua conta, meliante!

—O vendeiro teve rasão...

—Rasão vamos ver quem a teve! Trocaram-se estas rudes ameaças em um{132} abrir e fechar de olhos. Eram opreludio de uma contenda furiosa entre dusia e meia de ebrios e malvados,homunculos sem consciencia do bem e do mal, tam lestos em derramarem o sanguedas veias de seus irmãos como em beberem até aos bordos um cangirão dossaborosos liquidos extrahidos das parras do Seixal.

Foi então que o ex-carcereiro e o badage reconheceram a necessidade deentrar na taverna.

—Meus rapases, fallou-lhes o badage, não estamos em maré de bulhas e rixascom amigos. O valor e a coragem podem experimentar-se em outra liça. Quereismostrar-me agora que sois valentes, meus rapases?

—Topa-nos ás ordens, fidalgo! Mas primeiro deixe-nos dar uma tosquia ataverneiros desaforados.

O vendeiro estava já bem seguro pela gola da jaqueta. Miguel, querendovingar-se da ferida, ergueu o braço musculoso e ia sem clemenciadescarregar-lhe sobre o peito a lamina do seu punhal. Mas o golpe falhou. Obadage{133} segurou com forçaextraordinaria o braço que sustentava o punhal.

Então o barulho arrefeceu e aquella corja de ebrios, baixando as facas e ospunhaes, pediu e celebrou tregoas.

—Disei-me pois, dirigiu-se-lhes novamente o badage, se quereis ou nãoquereis provar o vosso valor e a vossa força. Preciso do serviço dos vossosbraços, meus rapases.

—Fidalgo, responderam logo, diga lá o que nos quer.

—Toca a beber primeiro, volveu o badage. Quem paga é a minha bolsa. Venhalá do melhor e do mais caro: Seixal ou Caparica do mais velho.

O vendeiro apresentou seguidamente seis garrafas cobertas de pó e foidespejando as primeiras duas no bojudo cangirão.

O badage pegou da vasilha e dispôz-se a offerecel-a a cada um doshomunculos. Cada cangirão mal chegava para quatro bebedores, mas á medida quese esvasiava não se esquecia o taverneiro de o reencher até aos bordos.

Todos beberam á vontade em menos de meio{134} quarto de hora e como o badage tivesse pressade lhes aproveitar os serviços tratou de conduzil-os em direitura do Rocio.

—Adeus e obrigado, disse para o taverneiro. Ahi tens um ducado de ouro delei. Guarda-o em paga do teu vinho.

—Obrigado lhe digo eu, fidalgo. A despesa está paga. Não aceito o dinheirode vossa senhoria e ainda lhe fico devedor de muito mais.

—O taverneiro é generoso, é generoso! conclamou a maioria dos fregueses.

Preparavam-se todos para sair quando se lhes dirige ainda o taverneiro:

—Mas para onde vades assim, papalvos?

—Nós te diremos depois para onde vamos, retrucou o ex-carcereiro. Quem fôrpeco e desanimoso que fique para ahi como um perro. Pela nossa banda queremossó gente de animo decidido e braço alentado.

—Bofé que ninguem dirá que o taverneiro da Bitesga foi algum dia peco! Masouvi rosnar por ahi que era preciso combater e brigar. Se a coisa é séria,unicamente facas e punhaes são armas de pouca monta.{135}

—Fallas com a prudencia de Dom Vasco da Gama, apoiou o indio. Mas não temoshoras a perder e, na falta de outras armaduras, todas as que se encontram á mãonos parecem de boa tempera.

—Serão. Mas devem concordar que as ha bem melhores de tempera e de alcance.Uma espada alcança mais longe do que um punhal e os pelouros de um bacamartevão mais longe ainda...

—É certo. Mas onde ha por ahi perto algum arsenal?

—Um fiel vassallo de sua altesa serenissima deve estar sempre bemapercebido e armado. Esperem um bocado, esperem que eu venho já.

Subiu o taverneiro ao primeiro andar da escura baiuca e momentos depois seapresentou no meio dos seus fregueses com um braçado respeitavel de bacamartese de pistolas e machados, ascunhas e espadas. Para complemento da collecção dearmaduras de que falla o cantor dosLusiadas faltavam ainda{136}

Os arneses e peitos relusentes,
Malhas finas e laminas seguras,
Escudos de pinturas differentes,

mas certamente sobejavam

Pelouros, espingardas de aço puras,
Arcos e sagittiferas aljavas,
Partasanas agudas, chuças bravas.

—Para meia dusia de amigos, regougou o taverneiro, aqui temos pão e queijo.Escolham á vontade...

Ficaram logo apercebidos e apetrechados seis ou oito dos mais robustos edecididos. O numero restante julgou-se egualmente bem armado com os seuspunhaes de fina lamina e as suas facas de ponta cuidadosamente afiada.

—Agora, ordena o badage, cuidemos da partida. Alma alegre e caras á frente.Vamos combater nada mais e nada menos que os serventes e soldados do SantoOfficio...

—Do Santo Officio! exclamaram com espanto.

