Nasceu numa famíliajudaica russa que perdeu suas rendas com aGuerra Civil Russa e se viu obrigada a emigrar em decorrência da perseguição a judeus, que, à época, resultou em diversos extermínios em massa. A futura escritora chegou ao Brasil, ainda pequena, em 1922, com seus pais e suas duas irmãs.[nota 1] Clarice dizia não ter nenhuma ligação com a Ucrânia — "Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo" — e que sua verdadeira pátria era o Brasil. Inicialmente, a família passou um breve período emMaceió, até se mudar para oRecife, onde Clarice cresceu e onde, aos oito anos, perdeu a mãe.[9][10][11] Aos quatorze anos de idade, transferiu-se com o pai e as irmãs para oRio de Janeiro, naTijuca, naRua Mariz e Barros, 241, local onde a família se estabilizou e onde o seu pai viria a falecer, em 1940.[12][13]
EstudouDireito naUniversidade Federal do Rio de Janeiro, conhecida como Universidade do Brasil, apesar de, na época, ter demonstrado mais interesse pelo meio literário, no qual ingressou precocemente comotradutora, logo se consagrando como escritora,jornalista, filósofa, contista eensaísta, tornando-se uma das figuras mais influentes daLiteratura brasileira e doModernismo, sendo considerada uma das principais influências da nova geração de escritores brasileiros. É incluída pela crítica especializada entre os principais autores brasileiros do século XX.
Registrada como Chaya Pinkhasivna Lispector (emucraniano:Хая Пінкасiвна Ліспектор;romaniz.:Chaya Pinkhasivna Lispector)[15] Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 na aldeia deChechelnyk, região daPodólia, então parte daRepública Popular da Ucrânia e hoje parte da modernaUcrânia. Filha dos judeus russos Pinkhas Lispector e Mania Lispector (nascida Krimgold), seu nascimento se deu em meio aos preparativos da família para a fuga do país, em razão doantissemitismo resultante daGuerra Civil Russa no século XX (1918–1920).[16] Pinkhas Lispector era um comerciante, filho do religioso Shmuel Lispector e daburguesa Heived.[17] Pinkhas e Mania se casaram noano novo de 1889, por determinação dos pais.[18] Do casamento nasceriam três filhas: Leah, em 1911;[19] Tania, em 1915;[20] e Chaya (ou Haia), em 1920.[21]
A fuga foi cogitada primeiramente por Mania Lispector e sua família, onde a maior parte dela já havia emigrado para aAmérica do Sul para trabalhar em organizações judaicas.[22] No entanto, Pinkhas concordou com a emigração somente com o avanço dospogroms, no fim dadécada de 1910. Por volta de 1918, a pobreza fez com que a família se mudasse para a cidade deHaisyn, também naPodólia (no atualOblast de Vinnitsa), onde ocorreram algunspogroms. Especulou-se que, durante um deles, por volta de 1919, Mania teria sidoestuprada por um grupo de soldados, que lhe teriam transmitidosífilis. Entretanto, tal informação nunca foi confirmada por nenhum parente ou amigo próximo da escritora.[nota 2][23][24] Sobre o assunto, uma das mais influentes biógrafas da escritora, Nádia Batella Gotlib, ao organizar o livro memorialístico e póstumo da irmã de Clarice, Elisa Lispector, "Retratos antigos (2012)", esclareceu que há registros de que a doença de Mania era, na realidade,hemiplegia, ou seja, a paralisia parcial de metade do corpo proveniente detraumas decorrentes daviolência causada porbolcheviques durante umpogrom. Essa doença manifestou-se na viagem de exílio e paulatinamente se agravou, a ponto de, já emRecife, a mãe não mais poder caminhar, fazendo uso permanente de uma cadeira de rodas. Elisa Lispector menciona ainda que a mãe tinha tremores no corpo causados pelomal de Parkinson.[25]
A proibição daemigração de judeus fez com que os Lispector buscassem meios ilegais em uma primeira tentativa falha, fazendo com que se mudassem para uma aldeia mais próxima das fronteiras, Chechelnyk. No inverno de 1921, eles conseguiram deixar a Ucrânia após alcançarem orio Dniestre, pelo qual foram levados à cidade de Soroco, então pertencente àRomênia e hoje àRepública da Moldávia.[26] Lá viveram em umalbergue e Mania foi internada em um hospital de caridade. Planejaram a fuga daEuropa, com o intento de emigrar para oBrasil ou para osEstados Unidos, opção que acabou sendo inviável devido à aprovação doEmergency Quota Act, que dificultava a imigração de pessoas provenientes doLeste Europeu.
