Há, no mais recente Enrique Vila-Matas,Canon de Cámara Oscura, várias referências a um conto de Kafka quejá aqui referi. Propenso, porém, a transformar tudo em literatura, EV-M vê nessa história kafkiana uma metáfora da criação literária, algo como uma caverna onde o autor/narrador se encerra para escrever longe do bulício do mundo (e talvez contra ele ou alheio a ele), tal como, de certa forma, faz o narradorocupante desta ficção.
A fim de criar um cânone literário excêntrico, "intempestivo" e deslocado do mundo, Vila-Matas inventa desta vez um autor que é um androide da série Denver-7 e, portanto, uma inteligência artificial sem qualquer memória da infância, educado e humanizado por um escritorfracassista, Antonio Altobelli, que lhe legou a sua "poderosa biblioteca" e o incitou a aligeirá-la, escolhendo precisamente os livros e as citações de que mais gostasse.
Como produzindo, outra vez, uma "gargalhada infinitamente séria", EV-M joga e diverte-se com os conceito de autor e narrador, bem como com a ideia de literatura enquanto relação contínua com todos os livros escritos e por escrever - "como se no meio das letras de outros livros existisse ainda espaço para escrever novos livros". Que este exercício seja produzido por um androide infiltrado entre as pessoas comuns de Barcelona é, em si, um pequeno achado, confirmando Vila-Matas como um dos mais engenhosos e distintos autores contemporâneos.