Houve um momento de indecisão. Aquella palavra terrivel incutiu deveras oterror nos espiritos mais varonis e affrouxava de medo o braço{137} mais possante. O tribunal doSanto Officio ou daSanta Casa, segundo o conceito de um escriptor,comparava-se então pouco mais ou menos com a arca de Noé, observando-seunicamente a differença de que os animaes que entraram na arca sairam comotinham entrado e de todos os que eram encerrados nos carceres da inquisição seviam sair mansos como cordeiros aquelles que á entrada tinham a crueldade doslobos e a feresa dos leões!

—Vejo, rosnou o ex-carcereiro, que não sois homens para empresas serias.Tanto medo para nada! Eu, que servi por alguns annos essa corja deinquisidores, confesso-vos que não recuo nem me arreceio.

—Aqui ninguem confessa medo! interferiu o vendeiro com heroica resolução. Avida é uma ninharia e a mim tanto se me dá morrer hoje na praça como ámanhan nacama. Vamos ou não vamos, rapases?

Momentos mais tarde a baiuca ficou permanecendo silenciosa e vasia.{138}

[16] Arnaldo Gama.Osegredo do abbade.

{139}

XII

REFERTA DE TIGRES E LEÕES

Este arrojado troço deferas humanas premunidas com lanças e espadões, ascunhas e alabardas, facas emosquetes investiu no Rocio com rude e selvagem ousia contra a infrenemultidão. Ia travar-se agora uma luta de tigres e leões.

Nem a surpresa nem o medo conseguiram afugentar as mulheres ou as crianças.As mulheres gritavam e rugiam como pantheras, as crianças, em corridasvertiginosas arremessavam pedras e calhaus, os velhos sentiam refluir-lhes osangue da juventude e serviam para animar{140} os brios dos mais novos. Uma destemida populaçae uma horda fanatica de soldados lidavam e combatiam, como em liça demusulmanos contra christãos, com egual coragem e com o mesmo furor.

Decorreram breves minutos e já se via, como na manhã seguinte de uma noitede batalha, o chão alastrado de corpos ensanguentados e moribundos. Mais dequinze cadaveres, não memorando a desastrada hecatombe dos feridos e contusos,eram já os tristes despojos e as victimas infelises da contenda.

O ruge-ruge, a voseria, a confusão e as cutiladas pareciam todavia cada vezmais longe do seu fecho. Mas, predispondo-se a restabelecer o socego, umpersonagem de altivo porte e animo resoluto á semelhança dos paladinos da idademedia, rompeu com bravura por entre o populacho e a soldadesca proferindo emvoz sonora:basta, basta!

Depressa foi reconhecido o campeão e, sendo-lhe franqueada a passagem comtodas as demonstrações de respeito, ergueu-se o grito geral de—viva suaaltesa! viva o senhor infante!{141}

O infante Dom Luiz desembuçou a capa de veludo, mostrou ao povo o seu rostosympathico e com serenidade lhe fallou assim:

—Ordem, ordem! El-rei deseja e estima a vida dos seus vassallos. Não querque elles vertam o seu sangue de tal sorte. Cobrai tento e socego, meus amigos!

Entretanto um dos mais inquietos e terriveis contendores foi pouco a poucorecuando com a espada em punho até se aproximar do infante. Não recuava desusto ou por impulsos de fraquesa, que nunca o seu espirito fôra abalado pelomedo nem os nervos do seu braço jámais affrouxaram nas conjuncturas do perigo.

—Debalde gastaes a paciencia e o tempo, lhe segreda. Esta corja infrene erebelde que nem de filhos de Satanaz, decerto vos não obedece nem respeita.

Não lhe sobejou ensejo de alongar o discurso. Um troço de aggressoresarmados de alabardas e espadas, de picos e ascunhas investiu contra elle aogrito diabolico de—morram os hereges, morram os traidores!{142}

—Morram, morram os judeus e os hereges! conclamaram logo de todas aspartes.

O infante, desnudando a espada, enrostou com a massa dos aggressores. Ellesporém, demovidos pelo respeito e pela estima que todos professavam pelo irmãode el-rei, suspenderam o passo.

—Ousareis porventura, lhes disse, erguer armas contra o irmão de el-rei?

—Não queremos offender vossa altesa, responderam do meio dos aggressores.Queremos só esse herege e esse criminoso que ahi está. Esse buscamos, buscamosesse só.

—Que me quereis então? proferiu com sobrecenho e desassombro aquelle queindigitavam.

—A vossa cabeça. A vossa cabeça de traidor para a ponta das nossas lanças eo vosso corpo de herege para a fogueira do Santo Officio.

—Rapases, retorquiu o infante com asedume, a el-rei sómente incumbe ocastigo. Não vos é dado justiçar por vossas mãos. Se ha ahi algum criminoso, osjuises de el-rei o tem de punir segundo as leis e usos do reino.{143}

—Diz bem o senhor infante, concordaram alguns dos representantes dapopulaça.

—Ide-vos em boa paz então. Restabeleça-se a ordem e haja por toda a partesocego.

—Mas quem nos responde pelo herege? Quem nos responde por elle?

A estas interrogações dos mais exigentes, accrescentaram ainda algumasvoses:

—Sem castigo não deve ficar. É de justiça, é de justiça que seja punido...

—Será feita justiça, retorquiu o infante. Prometto-vos debaixo de minhapalavra de Prior do Crato e, o que não vale menos, de leal cavalleiro, que olevarei á presença de el-rei para que se faça justiça rigorosa.