Em 27 de janeiro de 1922, o consulado russo emBucareste, naRomênia, concede à família passaportes válidos para a emigrarem ao Brasil,[27] em uma viagem que passou porBudapeste,Praga, naRepública Checa, eHamburgo, naAlemanha. Nesta última cidade, embarcaram no navio brasileiroCuyabá, que os levou em condições precárias àMaceió, onde a irmã de Mania, Zicela, e seu marido, Joseph (ou José) Rabin os esperavam.[28][29] No Brasil, os nomes russos foram substituídos por nomesonomásticos dalíngua portuguesa, com exceção de Tania — Pinkhas passou a ser Pedro; Mania transformou-se em Marieta; Leah virou Elisa; Chaya virou Clarice.[30]
EmMaceió,Alagoas, a família continuou vivendo em condições precárias e enfrentou dificuldades econômicas e também por causa do choque cultural. Para sustentar a família, Pedro tornou-se um pequenomascate, comprando roupas velhas e usadas em áreas carentes para revendê-las aos comerciantes da cidade,[31] e também dando algumas aulas particulares delíngua hebraica para filhos de alguns vizinhos, além de vender cortes delinho. A situação melhorou somente quando Pedro, ao lado de José, passou a fabricar sabão, como fazia na Ucrânia.[32]
Em 1924, aos quatro anos de idade, Clarice ingressou nojardim de infância. Em 1925, após três anos morando em Maceió, mudou-se paraRecife com sua mãe e irmãs pouco depois de seu pai, possivelmente em consequência dos conflitos familiares e do desejo de Pedro de melhorar as condições da família mudando-se para um centro econômico com uma população judaica mais expressiva, fixando-se no bairroBoa Vista.[33] O pai trabalhava como mercador ambulante, vendendo roupas a prestação pelos bairros mais afastados da cidade.[34]
Em 1928, aos sete anos, aprendeu a ler e a escrever. Em 1930, pouco depois, escreveu, inspirada por uma peça que havia visto, sua primeirapeça teatral,Pobre menina rica, com três atos, e cujas páginas foram perdidas.[35] Em 1931, enviou contos para a página infantil doDiário de Pernambuco, mas o jornal não publicou seus textos porque “os outros diziam assim: ‘Era uma vez, e isso e aquilo...’. E os meus eram sensações. ... Eram contos sem fadas, sem piratas. Então ninguém queria publicar”.[36][37]
Em 1932, aos doze anos, Clarice foi aprovada, ao lado da irmã Tania e da prima Bertha, noGinásio Pernambucano.[39] Em 1933, decidiu tornar-se escritora quando “[tomou] posse da vontade de escrever ... [viu-se] de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse [ajudá-la]”.[40] Em sua última entrevista em vida, disse a respeito de sua formação literária: “Misturei tudo. Eu lia romance para mocinhas, livro cor-de-rosa, misturado comDostoiévski. Eu escolhia os livros pelos títulos e não pelos autores. Misturei tudo. Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse,O Lobo da Estepe, e foi um choque. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora”.[35][41][42] A família mudou-se para uma casa própria naavenida Conde da Boa Vista.
