Apintura de gênero(português brasileiro) oupintura de género(português europeu) desenvolveu-se a meio do florescimento doBarroco naEuropaCatólica (século XVII) nosPaíses Baixos, sobretudo nos Países Baixos do Norte (a porção que hoje corresponde àHolanda). Trata-se de um estilo sóbrio,realista, comprometido com a descrição de cenas rotineiras, temas da vida diária como homens dedicados ao seu ofício, mulheres cuidando dos afazeres domésticos, ou até mesmo paisagens. Nasce então apintura de genre (oupetit genre) como uma resposta nacionalista, glorificadora da cultura neerlandesa, ao processo de libertação dos Países Baixos do domínioespanhol.[1]
Até a metade doséculo XVI, as dezassete Províncias dos Países Baixos pertenciam ao império espanhol sob reinado doRei de Espanha eImperador Sacro-Romano,Carlos V. Em1556, abdica a favor de seu filhoFilipe II, que estava mais interessado no lado espanhol do Império.
Durante oséculo XV, os Países Baixos tornaram-se uma região próspera e empreendedora (entrepreneurial) do Império dosHabsburgos. Carlos V e Filipe II começaram a cobrar taxas aos neerlandeses, quando precisavam arrecadar fundos para sustentar as investidas militares, levando a uma difundida visão (por parte dos neerlandeses) da Espanha como um explorador no poder. Antes dabatalha de Lepanto (1571), os Habsburgos taxaram os neerlandeses para financiar a guerra contra osTurcos. Após Lepanto, Filipe II usou os neerlandeses para financiar novas guerras noAtlântico. Os inimigos da coroa espanhola eram, muitas vezes, parceiros comerciais dos neerlandeses. Os comerciantes neerlandeses viam-se então ameaçados pelas ações de Filipe II.
O Império dos Habsburgs impunha ao povo um catolicismo que possuía cunho político, o que fazia crescer a aversão dos neerlandeses a Filipe II. Osmovimentos calvinistas enfatizavam virtudes como a modéstia, a clareza, a limpeza, afrugalidade e o trabalho duro, satisfazendo assim as expectativas dos holandeses que buscavam os seus direitos, liberdade e tolerância religiosa.
As ideiasprotestantes e calvinistas que circundavam representavam uma ameaça ao Império Espanhol, e cada vez mais os Países Baixos se tornavam predominantemente calvinistas. No dia da Assunção da Virgem, em1566, um pequeno incidente do lado de fora dacatedral deAntuérpia deu início a um motim massivo de calvinistas, que invadiram as igrejas para destruir estátuas e imagens de santos católicos, que eles julgavam como heresias. A desordem continuou e, como reação, Filipe II enviouFernando Álvarez de Toledo y Pimentel,duque de Alba (mais conhecido entre os protestantes neerlandeses comoduque de ferro), para reprimir a rebelião.
As províncias reformistas do norte declaram-se independentes, em1579, e formam aUnião de Utrecht, que é tida como o início da Holanda moderna. Mas, apenas em1648, a Espanha finalmente reconhece a independência dos neerlandeses. A liberdade política atingida acaba incitando outras áreas, através da abertura a novas ideas culturais e científicas.
O período doséculo XVII é conhecido comoSéculo de Ouro dos Países Baixos, no qual a Holanda era aclamada mundialmente na área docomércio, daciência e dasartes. Durante grande parte do século XVII, os neerlandeses, tradicionalmente bons marinheiros efazedores de mapas hábeis e meticulosos, dominaram o mercado mundial, uma posição que, até então, era ocupada pelosportugueses e espanhóis, e mais tarde seria perdida para osingleses, após uma longa competição que culminaria em diversas guerras (em sua maioria navais). Em1602, foi fundada aCompanhia das Índias Orientais Holandesa (Verenigde Oostindische Compagnie), que manteria o monopólio no comércio com aÁsia por dois séculos e iria se tornar a maior companhia comercial do mundo, no século XVII. Em1609, foi fundado o banco deAmsterdão, um século antes da contra-parte inglesa.
Antes do surgimento da Holanda como uma nação, existia pouca distinção entra a arte dos Países Baixos do Norte e o Sul (arte flamenga). Durante aIdade Média a arte neerlandesa foi dominada pela influência de seus vizinhos mais fortes,Alemanha eFrança. Os artistas doséculo XV eram patronados e recebiam o suporte dosduques da Borgonha, cuja corte residia emDijon. A arte era então voltada amotivos religiosos, sendo que vários dos artistas produziam peças paraaltares e outras pinturas religiosas no estilo realista.
ARenascença italiana começou a influenciar os Países Baixos do Norte no início doséculo XVI e se torna evidente nos trabalhos deJan Mostaert (1475 - 1555/56) eCornelis Engelbrechtsen (1468 - 1533).Jan van Scorel (1495 - 1562) foi o primeiro artista a viajar constantemente àItália e assimilou com sucesso alguns elementos italianos ao seu estilo. Dentre os seus pupilos encontra-seMaarten van Heemskerck (1498 - 1574), um dos maiores representantes doManeirismo, que tornou-se o estilo predominante na Holanda do século XVI. O Maneirismo copia o estilo das pinturas italianas, enquanto tenta deliberadamente quebrar com as regras clássicas. Buscava atingir a discordância em oposição à harmonia, e tentava criar novos efeitos nas pinturas.Haarlem eUtrecht tornaram-se os maiores centros de pintura maneirista, nos Países Baixos do Norte.