Seguidamente pela Bitesga e outras ruas dispersou-se pouco a pouco asediciosa turba. O infante Dom Luiz acompanhado pelo badage, esses meteram pelarua da Palha em direcção aos paços da Ribeira.

—Decerto cumprirá vossa altesa a sua palavra? inquire o badage a meio docaminho.

—Sinto, meu amigo, que me reservasses o{144} officio de carcereiro. Mas confio que meu irmãoe senhor não deixará de vos tratar bem.

—Alimenta vossa altesa mais esperanças do que as que eu nutro. Do animogeneroso de el-rei pouco espero. Desconfio que precisa a guela d'aquelleserenissimo sapo de mais uma doninha...

{145}

XIII

O LEITO DA DOR

As festas e os folgaresnão se interrompiam nos alegres paços da Ribeira. Comtudo não havia remediosnem divertimentos que restabelecessem a saude do joven herdeiro da coroa.

A maior parte dos dias passava-os elle de cama. Acommettera-o graveenfermidade. Queixava-se continuamente de dores de entranhas e revoluções deestomago. Emmagrecia a olhos vistos e a cada hora mais se lhe pronunciava adebilidade do corpo.

Á sciencia medica os symptomas e o caracter do mal não despertavam todaviaos minimos{146} cuidados.Effeitos do fastio e consequencias de debilidade, eis a opinião uniforme detodos os Esculapios e Galenos da côrte. Mas é certo que sua altesa peorava dedia para dia. Pouco a pouco encovavam-se-lhe os olhos, entesavam-se-lhe osdedos, empallideciam-lhe as faces, afilava-se-lhe o nariz, destingiam-se-lhe osbeiços e enfraqueciam emfim todas as carnes e todos os musculos.

Nada o entretinha nem consolava. Até os seus dilectos livros e os seusestimados trovadores lhe enfastiavam agora. Já não dava apreço ás quintilhas deFrancisco de Sá, áDiana de Souto Mayor nem aos autos de Gil Vicente.Consumia todo o seu tempo em suspiros e lamentações. Á proporção que lhedesfalleciam as forças do corpo, iam-lhe fugindo do espirito a coragem, aresignação e a paciencia.

Scena enternecedora em verdade era vel-o carpir as desditas da sua mocidadequando a esposa delicada e nervosa o procurava alentar com o balsamo dasesperanças e dos carinhos! Era o seu anjo tutelar a fiel e amoravel esposa.Jamais lhe abandonou o leito da dor e todos{147} seus thesouros de ternura com elle os gastavagenerosamente. Nunca seios de mulher compartilharam assim das amargurasalheias.

A alcova e os aposentos do principe ficavam no segundo andar dos paçosregios. Ali de canto a canto reinava um luxo oriental nas rendas e nastapeçarias, em todos os ornamentos e em toda a mobilia. Mas de que valiam essesbrocados e essas riquesas? Faltava ali uma coisa vulgar: a alegria. A saude nãose póde comprar com ouro e sem o dom precioso da saude não existem as alegriasdomesticas, os risos da existencia.

El-rei seu pai, talvez porque o excesso da sua augusta sensibilidade lhe nãopermittia espectaculos de tristesa, raras visitas se dignava faser-lhe. Emcompensação a rainha sua mãe todas as manhans se lhe dirigia á cabeceira doleito e a todas as horas mandava perguntar por suas damas se o principemelhorava.

Pela saude do joven principe todas as damas, fidalgos e poetas da cortesimultaneamente se interessavam. Muitas noites estava a sua alcova liberalmentecheia de amigos e aduladores. Como{148} se não julgava de gravidade a molestia,facilitava-se a honra da entrada a todas as pessoas do tracto e das relações dopaço.

Vai correndo o dia dous de janeiro de 1554 e são quasi dez horas da manhan.Sua altesa parece dormir a somno solto e na sala contigua estão esperando queestremunhe e acorde duas dusias de poetas e fidalgos, de damas e criados. Asdamas chamam-se Dona Francisca de Aragão, Dona Catharina de Athayde e DonaLeonor Mascarenhas. Os poetas, contando os de maior nota, são Dom Manoel dePortugal, João Rodrigues de Sá, Frei Paulo da Cruz, Dom Simão da Silveira, JoãoLopes Leitão, Jorge Souto Mayor e Antonio Ribeiro Chiado.

Conversam uns com os outros em voz desanimada e confrangida. A todos parecefaltar assumpto e liberdade. Está reinando certamente um quarto de hora demonotonia. Mas eis que entra ainda um homemzinho magro e pletorico, de barbaslouras e cabellos compridos. Tem o nariz afilado, os olhos vivos e as facespallidas. A boca mostra-a de exiguas dimensões, mas, segundo a fama que emLisboa corria, no comprimento{149} da lingua ninguem se lhe avantajava.

Vem todo aparaltado e nedio com sua gargantilha encanudada e seus punhos dealvas rendas. Traz na mão esquerda um chapeu de feltro enfeitado com sua plumabranca. Dos hombros pende-lhe um farto capirote de panno preto. Calção e gibãoforam talhados de veludo verde. As meias eram de fina seda cor de carne.

—Seja bem vindo vossa mercê, meu illustre coripheu daCastalidumturba!