Em 7 de janeiro de 1935, com 14 anos, viajando no navio inglêsHighland Monarch, mudou-se com a família para oRio de Janeiro, onde seu pai esperava dar prosseguimento aos avanços de seu negócio e conseguir bons maridos para suas filhas nos círculos judaicos cariocas.[43] Elisa, entretanto, ficou ainda alguns meses trabalhando em Recife, indo para o Rio de Janeiro um pouco mais tarde e prestando concurso para oMinistério do Trabalho. Apesar de ter conquistado as melhores notas, não haviam vagas; ela ingressou no cargo graças à amizade da família com opolíticoAgamenon Magalhães, então ministro do Trabalho e anteriormente professor deGeografia de Clarice e Tania.[44] Em 1938, Tania também tornou-se funcionária pública.[45]
Em 1939, morando na rua Lúcio de Mendonça, no bairro doMaracanã, ela ingressou no curso superior naFaculdade de Direito daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que trabalhava como secretária em um escritório de advocacia e em um laboratório, além de já estar fazendo traduções de textos científicos para revistas. Em 1940, aos dezenove anos, seu interesse porDireito havia diminuído ao passo que aumentara sua atenção àLiteratura, de modo em que e publicou, em 25 de maio, seu primeiro conto conhecido,Triunfo, na revistaPan, no qual descreve os pensamentos de uma mulher abandonada por seu companheiro. A posição política da revista de apoio aos regimes ditatoriais, que era semelhante às de outras revistas desse período, todas censuradas, não foi levada em conta por Clarice ao publicar o conto.[46]
Insatisfeita com o trabalho de escritório, ela buscou entrar na área do jornalismo, apesar das dificuldades levantadas às mulheres. De acordo com o que diria anos mais tarde em uma entrevista, passou a andar pelas redações de revistas oferecendo seus contos, até que provavelmente um dia chegou à redação da revistaVamos Ler!, direcionada ao público masculino de classe alta. A imprensa na época era estritamente censurada pelogoverno deGetúlio Vargas e estava sob o jugo do órgão recém-criado doDepartamento de Imprensa e Propaganda, que permitia a circulação de determinados periódicos, como aVamos Ler!, em cuja redação Clarice mostrou seus textos ao jornalistaRaimundo Magalhães Júnior, secretário do ministro de Propaganda,Lourival Fontes.
Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Chegava lá nas revistas e dizia: “Eu tenho um conto, você não quer publicar?”. Aí me lembro que uma vez foi o Raymundo Magalhães Jr. que olhou, leu um pedaço, olhou para mim e disse: “Você copiou isto de quem?”. Eu disse: “De ninguém, é meu”. Ele disse: “Então vou publicar”.[35]
O primeiro texto publicado na revista foi provavelmenteEu e Jimmy, em 10 de outubro de 1940, um conto com temáticafeminista centrado na relação amorosa entre um homem e uma mulher. Depois disso, de acordo com Tania, Clarice procurou contatar fontes para conseguir entrar definitivamente na imprensa.[46] Apesar das dificuldades para entrar na área, na qual, de acordo com Tania, “você não fazia nada se não tivesse relações”, Clarice buscou contato com fontes que “gostaram dela e a contratou” para trabalhar como tradutora naAgência Nacional, uma agência de notícias do governo. Como não havia vaga para tradutor, foi designada como editora e repórter, a única mulher ali que ocupava tal cargo.[45]
Na equipe da Agência Nacional, conheceuLúcio Cardoso, um escritor e jornalistamineiro então com 26 anos, já respeitado no meio literário. Desenvolveu uma forte amizade por ele, que compartilhava dos mesmos gostos literários que ela, e chegou a desenvolver uma paixão não correspondida, pois Cardoso erahomossexual.[47][48] A amizade com Cardoso e com o restante da equipe abriu-lhe novas possibilidades profissionais e literárias, que fizeram com que ela passasse então a escrever e publicar prolificamente.