A luta pela independência e a exaltação nacionalista contribuirão fortemente para construir a natureza da arte neerlandesa, no século XVII. Os temas religiosos, históricos oumitológicos não tinham mais apelo algum para os protestantes neerlandeses. Buscavam agora temas que exprimissem o orgulho pela nação. Esta auto-congratulação expressou-se através daspaisagens, vistas das cidades, pinturas navais (a Holanda torna-se a potência naval do século XVII), e pinturas que glorificam a sua culturaburguesa, tais comoretratos, pinturas de género enaturezas mortas. A Holanda não sofria influências estrangeiras, o que significa, que a arte que se desenvolveu foi original tanto nos temas quanto no estilo. A arte deixou de ser exclusividade dosmecenas,nobres ou religiosos, e passou a ser artigo da classe média em expansão. As pinturas eram raramente comissionadas, em sua grande parte eram vendidas assim como qualquer outra mercadoria.[2]
As pinturas de gênero neerlandesas, do século XVII, caracterizam-se pela riqueza em detalhes, precisão e apuro técnico, numa tentativa de representar tudo aquilo que o olho humano é capaz de captar, de tal forma a dar à imagem um aspecto semelhante à vida. Em meio a estas mudanças do ponto de vista trazidas pelo processo de independência, surge a ideia de Kepler de definição da pintura, tomando por base a definição do olho, como formativa da imagem retiniana não-linear. Define o olho humano como umprodutor mecânico de pinturas, desta forma, atrela o processo de pintar ao processo de ver, cria-se uma dialética entre anatureza e aarte, o que caracteriza a pintura do norte holandês.
Fora das esferas de influência dos grandes centros, desenvolve-se na Holanda uma pintura que se distancia da exuberância barroca, dos temas nobres e dos padrões de estética que orientam a arte desenvolvida na Itália, por exemplo. A busca pela representação do ambiente em que vive o povo holandês é constante. Os artistas se preocupam em representar, com o máximo de realismo, aperspectiva, ascores vivas dos objetos e a iluminação (ou falta da mesmo) nos ambientes. Para tanto, o artista faz uso de seu apuro técnico e, algumas vezes, de ferramentas, como a câmara obscura, que foi utilizada exaustivamente por Vermeer.
Surge nessa época o questionamento: estava sendo produzido arte, ou uma mera representação darealidade?[3] O mesmo problema suscitado pelafotografia, que não se trata de um conflito entre arte e natureza, mas entre os diferentes modos de produção pictórica. Como o ver, o conhecer e o pintar se interagem levando à formação de pinturas mentais ou visuais?E.H. Gombrich tentou fundamentar a representação pictórica ocidental na natureza da percepção humana. Mas não existe, provavelmente, nenhum artista que tenha meditado tão contínua e profundamente acerca destas questões, quanto o fezLeonardo da Vinci.[4]
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Quem quer que perca a vista, perde a bela visão do mundo e é como uma pessoa encerrada viva num túmulo, onde possa movimentar-se e viver. Ora, já notaste que o olho abarca as belezas de todo o mundo? Ele é o senhor da astronomia, faz a cosmografia, aconselha e corrige todas as artes humanas, leva os homens a diferentes partes do mundo, é o príncipe da matemática, suas ciências são exatíssimas, ele mediu as alturas e as dimensões das estrelas, descobriu os elementos e suas localizações. Previu acontecimentos futuros pela observação do curso das estrelas, criou a arquitetura, a perspectiva e a divina pintura.
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A mente do pintor deve ser como um espelho que se transforma na cor da coisa que lhe serve de objeto e é preenchido com tantas lembranças quantas são as coisas colocadas diante dele. Assim, pintor, sabe que não pode ser bom se não fores um mestre versátil na representação, por via de tua arte, de todos os tipos de forma que a natureza produz – que não saberás o que fazer, caso não as vejas nem as representes em tua mente.
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O argumento aqui compõem-se de três partes: primeiro, a mente não é apenas como um espelho mas, colorida pelos objetos que ela reflete, é realmente transformada num espelho; segundo, a imagem assim produzida pela natureza é não-seletiva – cada forma produzida pela natureza é espelhada, e por isso o homem não tem nenhum privilégio; finalmente, em sua frase conclusiva, Leonardo distingue claramente entre a representação espelhada na mente e a visão do próprio mundo. Nessa concepção de pintura, o espelho é o senhor ou guia, e Leonardo nesse espírito, aconselha o artista a confrontar sua arte com a natureza espelhada. (...) Nessa visão, uma pintura revela-se a si mesma para a representação de aparências como a perspectiva atmosférica – o fato perceptivo de que os contornos parecem suavizados, as formas arredondadas a certa distância de nossos olhos – ou o espaço recurvado. Mas, se a pintura toma o lugar do olho, então o observador não está em parte alguma. Embora fascinado pelas aparências, Leonardo teme entregar-se a tais exigências de absorção total e receia o sacrifício das escolhas humanas racionais que essa noção da pintura supões.
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Referências
↑«Pintura de Gênero». Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em 23 de maio de 2016
↑Michael Baxandall (1997).Sombras e Luzes. [S.l.]: EDUSP. 163 páginas.ISBN 85-314-0416-9GB
↑Ludwig Wittgenstein (2003).Gramática filosófica: Parte I A proposição e seu sentido. [S.l.]: LOYOLA. 124 páginas.ISBN 85-15-02606-6GB
↑Lionardo da Vinci (1817).Trattato della pittura. [S.l.]: Biblioteca Vaticana.GB