A esta jovial saudação de Souto Mayor o recem-chegado estendeu a dextra eapertou com extremos de delicadesa a robusta mão do cantor daDiana.

Todos os outros cavalheiros procedem por sua vez a eguaes manifestações deamisade e seguidamente se dirige o recem-chegado para a alcova do principe.Depressa porém reapparece na ante-camara.

—Está descançando no regaço de Morpheu, murmurou elle com um sorrisoprasenteiro.

—É certo que sua altesa está a dormir, confirma prosaicamente a celebrada eformosa{150} Natercia. Mas porisso não nos ha de deixar o nosso amigo Pedro Caminha. Estou anciosa por ouviras suas poesias, meu caro Apollo.

—A musa tem andado constipada, minha gentil Galatea.

—Os numes não se constipam, acode o faceto Chiado.

—Não o deixamos partir sem nos recitar algum poema, accrescenta DonaFrancisca de Aragão.

—Assim rogam tanto! Estou plebeamente envergonhado por não traser peça devalor; mas não sei se lhes mostre...

—Mostre, mostre, senhor Caminha! rogaram com alegria tres voses de guelasfeminis.

—Mas que lhes hei de eu mostrar, pobre versificador de eglogas e elegias!

—Quer mote?

—Metem-me em trabalhos, metem-me em trabalhos de Hercules; mas venha delá...

—Deixemo-nos de mote, replica Souto Mayor. Ouvi diser que é maravilhoso oultimo parto do engenho de vossa mercê. Recite-o antes vossa mercê.{151}

—Votos, pedimos votos! regougam a um tempo dous divergentes cavalheiros.

Entretanto uma das travessas damas atreve-se a introdusir os ageis dedos nobolso do collete de Pedro Caminha e logo com expansivo contentamentodesembrulha uma pequenina folha de papel amarrotado.

—Eureka! exclamou ella com enthusiasmo.

—Leia lá, senhora Dona Francisca.

—Eu leio, eu leio!

Pegou Pedro Caminha no precioso autographo[17] e com entono magestatico se dispoz arecitar:

Muitas veses meus versos me pediste
Que t'os mostrasse e nunca te mostrei;
Em não pedir-te os teus, se bem sentiste,
Entenderias porque t'os neguei:
Da paga me temi; se a não tivera
Muitas veses meus versos já te lera.

Subito rubor purpurea as faces de Souto Mayor. Julga que elle mesmo fôra oalvo do{152} epigramma e vaicertamente dar o troco em egual moeda quando o auctor doOlyssiporequer explicações.

—Diga-nos vossa mercê, acodiu Jorge Ferreira, que allusões cavillosas sãoessas as do seu epigramma, senhor Caminha?

Caminha virou nas mãos a folha de papel e em voz mais elevada continua deler:

Um tem dois olhos e com vista clara,
Outro um só tem e esse co'a vista estreita.
Diz este áquelle: «Amigo, eu apostara
A qual de nós tem vista mais perfeita?»
Quem houvera que a si não se enganara
Como o outro que enganado a aposta aceita?
Diz-lhe este: «Vê que vejo mais que ti,
Pois dois olhos te vejo, um só tu a mi!»

—Bravo, excellente! exclamara João Rodrigues de Sá quando comprehendeu queos epigrammas se dirigiam a esse misero poeta que valia mais que todos ellesporque se chamava Luiz de Camões e porque era talvez o primeiro, o ultimo, omaior portuguez do seculo deseseis.

—Deveras excellente! Excedeis Horacio e{153} Marcial, meu illustre e grandioso vate! comestudado sorriso e com excesso de lisonjaria acrescentou ainda Jorge de SoutoMayor.

A este pomposo elogio immediatamente replica o padre-mestre dos epigrammas:

—Agradeço as vossas finesas, meu Petrarcha. Um frouxo de tosse fez por estaoccasião acorrer as damas ao quarto do principe.

Acordara sua altesa com a indiscreta algasarra e a meio corpo se erguerasobre os macios travesseiros do leito. Parecia mais alliviado da enfermidade,mais jovial do olhar e menos cadaverico do gesto.

—Vossa altesa dormiu bem? pergunta-lhe Dom Jorge de Moura aconchegando-sedo leito.

—Sinto-me com mais animo e parece-me que vou melhorando...

—Não tardará que vossa altesa esteja restabelecido. Isso não ha de sernada, querendo Deus.

—Assim espero que aconteça; mas não sei, meu amigo, não sei o que sinto nemo que padeço. Ha tantos dias na cama sem forças nem saude!{154}

—Disem os medicos que não passam de debilidade os achaques de vossaaltesa...

—Os medicos sabem tudo, sabem tudo... Só não sabem dar-me cura!

Abriu-se o reposteiro da alcova e a comprimentar o principe entrou agora acolmea dos admiradores do poeta Caminha.

[17] Veja-se aVidade Camões, por Theoph. Braga.

{155}

XIV

EFFEITOS DO VENENO

Respeitosamente foicomprimentado o herdeiro da coroa por todos os poetas e cortesãos que deimproviso assaltaram a alcova. Mas o joven Dom João não se encontrava em maréde paciencia para aturar importunidades e por isso a numerosa colmea dos nobresaduladores cuidou logo de se despedir.

A alcova permaneceu deserta; mas soou depressa o estalido de uma secretamola e a um dos cantos sahiu vagarosamente por uma porta escondida na parede oaventuroso pagem.