Em 19 de janeiro, publicou o artigoOnde se ensinará a ser feliz no periódico paulistaDiário do Povo, sobre um evento presidido pela primeira-damaDarcy Vargas.[49] Em 9 de agosto, o contoTrecho, sobre a espera de uma mulher por seu companheiro em um bar no dia 30, sai pelaVamos Ler!; Cartas a Hermengardo, uma trilogia de textos destinados ao público jovem da classe alta, versando sobre uma mulher que aconselha um homem a ouvir seus instintos, sai no semanárioDom Casmurro.[50][51]
No mesmo ano também escreveu outros contos que seriam publicados somente na coletânea póstumaA Bela e a Fera (1979): em setembro,Gertrudes Pede um Conselho; em outubro, seu conto de juventude mais longo,Obsessão[52], cujo protagonista, Daniel, reaparecerá em seu segundo romance,O Lustre (1946), anos mais tarde. O personagem era baseado em Cardoso, um homem pelo qual a narradora apaixona-se e que a guia; e em dezembro,Mais Dois Bêbados.[50] Também dá partida a novos projetos na universidade, ainda objetivando o sistema penitenciário, através da colaboração com a revista universitáriaA Época, onde publicou os ensaiosObservações sobre o Fundamento do Direito de Punir, em agosto, eDeve a Mulher Trabalhar?, em setembro.[50]
O primeiro ensaio chamou a atenção de estudiosos posteriores por dizer que “O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a Guerra ... não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há”, o que foi interpretado tanto como uma justificativa filosófica emaquiavélica para aditadura e onazismo, quanto como um eco de umateísmo incipiente de Clarice.[53] Depois desse afastamento, no entanto, passou a aproximar-se novamente dareligiãojudaica através de leituras deFranz Kafka e deBaruch de Espinoza, também judeus.[54]
Manchete do jornalA Noite, em cuja redação trabalhou como redatora.
Por intermédio de Cardoso, passou a frequentar um grupo de amigos que se encontrava no bar Recreio, naCinelândia, e era composto por literatos comoVinicius de Moraes,Cornélio Penna,Rachel de Queiroz eOtávio de Faria. Através da Agência Nacional também conheceu opoetaAugusto Frederico Schmidt, que foi entrevistado por ela a respeito de fibras industriais, mas que, frente à admiração que Clarice expressou por sua poesia, desenvolveram uma amizade que duraria pelo resto de sua vida.[55]
Os textos escritos para a Agência Nacional nessa época seguem a linha editorial feita para agradar a censura do regime de Vargas, resumindo-se a entrevistas comcoronéis egenerais estrangeiros de passagem pelo Brasil e de coberturas de inaugurações de locais ligados ao governo.[56][57]
Em fevereiro de 1942, transferiu-se para a redação do jornalA Noite, cuja redação era dividida com aVamos Ler! e, assim como esta, era uma extensão do órgão governamental para o qual a Agência Nacional também trabalhava. Em 2 de março, ganhou seu primeiro registro profissional.[50]
Em março, começou a planejar seu primeiro romance,Perto do Coração Selvagem, concluído em novembro e constituído basicamente de rascunhos e escritos separados, unidos em um livro por sugestão de Lúcio Cardoso, que também sugeriu um título, "Perto do Coração Selvagem", retirado de uma passagem do livroRetrato do Artista Quando Jovem, deJames Joyce, cujas técnicas, para Cardoso, remetiam às de Clarice.[nota 3] O críticoÁlvaro Lins classificouPerto do Coração Selvagem como "[o primeiro romance brasileiro] dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf".[58]
Em outubro,Perto do Coração Selvagem ganhou oPrêmio Graça Aranha de melhor romance do ano. Em novembro,O Lustre foi concluído, escrito de forma linear, ao contrário do anterior. Esperou que, com o sucesso de seu primeiro livro, pudesse escolher entre editoras e publicar na editoraJosé Olympio, mas enganou-se, e teve que publicá-lo na editora católicaAgir, com ajuda de Cardoso.[carece de fontes?]
Em 23 de novembro,Manuel Bandeira enviou uma carta pedindo o segundo romance e alguns poemas para publicação em antologia. Em resposta à leitura desses poemas, Bandeira enviou uma carta criticando fortemente a poesia de Clarice, o que fez com que ela queimasse todos os poemas que havia escrito. Mais tarde, Bandeira lamentaria ter feito aquele comentário, dizendo: “Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal as minhas palavras [...] Faça versos, Clarice, e se lembre de mim”.[59]
Nesta época, a escritora, mais uma vez, nega conhecer Sartre quando, na verdade, o conhecia suficientemente até para poder se diferenciar dele, pelo menos desde o seu segundo livro,O Lustre, conforme ela mesma afirmou mais tarde: "Acontece que só vim a saber da existência de Sartre no meu segundo livro." (Cf. BORELLI, 1981, p. 66). De acordo com Nádia Gotlib, inclusive, "uma das possíveis razões de o livro ter sido bem recebido na França pode ter sido mesmo a ideia de que teria tido ele influência doexistencialismo" (GOTLIB, 1995, p. 340). Muitos dos trabalhos críticos sobre a obra da autora confirmam a relação dela com a filosofiaexistencialista de Sartre.[60]
Um adendo: além deO Lustre, a obra de Clarice, "A Maçã no Escuro" é também entendida como influenciada pelo pensamento filosófico de Sartre. Guimarães comparaA Maçã no Escuro ao romance de SartreA Náusea e nota traços de esquizofrenia em Martim, por este apresentar o pensamento fragmentado, com ausência de elos. Segundo Guimarães, aconsciência, tanto de Martim, quanto de Roquentin (protagonista do romance de Sartre), "opera por contiguidade, adesão, coexistência em relação aos circunstantes e não por identificação, à maneira psicanalítica".[61] No mais, muitoscríticos literários discutiram a influência doExistencialismo de Sartre e da discussão e papéis femininos/masculinos deSimone de Beauvoir nas narrativas de Clarice Lispector.[62][63]
Neste contexto, e feitas estas considerações pertinentes, é possível pensar uma influência da filosofia formulada por Sartre, Simone de Beauvoir e outros na obra de Clarice, embora fosse temerário considerar a autora como adepta do existencialismo. A verdade é que a filosofia Existencialista de Sartre marcou profundamente a geração de intelectuais contemporâneos de Clarice Lispector.[64][65][66][67] No fim do ano de 1946, frequenta o terapeuta Ulysses Girsoler. Ela e Maury passam oréveillon naFrança, com o casal Wainer, a convite de Bluma.[68]
Quando criança, seu filho mais velho, Pedro, se destacava por sua facilidade de aprendizado e bom comportamento, porém, na adolescência, sua falta de atenção nos estudos e extrema ansiedade acompanhada de agitação consigo mesmo e com a família, o levou a ser diagnosticado comesquizofrenia. Clarice se sentia culpada, sem saber o porquê, pelo transtorno psiquiátrico do filho, e teve dificuldades para lidar com a situação, recorrendo apsicólogos,psiquiatras einternações, pois o menino era muitoagressivo.[71]
Em 1959, Clarice separa-se do marido por estar sempre ausente e viajando a trabalho, exigindo que ela o acompanhasse o tempo todo. Não queria abrir mão de sua carreira ao mesmo tempo em que queria cuidar do filho em um local fixo, sem constantes viagens que deixavam o menino mais nervoso e com as constantes mudanças de escola do outro filho, que não estava fazendo amizades, além de estar cansada da insegurança e ciúme do marido, Clarice deu um fim na relação. O ex-marido ficou naEuropa, e ela voltou a viver permanentemente noRio de Janeiro com seus filhos, indo morar com eles em um apartamento noLeme.[carece de fontes?]