—Bom pagem, fallou-lhe o principe decorridos{156} alguns momentos, sinto que me vão affrouxando oanimo e a paciencia. O badage aproximou-se do leito.

—São effeitos da doença, respondeu pausadamente.

—Disem-me todos que isto nada é. Todos me enganam... Só tu me dises queestou doente... Sabes que doença padeço?

—Sei, meu principe.

—Que doença é?

—Francisco Lopes que vos responda, senhor.

—Não és sincero. Tambem tu me enganas, pagem.

—Receio declarar-vos a verdade.

—Tenho coragem para a ouvir. Falla, falla...

—Vós todos, principes e monarchas, só tendes abertos os ouvidos á adulaçãoe á mentira. A verdade é amarga e severa. Seria para as vossas organisaçoesanemicas e sedentarias um eleboro violento em demasia. Mas podesseiscomprehender as bellesas e vantagens da verdade que seria mais tranquilla avossa consciencia e mais duradoura a vossa saude. Então saberieis ler no livromysterioso do destino os deveres{157} que vos determina a Providencia. Serieis entãoos amigos e os protectores do povo...

O enfermo escutava pela primeira vez tam dura e irreverente linguagem; mas,como se tivesse o espirito fascinado pelo canto de uma sereia, não ousavainterrompel-a.

Com mais valentia de voz o badage proseguiu:

—Abençoados os monarchas que são os amigos e protectores do povo!Abençoados sejam! Mas a maioria d'elles entrega-se noite e dia ao turbilhãovertiginoso dos praseres e das orgias em menoscabo dos interesses publicos e emprejuiso da ventura das nações. Não é grande o numero dos monarchas, por maisricos e poderosos que sejam, que morrem com a consciencia de haverem feito afelicidade dos seus vassallos. Parece que teem os olhos vendados para o bem...

—Cala-te, que és injusto e severo. Que mal te fez meu pai ou tenho feito eupara seres assim tam rigoroso de palavras?

—Sois christão e mostraes ignorancia da leitura do Evangelho. Pois sabeique pelas culpas{158} dos paesrespondem os filhos até á quinta geração...

—Eu sei o que disem as escripturas santas; mas de que mal e de que peccadosaccusas meu pai?

—Rio-me da vossa innocencia, meu principe. Por ventura ignoraes osdescreditos e vexames que todos vamos soffrendo cada dia? Quantos desacertos eque torturas se não commettem ao sabor de Simão Rodrigues e só por interesse dotribunal da inquisição? Bastará oSanto Officio para causar maioresdamnos do que a peste e mais opprobrio do que a forca. Nas mãos dos seusministros flammeja o cutelo do carrasco, que é o mesmo que o estilete doassassino. Confisca-se a propriedade, assassina-se o fidalgo, rouba-se com ariquesa a honra alheia e queima-se nas labaredas da fogueira o servo da glebapara que se accenda mais uma lampada no altar da tirannia e se fortifique aindacom mais uma columna o templo da igreja!

—Não blasfemes assim, hereje. Lembra-te que fallas diante de um principe desangue.

—Principes e monarchas não os respeito nem{159} acato senão pelo esplendor das suas virtudes.Onde está o rol das vossas virtudes? Foi benefica a missão de que vosencarregou o Deus que sempre tendes á flor dos labios e a que nunca ergueualtares o vosso coração. Deus mandou-vos amar o proximo. Devieis ser o auxilioe não o latego do povo. Mas vós, que tendes para tudo ministros e conselheiros,só os não tendes para vos aconselharem a minorar os infortunios do pobre eobrigarem a repartir com as crianças que padecem fome as iguarias superfluasdos lautos e magnificos banquetes...

—Não te quero ouvir mais, não te quero ouvir mais. Lembra-te que ainda teposso punir e esmagar, villão!

—Tendes o poder e a riquesa, herdeiro do throno de Portugal. Sei que semprea vossos pés se rojaram desenas e dusias de cortesãos ambiciosos, cortesãos quese habituam a procurar o esplendor das gemmas preciosas das coroas regias paraencobrirem a baixesa da sua consciencia e a lepra do seu espirito. Sei quetodos os vossos caprichos e devaneios, embora custem milhares de crusados,serão satisfeitos{160} maisdepressa, do que se enxuga o pranto do desvalido que, relado pela fome, se vêestrebuchando na enxerga pestilenta da miseria... Mas vejo tambem que seoffusca o nimbo da vossa gloria e declina a estrella da vossa grandesa! Em vezde ser de perolas e rubis, será logo de terra e de cinzas a vossa coroa.Depressa se desfará em pó o vosso sceptro e, em vez de recamarem o vosso corpoo ouropel e os avellorios do throno, será entregue o vosso corpo aos vermes e ápodridão do sepulchro!

—Basta, basta! São de fogo as tuas palavras. Sinto que me requeimam asentranhas, pagem!

N'este comenos entrou Francisco Lopes a satisfaser a sua visita ordinaria.

O medico aproximou-se do principe, ausculta-lhe o peito com a maiorobservação e em seguida com todo o cuidado lhe tatea o pulso.

Não proferiu um monosyllabo e jámais denunciou pelas impressões do rosto oupor outros quaesquer signaes exteriores a gravidade ou as melhoras do enfermo.