Pouco tempo depois da publicação do romanceA Hora da Estrela, Clarice foi hospitalizada e diagnosticada com umcâncer de ovário inoperável por ter sido detectado tarde demais. A doença havia de espalhado por todo o seu organismo. Clarice faleceu em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário. Seu corpo foi sepultado noCemitério Israelita do Caju, noRio de Janeiro, no dia 11 de dezembro. Até a manhã de seu falecimento, mesmo sob sedativos, Clarice ainda ditava frases para sua melhor amiga,Olga Borelli, que estava sempre ao lado da amiga em seus últimos anos.[72]
O críticoAlfredo Bosi apresenta três características do estilo narrativo de Clarice Lispector: o uso intensivo dametáfora insólita, a entrega aofluxo de consciência e a ruptura com o enredo factual.[58] Bosi afirma que, na gênese das histórias da autora, há uma exacerbação tal do momento interior que a própria subjetividade entra em crise, fazendo com que o espírito procure um novo equilíbrio, trazido pela "recuperação do objeto", "não mais [no nível psicológico], mas na esfera da sua própria e irredutível realidade." Para Bosi, "trata-se de um salto do psicológico para o metafísico".[58] Bosi vê também, na escrita da autora, exemplos de três crises literárias: a crise da personagem-ego ("cujas contradições já não se resolvem no casulo intimista, mas na procura consciente do supra-individual"); a crise da fala narrativa ("afetada agora por um estilo ensaístico, indagador") e a crise da velha fundação documental da prosa de romances.[73]
Estátua da escritora e seu cão Ulisses, noLeme, inaugurada em 14 de maio de 2016 (Fernando Frazão/Agência Brasil).
Sabe-se que Clarice Lispector dominava pelo menos sete idiomas:português,inglês,francês eespanhol, fluentemente;hebraico eiídiche, com alguma fluência; e alguma fluência emrusso, vindo da infância. Como tradutora para o português, entretanto, utilizou somente o inglês, o francês e o espanhol.[nota 4]
Além de contos e artigos, ela traduziu ao todo 35 livros de diversos gêneros e escritores: 13 do inglês; 10 do francês; e 2 provavelmente do inglês ou do francês e talvez do espanhol ou dogrego.[75] Junto de contos, foram mais de 40 traduções.[76]
Em 1941, antes de dar início à sua carreira literária, quando começou a trabalhar na revistaVamos Ler! comorepórter, também contribuía comtraduções, sendo a sua rimeira o contoLe missionaire, deClaude Farrère.[76]
Em 1963, após um hiato de mais de vinte anos, voltou à ativa com a tradução do inglês do romanceThe winthrop Woman, de Anya Selton, pela editoraYpiranga.[77][76] Pelos próximos seis anos, lançou mais duas traduções do inglês pela Ypiranga, uma deAgatha Christie[78] e outra deAlistair MacLean.[76]
Publicou, em 1968, naRevista Jóia, a crônicaTraduzir procurando não trair, em que comentou suas preocupações no processo de tradução para manter a fidelidade e outras reflexões sobre o ofício.[79][80]
Em 1969, publicou sua primeira e única tradução do espanhol, do contoHistoria de los dos que soñaron, deJorge Luis Borges, noJornal do Brasil. Em 1973, sua primeira tradução do francês,Lumière allumées, de Bella Chagal, pela editoraNova Fronteira.[76]
No restante de sua vida, publicou diversas traduções, tanto em periódicos quanto em editoras. A última tradução publicada em vida foi a do francês do romanceLe bluff du futur, de Georges Elgozy, em 1976, pela editora Artenova.[81] Duas traduções, entretanto, ainda seriam publicadas postumamente, do francês:L’homme au magnétophone, de Jean-Jaques Abrahams, em 1978, pela Imago Editora;[82][76] e da tradução francesaCurtain, deAgatha Christie, em 1987, pelaEditora Record.[83][78]