Sempre com a mesma austeridade aproximou-se{161} de um dos angulos da alcova, recurvou-se devagar sobre uma elegante mesa de jacarandá, serviu-se de uma penna de patocollocada ao longo de um precioso tinteiro de prata e com rapidez formula emmeia folha de papel o recipe do costume.

Em seguida o medico ergueu com dous dedos a receita, baixou com gestocomprimentador a cabeça em direcção do leito e logo com inalteravel silenciotranspoz os umbraes da porta.

No centro da sala contigua esperava-o uma pessoa vestida completamente deroupas negras que ninguem mais era senão o jesuita Simão Rodrigues.

A meia voz segredou-lhe o medico:

—Está moribundo. Está sem vida. Morre antes de meia hora.

O jesuita laconicamente accrescentou:

Requiescat in pace!

Entretanto não abandonara o badage o leito do principe. Ninguem mais seconservava ali. Talvez porque se quisesse poupar a organisação debil doprincipe ás fadigas das conversações e ao constrangimento das visitas, ou entãopor{162} que o quadro pavoroso damorte não é espectaculo que deleite as vistas e atraia a presença doscortesãos.

O espirito de sua altesa estorcia-se nos derradeiros paroxismos. Poucosmomentos de vida lhe restavam já e que severos momentos de tortura não deviamde ser aquelles! Affligiam-no contorsões horrendas; o fogo violento de umvulcão abrasava-lhe as entranhas; os musculos e tendões dos braços pareciamfios de arame agitados por uma descarga electrica.

Elle todavia prestava segura e ininterrompida attenção ás palavrasmysteriosas do badage. Sobresaltava-se, contorcia-se, desesperava-se como selhe ardessem as carnes no brasido infernal de uma fornalha; mas ainda nutriaalentos e voz para de quando em quando diser ao badage:

—Contai-me tudo, contai-me tudo o que sabeis...

O badage continuou a revelar-lhe:

—Vou por fim denunciar-vos tudo o que sei. É caso incrivel, mas é verdade.Foi crime horrendo, mas aconteceu. Está soffrendo vossa altesa{163} os effeitos do veneno e é el-rei,acredite-me vossa altesa, é el-rei Dom João III a causa da sua morte!

A tam inesperada e tremenda revelação o corpo do principe contorceu-se commaior violencia. Quiz erguer-se do leito, gritar logo por soccorro e despedaçaras carnes com as unhas como se o dominassem os instinctos de um abutre. Porém aalcova nupcial tornara-se depressa a habitação lugubre da morte. Agora a voz eas forças abandonaram de vez o corpo franzino do principe. Era elle apenas umcadaver!{164}

{165}

XV

O PERDÃO

Com o espirito entregueaos dominios de uma vaga melancolia desceu seguidamente o badage ao primeiroandar dos Paços da Ribeira, onde, ao derredor de uma luxuosa banca pejada depapeis, meia dusia dos mais altos personagens se debatiam em calorosaconversação nos aposentos particulares de el-rei.

O badage, predispondo-se a colher o fio da conversação, cautelosamenteapplicou o ouvido ao ralo da porta dos regios aposentos.

—É mister, continuava de expor ao monarcha o beato provincial, um tremendoe exemplar{166} castigo. Aquelleherege não póde ser absolvido nem perdoado. Sabeis, senhor, até onde alcançam ograu dos seus crimes, o excesso das suas heresias, o numero dos seus peccados?

—Já me contaste, meu padre, o que por desfortuna vos aconteceu. Confessoque foi horrivel a vossa posição. Atrever-se aquelle herege a martyrisar-voscom o fogo! Presumo que não foram os vossos tormentos inferiores aos de SanLourenço, o martyr das grelhas.

—Pela minha parte lhe perdôo tudo. Encontro-me salvo e livre de perigo.Agora só me resta esquecer de boamente o mal que me fez. Mas os desacatos áreligião catholica, as offensas dirigidas a Deus...

—Perdoae-lhe vós, observou a rainha, que Deus tudo perdoa como pai demisericordia.

—Vejo que minha presada esposa, accrescenta o monarcha, se interessagenerosamente pelo seu pagem. Cá de mim não tenho resentimentos nem gosteinunca de vindictas. Em boa fé, meu padre, vos declaro que tudo esqueço. Mas quediseis, Simão Rodrigues? De vós depende o perdão ou o castigo!{167}

Dispunha-se a retorquir o provincial quando o badage se apresenta deimproviso.

—Recuso, disse com firmesa, todo o perdão e todo o favor. Simão Rodrigues,Simão Rodrigues, sois vós que precisaes da graça de el-rei!

—Não comprehendo bem o teu orgulho, meu amigo! acodiu o nobre Duque deBeja.

—É o orgulho de quem estima e defende uma boa causa: a causa do povo.

—O povo, sempre o povo! exclama com asedume o terrivel jesuita. Dize-me:que entendes tu por essa massa enorme e infrene, esse corpo sem entendimentonem consciencia que apedreja hoje o idolo da vespera, essa cabeça desvairadaque nunca soube comprehender as doçuras da paz nem respeitar as glorias deDeus?

—O povo, proferiu o indio com enthusiastico espirito, é um instrumento detrabalho que emprega todo o suor do seu corpo e todos os dias da sua existenciano roçar das charnecas, no arroteamento dos latifundios, nos perigos e laboresdas officinas, sobrecarregado sempre de{168} gabellas e desfavores, ganhando apenas os meiospecuniarios de não morrer de fome e não conseguindo nunca abandonar a suacondição servil. É o contrario de essa classe que se chama a nobresa e de essaoligarchia que se chama o clero. O nobre e o padre, favorecidos por umalegislação de isenções e privilegios, são homens livres que deixam decontribuir para as despesas do estado, que tudo á larga possuem e quedesconhecem os suores do trabalho. Gosam e mandam a seu alvedrio... O povo,todavia, constitue a maxima parte, a grande porção do estado. Do seu braço, dassuas forças e da sua actividade provém a riquesa publica, a defesa dasmonarchias ou das republicas, a manutenção da ordem e da paz, o desenvolvimentodo commercio e das industrias. O povo é o elemento mais forte das instituiçõespoliticas e da ordem social: o eixo e as rodas da machina social. Seria precisoconseguintemente não despojal-o da sua personalidade e da sua liberdade... Masquando irromperá a fulgorosa alvorada em que esse rebanho de ilotas ou escravosdesperte ao grito heroico e triunfal de um novo Spartaco,{169} o libertador dos povos? Quando, proclamado oadvento da igualdade e da justiça, surgirá a epocha redemptora em que a essacohorte renegada de hebreus se concedam pelas prescripções de umalegislação benefica e humana os foros de cidadãos e os direitos de homenslivres, a sua alforria politica e social emfim? Eu erguerei sempre a minha vozcontra os excessos da tyrannia feudal, inquisitorial ou real que fasem do povouma besta de carga. O systema pagão ainda prevalece nas hodiernas sociedades,apesar de já decorrerem mais de quinze seculos de christianismo[18]: isto é do reinado daigualdade, da liberdade, da fraternidade humana. Porque se não ha de abolireste nefando systema aperfeiçoando as coisas existentes, dando ás ideiasdiversa direcção, melhorando as leis e os habitos e os costumes? Vós,provincial Simão Rodrigues, confiaes que, submettendo o povo ao jugo daescravidão e roubando-lhe a luz do sol nas abobadas dos carceres, conseguis aregeneração da sociedade civil e a grandesa da igreja catholica. Mas por{170} acaso ignoraes que a conscienciapublica e o senso universal reprovam com vehemencia as traças e ardisempregados pelo vosso systema estacionario e fanatico, systema vergonhoso quedirectamente conduz á anniquilação e ao opprobrio? As nações não podem viversem leis de egualdade na distribuição dos bens e dos males, dos cargos ebeneficios. Não podem os homens coexistir e prosperar sem as vantagens de umaassociação commum. Como é pois que a vossa corporação de jesuitas ambicionadispor de todas as forças e riquesas, de todos os elementos de soberania e detodos os graus de despotismo? Não comprehendeis o grande pensamento dodever—que é a lei da vida, a grandiosa ideia do bem—que é o dever dahumanidade! Conheço que debalde cairei sem nome nem gloria como o soldadoferido no fragor dos combates. Mas eu vos profetiso, Simão Rodrigues, eu vosprofetiso que ainda um dia, ao grito de triunfo dos meus irmãos, ha de sobre ascinzas frias do jesuitismo e dos Cains do Santo Officio erguer-se em canticosde alegria o altar da liberdade!{171}

Logo Simão Rodrigues se dispunha a esfriar a impressão do democraticodiscurso do badage; mas Catharina de Austria, com a fronte radiosa de firmesa ecoragem, apressou-se a diser para seu esposo:

—Não approvaes, senhor, os gentis e nobres sentimentos d'este mancebo? PorDeus vos declaro que não conheço em nossos reinos mais generoso fidalgo nemmais leal vassallo!

—Assim o creio, concordou o monarcha impressionado por um estranhosentimento de generosidade. Tanto que resolvo mostrar-lhe a minha gratidão e aminha graça. Ficas satisfeito, proseguiu ao dirigir-se affavelmente ao badage,em aceitar a commissão com que me apraz honrar-vos? Quero provar-vos com animogeneroso que sei premiar as virtudes e serviços dos meus vassallos...

—Senhor, atalhou com um olhar de fogo o jesuita Simão Rodrigues, por Deusque vos não pertence premiar os herejes nem os criminosos!

—Jamais um monarcha de Portugal deixará de cumprir quanto prometteu...Pagem! mando-vos substituir nos meus dominios da India{172} com os mesmos foros e jurisdicção o viso-reiDom Affonso de Noronha.

Seguidamente fôra o badage abraçado com espontaneas manifestações decontentamento pelo seu sincero amigo o duque de Beja.

—Fez-se justiça, fez-se justiça por fim! exclama a rainha com viva explosãode enthusiasmo.

Experimentaram os nervos do badage uma passageira commoção, humildementerecurvou elle pela primeira vez a sua cabeça altiva e com brandura ajoelhou aospés do sombrio monarcha:

—Muito agradeço a vossa altesa, lhe disse, as honrarias e os louvores; masconsinta-me que não aceite.

—Puf! meu rapaz. Pareces bem orgulhoso e bem louco. Pois já te não convem oviso-reinado das Indias?