As editoras em que mais publicou foram aArtenova, em um total de 11, aNova Fronteira, 6, e aYpiranga, 4. Os anos mais prolíficos foram 1975, com 8, 1976, com 4, e 1974, com 4.[76]
Na sua última década de vida, em 1970, pouco depois de quando começou a escrever textos infantis, também fez três traduções adaptadas direcionadas para o públicoinfantojuvenil,[84] todas pela editoraAbril Cultural: publicada em 1973, do inglês,Gulliver’s travels, deJonathan Swift;[85]The history of Tom Jones, a foundling, de Henry Filding;[86] e postumamente em 1980, do francês,L’Ïle Mystérieuse, deJúlio Verne.[87][76]
Em 1970, publicou uma tradução baseada emO talismã, deWalter Scott, pelaEdiouro.[88] Também publicou contos reescritos a partir de traduções deEdgar Allan Poe em 1974 e 1975, que aparentemente foram escritos em um mesmo período e posteriormente reunidos emHistórias Extraordinárias de Allan Poe, pela Ediouro, de data não informada.[89][76]
No total, a obra de Clarice Lispector recebeu mais de 200 traduções para mais de 10 idiomas, sendo mais de 179 traduções integrais de livros e 25 de contos publicados em periódicos. Seus livros mais traduzidos são principalmente romances:A Hora da Estrela, com 22 traduções;A Paixão segundo G. H., também com 22;Perto do Coração Selvagem, com 18;Laços de Família, com 16; eUma aprendizagem ou O livro dos prazeres, com 15.[90]
Em 1954, seu primeiro livro a ser traduzido foi lançado naFrança:Perto do Coração Selvagem, em tradução de Denise-Teresa Moutonnier pela editoraPlon.[91] A tradução desagradou Clarice, que enviou reclamações sobre erros ao editor, Pierre de Lescure, mas acabou por preferir fingir que a tradução nunca existiu. Em 1955, veio a primeira tradução para oespanhol:Água Viva, por Haydeé Yofre para aSudamericana.[92] Em 1961, a primeira para oinglês:A Maçã no Escuro, por Gregory Rabassa para a editora daUniversidade do Texas.[93]
Em 1963, teve sua primeira tradução para o alemão como a primeira de um de seus livros de contos:Laços de Família, por Marianne Eyre, Margareta Ahlberg e Arne Lundgren, para aNorstedts.[94] Em 1964, também para o alemão:A Maçã no Escuro, por Curt Meyer-Clason para aClassen.[95] Em 1966, duas de suas obras são traduzidas para o alemão:OndeEstivestes de Noite, por Sarita Brandt para aSuhrkamp;[96], e o contoA Imitação da Rosa por Curt Meyer-Clason para aClaassen.[97]
Em 1969,A Paixão segundo G. H., para o espanhol, por Juan García Gayo para aMonte Avila.[98] Em1973, a primeira para o tcheco:Perto do Coração Selvagem, por Přeložila Pavla Lidmilová para aOdeon;[99] e também o primeiro livro de contos traduzido para o espanhol,Laços de Família, por Haydeé Yofre Barroso para aSudamericana.[100]
Em 1977, ano de sua morte, tem três obras traduzidas:A Paixão Segundo G. H. para o inglês, por Jack H. Tomlins para aKnopf;[103]Perto do Coração Selvagem para espanhol, por Basilio Losada para aAlfaguara;[104] e o contoUma Esperança, deFelicidade Clandestina, para o espanhol, sob o título deLa araña, por Haydeé Yofre Barroso para aCorregidor.[105]
Depois de sua morte, sua obra popularizou-se cada vez mais. Das novas traduções destaca-se a série liderada por Bejamin Moser para a editorabritânicaPenguin Books nadécada de 2010,[106] que foi iniciada com a publicação da biografiaWhy This World, em 2011, e tinha como intuito traduções mais fiéis que as anteriores. O objetivo da série, de acordo com Moser, que convidou outros quatro tradutores para a tarefa, é disponibilizar ao públicoanglófono traduções mais fieis do que as anteriores, que teriam tentado corrigir certas características da escrita da autora.[107]
A série faz parte de uma outra maior dedicada à difusão daLiteratura latina e foi publicada em 2014, contando com quatro traduções:Perto do Coração Selvagem, pela tradutora australiana Alison Entrekin;[108]Água viva, pelo editor Stefan Tobler;[108]A Paixão segundo G. H., pela poeta e acadêmica Idra Novey;[108]Um Sopro de Vida, pelo professor universitário brasileiro Johnny Lorenz;[108] eA Hora da Estrela, por Moser.[108][107]
Encontra-se colaboração da sua autoria na revista luso-brasileiraAtlântico.[109]
↑Clarice dizia ter chegado ao Brasil aos dois meses de idade, mas os documentos atestam que ela nasceu em 10 de dezembro de 1920, e os passaportes para o Brasil só foram concedidos em 27 de janeiro de 1922; portanto optou-se por manter a informação comprovável por mais de uma fonte.
↑Fonte terciária dada pela escritora Claire Varin, em uma entrevista concedida ao biógrafo Benjamin Moser, em Laval, Québec, no dia 7 de janeiro de 2006. Outras fontes atribuem os problemas de Mania a outros eventos. Não há depoimento dos filhos ou parentes que confirme a hipótese do estupro.
↑A frase de Joyce que inspirou o título do romance de Clarice Lispector é: "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida".
↑Aprendeu português no Brasil; inglês, francês e espanhol na adolescência;hebraico eiídiche no Colégio Hebreu-Iídiche-Brasileiro, atual Colégio Israelita Moisés Chvarts,[74] do Recife. Alguns biógrafos afirmam que também aprendeu um pouco de russo através do contato com familiares.
↑Varin, Claire (7 de janeiro de 2006). «Entrevista com Claire Varin» (entrevista). Benjamin Moser. Laval
↑Gotlib, Nádia Batella, 'Clarice, uma vida que se conta', São Paulo: Ed. Ática, 1995; Ferreira, Teresa Cristina Montero, 'Eu sou uma pergunta', Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1999.
↑Tania Lispector Kaufmann.Carta a Giovanni Pontiero. [S.l.: s.n.]
↑Gotlib, Nadia Battella (2013).Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Edusp. p. 608
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↑Isso pode ser encontrado, por exemplo, nos seguintes textos: BRASIL, Assis.Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Simões, 1969; NUNES, Benedito.O mundo de Clarice Lispector; op. cit.; HERMAN, op. cit., p. 69-74; PONTIERO, Giovanni.The drama of existence in Laços de Família. Studies in Short Fiction, n. 8, 1971 e ANDERSON, Robert K.Myth and existencialism in Clarice Lispector's, 1985.
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Bosi, Alfredo (2003).História concisa da literatura brasileira. São Paulo:Cultrix
Alguns Contos (1952) •Laços de Família (1960) •A Legião Estrangeira (1964) •Felicidade Clandestina (1971) •A Imitação da Rosa (1973) •A Via-crucis do Corpo (1974) •Onde Estivestes de Noite (1974) •Para não Esquecer (1978) •A Bela e a Fera (1979)
Literatura infantil
O Mistério do Coelho Pensante (1967) •A Mulher que Matou os Peixes (1968) •A Vida Íntima de Laura (1974) •Quase de Verdade (1978) •Como Nasceram as Estrelas: Doze Lendas Brasileiras (1987)
Jornalismo e outros escritos
A Descoberta do Mundo (1984) • Visão do Esplendor (1975) • De Corpo Inteiro (1975) • Aprendendo a Viver (2004) • Outros Escritos (2005) • Correio Feminino (2006) • Entrevistas (2007)