Ao successor de Dom Manoel, o glorioso principe que tam respeitado e temidofisera no Oriente o nome portuguez, retrucou o indio com magestosa serenidade:

—Parto para as agras e florestas do meu{173} paiz; mas deixe-me vossa altesa partir semhonrarias nem proveito. Não me sedusem as grandesas da vida nem os avelloriosdo mundo. Christão velho ou christão novo, deveras ficarei contente com dar aSimão Rodrigues um exemplo de modestia e uma lição de humildade!{174}

[18] Lamennais.Dupassé et de l'avenir du peuple.

{175}

XVI

A VINGANÇA

Foi annunciado o almoço eentão suas altesas as pessoas reaes, acompanhadas de suas senhorias osconselheiros e o celebre provincial, poseram logo termo á audiencia.

Apenas se conservou na sala o badage.

—Talvez me chamem desassisado, scismou elle. Regeitar assim riquesas etitulos!... Grande virtude e grande proesa, na verdade... Quem não gosta deelevar-se e engrandecer-se, quem não deseja passar de braço erguido por cima dacabeça dos outros, embora á custa da sua consciencia e da sua dignidade?Todavia do meu{176} procedimentonão me arrependerei nunca. As Indias são emporio de riquesas e eu depressapossuiria armasens de fasendas e especiarias, cofres de joias e de barras deouro... Mas quem me dava todos esses bens? Porventura sua altesa serenissima? Orei, no seu officio inalteravel de gastar, dispõe dos haveres e dos suores dopovo, a massa que produz e trabalha. De certo deveria a minha fortuna ásgenerosidades do rei... Mas não és tu—a maior, a grande porção dahumanidade—que trabalhas e que produses e que tudo vaes pagando?... Povo, dasbagas do teu suor é que nascem as perolas das coroas regias. Eu comprehendoisso, comprehendo! Havia pois de enriquecer-me á vossa custa, meus irmãos?

O badage sentou-se na luxuosa estadella do monarcha, dobrou a cabeça sobreos braços crusados na beira da mesa e assim por alguns momentos permaneceu comoadormecido pelo cansaço. Entregava o seu espirito á meditação, porque logoalteou a sua cabeça esbelta e se dispoz lentamente a escrever.

Todos os mais intimos e sinceros sentimentos{177} do seu coração transmittia-os agora a meiafolha de papel. Estava confiando por meio das letras alfabeticas de uma cartadirigida a Catharina de Austria os seus fervorosos affectos e as suas saudosasdespedidas.

—Amei-a com dedicação! monologava elle quando acabou de escrever. Maispelas prendas do seu espirito que pelas bellesas do seu corpo... Conheci-asempre bondosa e casta como os anjos. O orgulho, a soberba e a impudicicia deuma rainha são vicios que jamais lhe empanaram o brilho das suas virtudes. Nãome esquecerei nunca de abençoar o seu nome e de estremecer a sua imagem. Nobree gentil senhora! quem soffreria os impetos e cruesas de vosso esposo, o lobosombrio e fanatico, se não fossem as vossas caricias e os vossos conselhos deovelha paciente e delicada?

Leu a carta seguidamente, reflectiu ainda por alguns minutos e rasgou-a emvarios pedaços a final.

—Não! reconsidera com altivez. Não darei eu esta prova de fraquesa.Coragem, coragem!... Sempre, como perola escondida na clausura da{178} concha, apertarei nos meus seiosde alma o segredo dos meus amores. Quem sabe se lhe causaria despreso em vez desaudade, riso em vez de compaixão?

O badage levantou-se bruscamente da estadella, correu as vistas pelasdouradas paredes da sala e dirigiu os passos para o lumiar da porta.

Aquelle palacio escaldava-lhe a cabeça como se o abrasasse a cratera de umvolcão.

Resolvera abandonal-o para sempre e já caminhava ao longo do corredor quandoum magro personagem de semblante pallido como o de um cadaver e de vestesnegras á semelhança de um fantasma o obriga a parar improvisamente.

Em repasto da sua vingança, não se recusara Simão Rodrigues a ensanguentar oseu punhal traiçoeiro. Elle em carne e osso, com o punhal escondido na manga daroupeta, aguardava o pagem na penumbra solitaria do corredor.

O pagem cahiu, com effeito, ao borbulhar do seio um jorro de sangue. Nãoacodiria braço que o protegesse nem medicina que o salvasse.{179} Crisparam-se-lhe os dedos, arroxearam-se-lhe osbeiços, empallideceram-lhe as faces e entregou a Deus o derradeiro alento dasua juvenil existencia depois de articular esta crudelissima ironia:

—É assim... que se vingam... os filhos de... Ignacio de... Loyola!

 

 

FIM.

 

INDICE

Algumas palavras5
ICiumes de um rei11
IIOs reis não costumam perdoar as offensas recebidas23
IIIRecompensa do crime35
IVO festim de Balthasar53
VOrações e jejuns redimem todas as culpas65
VIA caçada75
VIIA luta85
VIIIOs estaus95
IXO carcereiro105
XVantagem de dous contra um115
XIA taverna123
XIIReferta de tigres e leões139
XIIIO leito da dor145
XIVEffeitos do veneno155
XVO perdão165
XVIA vingança175

PORTO—IMPRENSA PORTUGUEZA

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O CHRISTÃO NOVO ***
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